domingo, 27 de abril de 2008

Votação: Silêncio

Está aberta a votação para os contos com o tema Silêncio.

Você pode deixar o seu voto até o dia 30 de abril e decidir qual dos cinco duelistas vai escolher o tema da próxima rodada.

Lembrando que agora os votos do público valem mais, e que podem decidir a batalha.

Não conhece o Duelo? Clique aqui e saiba como são escolhidos os temas e eleitos os melhores contos!

Trato

Zeca e Sofia sempre foram grandes amigos. Ela, meio perturbada por algumas idéias de mundo que sempre teve certeza que ele não aceitaria. Ele, muitas vezes fingindo paciência e deixando que ela falasse mais do que ouvisse. De qualquer forma, suas conversas sempre rendiam boas discussões e sua amizade transcendia os limites das brigas imbecis e periódicas que tinham.

Nesta noite, ele fez só um pedido: “não vamos falar de amor, nem de relacionamentos só por hoje”. Ela riu e pensou ser tarefa fácil.

Trato feito ao telefone, se encontraram no portão da casa dela. Já quando entrou no carro, ouviu um Cartola, bem baixinho.

- Boa noite, Zecão.

- E aí, Sofia? Tranqüilo?

- Tudo certo. Que música de pegar mulher é essa?

Um olhar de repressão fez com que os primeiros dez segundos de total silêncio seguissem. E o Cartola, lá.

- Pra onde vamos?

- Não sei. Pensei no programa clássico.

- Beleza, molho madeira e pão chinês são sempre uma boa pedida – Sofia riu e sem pensar lembrou – Lembra que a sua mãe sempre dizia que nossos programas eram de casal?

Dez segundos ouvindo Cartola.

- Como está a vida lá em Sampa?

- Corrida. Perco quase três horas pra chegar no consultório, mais umas duas pra almoçar. Não sei como aquele povo consegue ganhar dinheiro.

- E não tens saído? Restaurantes bons e cafés bons?

- Até vou, mas o charme de São Paulo está nos teatros! Esses dias vi uma peça com aquela atriz lá, da novela, sabe?

- Ahhh, aquela que ela tem um marido apaixonado e mesmo assim vai trair ele com um garotão bom de cama e aí... – o rosto foi ficando vermelho na medida em que o tom de voz foi baixando.

- Não, Sofia. Aquela peça em que ela tem um amigo com câncer.

Os dez segundos agora se alongaram por toda a música. Ela odiava Cartola, mas não podia falar absolutamente nada.

- Mais nenhuma novidade pra me contar?

- Não. E aqui, o que tens de bom pra me contar?

- Nada demais.

Ela sentia-se consumida, culpada, agonizante. Queria lhe contar sobre as novidades da sua vida, mas lembrava-se que trato era trato. Depois de dois minutos e com o fim do CD, ela não sabia o quanto poderia amar o Cartola – mas nem isso poderia falar.

- O silêncio não te deixa falar porque você tem a porra da mania de romantizar tudo. Será que um dia vais conseguir lidar com o silêncio da falta de amor? Espero que algum dia tu entenda que isso só te faz mal. Mas agora pode falar.

Imediatamente, Sofia desligou o som e começou a falar sobre seus casos, prometendo para si mesma pensar sobre isso depois. A noite foi das mais divertidas que ela já teve, pra variar. Ela já o conhecia, depois de um tempo, Zeca esquecia a lição de moral e voltava sempre a ser a melhor pessoa do mundo.

Ela só não sabia que chegar em casa e ouvir o silêncio seria tão dolorido. A partir dali, o silêncio sempre fazia com que ela lembrasse que não podia romantizar a vida, que não sabia viver sem amor e que, naquele momento, nem o Cartola agüentava lhe fazer companhia.

sábado, 26 de abril de 2008

Bom dia!

Thiago Floriano
26/04/2008

Olho pro lado. Os olhos ainda não estão bem abertos.
- Bom dia!
- [...]
- Que maravilha de dia. Vamos dar uma volta?
- [...]
- Tudo bem, não quero incomodá-la. Vou levantar da cama.
- [...]
Olho pro lado novamente. Ela não está lá.
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CABUM!!!!!!!!!!!!

Diálogos

- ...
- Que foi?
- Nada.
- Como assim, nada?
- Nada, ué.
- Alguma coisa errada?
- Não.
- Então por que tais assim?
- Assim como?
- Assim seca.
- Como assim, seca?
- Ah, desse teu jeito aí. Nem fala direito comigo.
- Tô falando.
- Mas não direito.
- Tá bom, e como tu queres que eu fale, então?
- Ah, esquece...
- Como esquece? Agora fala.
- Falar o que?
- O que tu querias falar!
- Não quero falar nada não.
- ...
- Tais braba?
- ...
- Que que foi?
- Nada.
- Porque não falas comigo, então?

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Silêncio

— Boa noite! — Abriu a porta e falou cantando, como de costume.

— Nossa, que dia puxado. Tô pregada!

Fechou a porta do quarto e foi guardando as coisas. Só aí o viu de fato.

— Ai, desculpa. Você também, né? Tá tudo bem? Não quer conversar?

Ele continuou esticado.

Sobre a cama, as pernas cruzadas, olhar disperso, expressão cansada.

Calado como sempre.

— Tudo bem, eu sempre falo por nós dois mesmo, né?

Riu e pousou a bolsa na penteadeira.

— O trânsito tava um caos de novo. Teve um acidente na marginal, o maior rolo. Tinha até uns moleques rondando a confusão, cara de que iam assaltar, sei lá. Ainda bem que não aconteceu nada. Ah, e lembra aquele projeto que eu falei semana passada? — Nem adianta fazer essa cara — Eu sei que você não põe muita fé, mas eu acho, ao menos achava, que ia dar certo. Enfim, o cliente pediu um monte de mudanças. Acho que não vai dar pra fazer nada esse fim de semana de novo. Fiquei de entregar o projeto alterado na segunda. Algum conselho?

Ele continuou quieto como sempre, cabeça baixa, cabelos pendentes. Era tarde, ela estava cansada e ele pelo visto não queria conversar hoje de novo. Seria melhor dormir mesmo. Quem sabe amanhã eles poderiam conversar. Quem sabe amanhã ele diria algo.

— Bom, se você não quer conversar acho que vou me trocar pra dormir.

Ele não esboçou nenhuma resposta. Por causa do frio, ela escolheu um moletom velho mesmo. Não achou que ele se importaria. Aproximou-se dele e olhou-o diretamente nos olhos. Nada. Apenas uma estátua. Sentou-se na beirada da cama, afastou as cobertas e deslizou para baixo dele. Sobre o corpo dela ele a olhava com aquele mesmo olhar triste e distante. Seminu, os braços abertos, encostado na parede. O rosto barbado com a coroa sangrando-lhe a testa. Como sempre, calado. Ele nunca dizia nada. Como se não estivesse lá. Em silêncio. Como sempre, em silêncio.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Tema: Silêncio

O tema da próxima rodada é silêncio.

Lembrando que os textos devem ser postados até o dia 26 de Abril, e que vale qualquer estilo literário.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Votação - Bastidores

Votação até o dia 20/04.

Esse ano tá passando rápido demais!

A carta

Thiago Floriano
Meados de 2005

Onze horas da noite, dezoito de agosto de dois mil e oito. Papéis queimando dentro de uma lixeira exalavam o odor característico que já podia ser sentido pelos moradores do edifício Anna Beatriz, no sul da Ilha de Santa Catarina. A fumaça já impregnava os luxuosos móveis do apartamento 1105. O senhor que ali morava, conhecido como Toni, preparara o apartamento como se soubesse que receberia visitas. Ao entrar no local, uma cartolina com os seguintes dizeres: “sejam bem-vindos homens da lei e curiosos de plantão!”. Toni apagou o fogo do cesto de lixo, pois não queria causar transtornos aos seus vizinhos, rumou na direção da janela, e sem olhar para baixo voou em direção ao solo da ilha que o recebera como filho.

“No momento em que vocês encontrarem esta carta já será tarde para fazer algo por minha existência, mas não será tarde para pensar na de vocês!

As pessoas vão perguntar, os jornais vão querer saber... por que Antônio Carlos Gueira de Souza saltou de uma janela?

Eis que estou aqui sentado defronte a um abajur, com uma caneta na mão, um papel estendido na mesa, o computador ligado e a janela aberta. Tudo preparado para o que farei nesta noite fria (para mim mais do que para qualquer um, pois a iminência da morte, mesmo sendo voluntária, dá calafrios).

Todos já ouviram falar em queima de arquivos, não? Pois então, estou eu, aqui, queimando-me como arquivo. Sim, sei demais, coisas que não deveria saber, e que não suportei guardar para mim. Também não tive coragem de contar, até porque não acreditariam no que eu dissesse.

Andei pelos bastidores da política, como bem sabem meus conterrâneos. Morei em Brasília nos últimos doze anos, e como bom contador fiz o que pude para manter as contas de meus clientes em dia. O problema todo foi o fato de eu ter sido incluído no círculo social dos ‘representantes do povo’, que, afirmo veementemente não representarem absolutamente NADA do que é o povo.

Será que fiquei com peso na consciência de ter lutado pelo interesse financeiro desses homens públicos durante todo esse tempo? É uma possibilidade, afinal, o dinheiro que eles me procuravam para declarar era somente, e tão somente uma migalha de tudo o que adquiriam através do peculato. Aliás, o peculato já não é mais um verbete em Brasília, é praticamente uma instituição. É como se os sanguessugas tomassem conta das contas públicas e elas fossem dotadas de artérias no lugar de cofres.

Executivo, legislativo, judiciário, todos os poderes imaginados pelo filósofo iluminista Montesquieu para tornar os governos mais eficientes envolvem-se em falcatruas inimagináveis. Se você acha sujo que aquele seu vizinho ande furtando roupas dos varais, você realmente não tem a mínima noção do que eu falo. Não é o meu dinheiro ou as minhas roupas que eles estão roubando, é a educação do seu filho, a saúde de seus avós, o seu transporte coletivo para o trabalho, a comida da sua família, os momentos de lazer com seus amigos, e tudo aquilo se faz necessário para que um ser humano tenha absoluta dignidade. Aliás, aqueles que se omitem de lutar por seus direitos são condizentes com a essência fraudulenta de nossa política. E é por não conseguir mais suportar esse peso em minhas costas que fiz o que fiz. Não suporto a pressão que a Síndrome de Atlas me causa (na mitologia grega, Atlas foi condenado por Zeus a carregar o mundo nas costas).

Se eu tivesse como provar tudo o que falo, simplesmente iria à mídia e, tenho certeza que alguns poucos veículos (os poucos que não foram corrompidos pelo sistema que impera) veiculariam meus relatos. Mas eles não deixam provas. São cúmplices em crimes perfeitos, até aparecer alguém suficientemente forte, que possa encará-los e mostrar ao povo a corrupção que há no planalto central. E estou certo de que ocorre em outros âmbitos também.

Ah! Já ia me esquecendo, antes que vocês pensem que simplesmente me atirei pela janela, quero que saibam que planejei tudo, nos mínimos detalhes. Roubei, sim! Mas foi só um mailing list atualizado, de um assessor de imprensa cujo nome não citarei. Afinal, com tudo isso que estou dizendo, tenho certeza que a polícia (que também não fica atrás nesse mundo de hipocrisia) não me ajudaria a difundir esta carta. Tomei a liberdade de, além de escrevê-la em papel para que possam ter algo concreto em mãos, envia-la por e-mail para os mais diversos veículos de comunicação, das mais variadas correntes políticas (sim, embora digam que o jornalismo é neutro, eles têm envolvimento político).

Não agüento mais este mundo de hipocrisia, onde milhões passam fome para que alguns saiam em colunas sociais desfilando as novas tendências de Paris. E o pior é que os famintos os admiram, talvez por não saber o motivo, a fonte de tanta exuberância. A sociedade alimenta os sonhos destas pessoas, que raramente conseguem pagar as contas de água e luz. Deixando estas pessoas bem alienadas através da falta de informações, mantém-se a corrente de segredos do planalto com os elos extremamente cerrados, de modo que não se permita a saída de nenhum deles.

De qualquer forma, digo-lhes que bem tentei descobrir uma melhor maneira de tornar pública toda essa sujeira, mas não consegui. Também não pude imaginar uma solução viável para acabar com a trágica situação de Brasília. Perdoem-me, nunca quis o mal para ninguém, fui enganado por minha cobiça como muitos de vocês. Fiquei cego durante muito tempo, e com esta carta tento me redimir da melhor maneira possível.”

De fato, Toni criara uma estratégia interessante para tornar públicos seus dizeres. Como todos os jornais e revistas receberam a carta via internet, não foi possível escondê-la. O escândalo se fez ecoar por todos os cantos do país. Alguns acham que não se tratava de um suicídio, mas alguém que utilizou o contador como forma de se manifestar.

Dentro da lixeira, utilizada por Toni para queimar os papéis, foram encontrados resíduos de fotos. Provavelmente traziam más lembranças ao contador, que não quisera deixar para a posteridade nenhum traço de sua passagem pelo corredor da safadeza política. Quantos homens como Antônio Carlos Gueira de Souza precisarão morrer para que o povo decida fazer algo por si mesmo? Será que um dia encontrarão uma solução para isso tudo? As perguntas não param, mas as soluções também não aparecem. Continuam uns poucos inquietos e insatisfeitos - com a postura irresponsável dos homens públicos - tentando mobilizar as massas, sem sucesso.

O trecho seguinte foi extraído de um jornal local, sendo assinado por um dos cientistas sociais mais respeitados da capital catarinense.

“Toni suicidou-se, segundo ele, para queimar arquivo. Mas na verdade queria apenas manifestar-se e, por não saber como, utilizou sua vida como forma de expressão. É o que muitos fazem hoje em dia, parece que só assim alguém ouve essas pessoas, infelizmente.”

Em questão de alguns anos ninguém mais lembrava de Toni, a não ser sua família e amigos. Não sobrara nenhum vestígio de que o mundo tenha aprendido alguma lição com o contador. Até que outro apareça, a suposta paz continua predominando no país do futebol.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Anamnese

Direto da série "semana cheia, improviso à ceia"...
16/04/08


Pensamentos, pesam centos. São sozinhos, sem vizinhos. Emparedados e para os lados. Angústia, augúrio é hóstia! Sensação sem solução... Encouraçado, mas coração apertado. Que estorvo, este torno! Cauteloso, calmo e nervoso. Confortador, conforto e dor? Reação, reza a ação! Mas permanecem, apenas descem. Camuflados, quase inflados. Mil tormentas, tortas mentes. Ah, cansaço, acabou o aço. Escapável, escape fácil. Sim, libertação, limbo à danação! Bastidores? Ha, basta de dores! Solitude, só uma atitude. Então, enfim... Ah, o fim...

Boa noite

Fábio Ricardo
16/04/08


- Você não apareceu para almoçar hoje de novo, William.
- Tive uma reunião, Fátima.
- Garanto que foi com a Glória, como aquela “reunião” de ontem à noite, que foi até às 2h da madrugada.
- Foi uma reunião, Fátima, você sabe bem.
- Não sei não. Você chegou fedendo a vinho chileno.
“No ar em dez!”
- Não exagera, Fátima. Você sabe muito bem que sou um homem ocupado.
- Sei bem, William. Tanto que não consegue nem ao menos ler as manchetes antes de entrar no ar.
“No ar em cinco!”
- Menos, Fátima, menos. Ninguém aqui tem motivo pra duvidar das minhas capacidades.
- Seu...
“No ar em dois!”
- Boa noite.
- Boa noite.
(...)
- E no próximo bloco...
- Motorista alcoolizado atropela policial, dá a ré, e atropela novamente.
"E... corta!"
- Hahahahahaha, não acredito! Ele deu a ré e atropelou de novo?
- O que é tão engraçado?
- Meu, ele deu a ré e atropelou de novo! Essa eu preciso ver.
- Olha aqui, ó, "senhor importante", essa é uma matéria séria, viu?
- Hahahaha, séria mesmo! Hahahahaahah!
"No ar em cinco!"
- Vocês homens são mesmo todos iguais...
- Atropelou de novo, hahahahahah...
- ...não sabem levar nada a sério...
"No ar em dois!"
- Voltamos com um flagrante de imprudência no trânsito.
- Desafiando a autoridade, um motorista alcoolizado comete um atropelamento absurdo e doentil.
(...)
"E... corta!"
- Hahahaaaha. Absurdo e doentil? Tô me segurando desde aquela hora pra não rir!
- Qual é a graça?
- Absurdo e doentil? Meu, Deus, ele é o ídolo da nossa nação!
- Chega, William, vamos para casa.
- Vai na frente... eu tenho uma reunião agora à noite, chego mais tarde.
- Reunião, William?
- Absurdo e doentil... hahaha... ele deu a ré e atropelou de novo...
- ...
- ...deu a ré e atropelou de novo, hahahaha...

Além da cortina

Longe da ribalta um fantasma esconde a face partida em gesso e carne. No palco, Don Juan Triunfante recebe aplausos afetados. À frente do veludo, luz, em vermelho, a voz soprano cristal.
Enquanto atrás da cortina espia, quase mudo, o Quasímodo.

Corcunda de corpo, de rosto ou de alma.
Torto de coração.
Velado, além do veludo.
Em silêncio.

Enquanto o público ovaciona o rosto, a voz se recolhe atrás da máscara. E um meio sorriso doído se desenha sob a palidez inerte, que sabe que a cortina jamais se erguerá.

O espetáculo

16/04/2008

O ritual era o mesmo. Podia sentir que tudo conspirava a favor de um excelente espetáculo. A platéia crescia, a expectativa aumentava e, com ela, o nervosismo dos minutos que antecediam a apresentação. As noites que vinham depois de um show e antecediam mais um dia de apresentações eram sempre nervosas, mas ela sabia quais armas usar para conseguir descansar.

Levantava-se, ia ao banheiro e tentava deixar que a água do chuveiro levasse para o ralo um pouco da adrenalina que ela sentia com a própria apresentação. Sabia que suas últimas atuações tinham sido as mais pífias já vistas e que a melhora na qualidade de suas falas, seus gestos e principalmente suas ações só dependia dela.

Lembrava-se todos os dias que a temporada estava pra terminar há algum tempo. As renovações de um contrato que poderia ser estendido por toda sua vida causavam calafrios, mas se mostravam mais necessárias a cada dia. Criara laços emocionais com a personagem que faziam dela mais do que uma fase, mais do que um trabalho.

No caminho para o café, via nas paredes cartazes de diversos tamanhos que marcavam uma carreira brilhante, com sorrisos e momentos brilhantes. Tinha na agenda alguns dos expectadores mais importantes que já tivera. Alguns se tornaram fiéis, mantiveram contatos, sentimentos e atenções. Outros ela só conseguia identificar pela legenda, uma prática que adotara há tempos em suas inscrições pessoais.

Sentava-se a mesa depois de receber aquele que considerava o melhor bom dia do mundo. Uma mulher um pouco mais velha, bastante mais experiente que ela sabia que seria sua fã sempre, mesmo que a temporada terminasse. Tomava seu café com adoçante, um dos itens da lista de exigências, que tinha ainda água, música, pijamas, meias e pantufas.

A hora chegara. Nos bastidores, olhava-se. Encarava o par de olhos no espelho, despedia-se. A máscara que usava durante a apresentação não era palpável, não era visível, mas ela podia sentir seu peso. Abriu a porta. A rua estava ali, e seria seu palco para o resto da vida.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Tema

Novo tema quentinho saindo do forno: Bastidores

Boas escritas a todos ;)

Postagens até o dia 16 de abril, quarta-feira.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Votação: Amnésia

Votação aberta para a rodada do tema Amnésia.

Lembre-se, agora os votos de leitor, mais do que nunca, decidem o duelista campeão!

A votação vai até o dia 10 de abril!

Dona Lúcia

Fábio Ricardo
06/04/08


Caminhava pela rua olhando para os lados, com passos descompromissados. Parou por um instante. Algo chamou sua atenção no canteiro, mas não era nada além de uma bela flor. Levantou os olhos das plantas, olhou ao redor e novamente se pôs a caminhar. Antes de completar o primeiro passo, hesitou.

Para onde ia? Não conseguia se lembrar. Saiu de casa para fazer algo em específico, disso tinha certeza. Mas não conseguia se lembrar exatamente o que era. Era uma quinta-feira, dia de feira livre, mas ela estava sem a velha sacola, companheira de compras. Tinha que ser alguma outra coisa.

Lembrou-se do aniversário da filha caçula. Ela faria 12 anos no final de semana. Não teve dúvidas e caminhou até a loja de brinquedos. Chegando lá, cumprimentou um vizinho, que procurava algo na seção de bichos de pelúcia, e foi diretamente para a seção de bonecas. Amanda, a caçula, era fanática por bonecas Barbie.

Demorou-se na decisão e escolheu a mais bela de todas. Conferiu o dinheiro na carteira e caminhou até o caixa.

Quando a atendente pegou a caixa com a boneca vestida de gala, uma expressão de tristeza se tornou óbvia em seu rosto.
- Desculpa, Dona Lúcia, mas eu não posso vender isso pra senhora.
- Ué, e por que não? O dinheiro está todo aqui. – disse colocando as notas no balcão.
- É o presente pra Amanda, né? – questionou a balconista.
- É sim, você acha que ela não vai gostar?

O vizinho que escolhia os ursinhos de pelúcia ouviu a conversa, se aproximou e colocou a mão sobre o ombro de Lúcia, cabisbaixo.
- Dona Lúcia, – se antecipou a balconista – a Amanda já tem 36 anos, Dona Lúcia. Já é mulher feita, tem marido.

A confusão no rosto de Lúcia a entregava. Mesmo assim, ela apenas sorria simpática, enquanto o vizinho a ajudava a caminhar para fora da loja. Lúcia se desculpou pelo engano, “onde estou com a cabeça”, repetiu algumas vezes.

A tristeza tomou a atendente e o vizinho, que se entreolharam. Era a terceira vez esse mês, ela explicou. Lúcia caminhou pela praça sorrindo, um pouco envergonhada. Sua filha e o marido já a procuravam. Encontraram Lúcia na praça, mãos vazias, a perguntar aos transeuntes a direção de sua casa.

domingo, 6 de abril de 2008

Adeus ao romance

06/04/08

Não mais o mesmo ser, não mais como era viver. A lua segue a mesma, as estrelas estão no mesmo lugar. Mas não o observador. Alguma coisa está perdida, ou matada, ou morrida. Relatividade? Sim, não mais me alegro de verdade. Onde estão aqueles sonhos, o apressado bater do coração, a linda, amada e desejada doce depressão? Já eram. Au revoir, velhos amigos, divirtam-se no asilo. O mundo me ensinou que de utopia e devaneio o inferno dos poetas está cheio. Saturado, talvez. Há ainda algum modo não falado de poetizar um coração cortado? Sim, tão importante para quem sente, o sentido da vida em versos. Tão banal para quem lê, papel útil apenas para escrever no verso. Como dizia mesmo a música? Adeus ao romance, ao romantismo. Um homem pode mudar o mundo? Sim, sussurra o idealismo. NÃO, grita o pessimismo. Não mais morrer por uma idéia, não mais matar por um amor. A mente pode fervilhar, mas os membros estão lesos pelo frio exterior. Oh, merda, não é mais o brilho dos olhos que me guia o destino, mas amarelos dentes emoldurados por sorriso cínico...

Eu gostaria de poder ficar cego para tudo o que carrego. Aquilo que o mundo me mostrou, e que a chama interna mutilou. Fogo ou brasas? Não, cinzas e fumaça. Por que enxergar a facilidade com a qual abrem as pernas para fugir de suas trevas? Aqueles que, uma faca na mão e um sorriso complacente, disseram ao demente: "temos que levar em conta a nossa verdade deprimente!". Ver (e sentir, ah, sentir!) que um amor exposto não pode mudar o coração do outro, e que de jogos e mentiras é que se faz a vida. Eu gostaria de esquecer de tudo... Amnésia psicológica, e desta vez não alcoólica. Mas eu tenho os olhos bem abertos, eu sou cientista, eu sou cético. Após ter saído da caverna, as sombras deixam de ser só elas. Sei que só mãos e bocas que mudam o universo, só em prosa, nunca em verso. Corações e mentes? Limitados, dependentes. Me obrigo a ver as coisas como elas são, independente do que versa minha oração. Então heroísmo é egoísmo, e amor apenas reprodução. É por isso mesmo que eu queria uma lobotomia, ou qualquer outra cirurgia, de mente ou de espírito. Que me arranquem da cabeça esta maldita consciência. Me dêem a bênção da ignorância, esconjurando a pobreza e a ganância. E despido o conformismo, me façam verdadeiro, para reavivar o idealismo e - quem sabe - ser feliz por inteiro...

O vazio cheio

Acordou com o barulho de algo que imaginou ser um motor de alguma coisa, uma moto-serra ou qualquer coisa parecida. Coçou os olhos tentando espantar um pouco da preguiça que sentia. Repentinamente, abriu-os. Olhou em volta. Não lembrava como tinha parado ali. Os lençóis de um cetim claro, uma porta branca entreaberta, um armário marfim, luzes indiretas em todo o quarto. Finalmente percebeu algo familiar. Num canto, um tecido vermelho que lembrava alguma coisa que ela não sabia o que era.

Lentamente sentou-se na cama. Virou-se para a direita, colocou os pés no chão. A visão escureceu, percebeu que mesmo com toda a calma que tentou ter levantou-se rápido demais. Ficou em pé. Quase caiu. Apoiou-se novamente na cama. O movimento estranho nos lençóis chamou a sua atenção. A silhueta máscula, e os cabelos morenos que apareciam levemente nos lençóis, causaram um calafrio doído no fundo do estômago. Mas mesmo aquilo lhe era familiar.

Sentou-se novamente, de costas para quem estava lá. Mesmo que tentasse com todas as forças lembrar o nome dele, não conseguia.

- Bom diiiiiiaaaaaa..

- Bom dia.

Enquanto ele se espreguiçava vagarosamente, ela martelava os joelhos com os pulsos fechados. Lembrava-se da voz, já tinha ouvido, não era possível.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não, não. Está tudo bem.

Não podia ser ele. Não. Era bom demais pra ser verdade. Há anos queria acordar ouvindo aquele bom dia, há anos imaginara como seria quando ele estivesse ali. E agora não lembrava de nada. Como será que foi o convite? Onde estava ontem, meu Deus.

- Vamos tomar um banho e chamar o café?

- Pode ser.

Virou-se. Era ele. Os olhos levemente puxados, os cabelos levemente cacheados, e aquele rosto que tornou vários dos seus dias pesados de saudade, de raiva, de emoção. Seu peito saltou e por instinto colocou o corpo nu ao lado do dele.

- Desculpa, mas eu não lembro como vim parar aqui.

- Eu sabia que você só poderia estar fora de si quando me puxou pela gravata no meio da formatura, me beijou, disse que me amava e falou sacanagens no meu ouvido.

- Eu fiz isso?

- Ô, como fez. Você me deixou louco. Nunca imaginei esse tipo de atitude de você, ainda menos que você me dissesse que sempre foi a fim de mim. Somos amigos há anos, e eu nunca esperaria acordar num quarto de motel contigo, e muito menos ainda estar gostando disso.

Ela só queria que não aparecesse um mosquito, um toque de celular ou uma mão para belisca-la e mostrar que aquilo não era verdade. Ficou vermelha, os olhos encheram-se de lágrimas.

- É sério, sua tola. Porque tu não demonstrou o que sentias antes ao invés de me agarrar no meio de um baile cheio de gente conhecida?

- Ah, desculpa. – sentiu o rosto corar – Não lembro de nada disso. Acho que tenho crises de amnésia.

- Certamente todos os Martinis que você tomou ontem pioram o efeito da crise, não é?

Riram, vestiram-se. Ela não sabia como tinha parado naquele motel de luxo, nem como ele estava com ela. Mas esse era o vazio de memória mais cheio de alegria que jamais sentira.

A Ilha sem Memória

Quando deixei Dublin no barco do Capitão Swift, esperava viver as aventuras que o fizeram famoso. Quando lhe disse que queria fazer uma viagem a um lugar inesquecível, ele apenas sorriu um sorriso irlandês e deixou o vento estufar as velas.

Chegamos a Olvidar em menos de duas semanas. A ilha não era grande e logo desembarcamos. A primeira surpresa já foi no porto. Livros. Em que outro porto do mundo os trabalhadores carregariam livros em seus afazeres? E, no entanto, lá estavam eles, consultando seus livros e cadernos no píer. Só mais tarde meu capitão me pôs a par dos fatos. Olvidar era uma ilha sem memória. Por alguma razão a população tinha dificuldade de registrar a memória recente. Pouco depois da puberdade essa habilidade ia definhando até tornar-se praticamente nula. Basta que durmam uma noite para esquecerem tudo o que viveram no dia anterior. Eis o porquê dos livros e cadernos. Cérebros de celulose, arquivos de memórias, agendas e diários. Passavam boa parte do dia anotando tudo o que lhes acontecia, fatos, pensamentos, intenções. E outra boa parte era gasta relendo o que já haviam escrito, consultando alguma memória mais antiga, seja de alguns dias ou vários anos. Era essa amnésia coletiva que ditava a vida em Olvidar.


Os relacionamentos, por exemplo, tornavam-se complicados, uma vez que não era possível lembrar-se do consorte no dia seguinte. Naquela ilha o amor tinha o ritmo intenso e efêmero das paixões. Uma vida sem bodas, mas repleta de primeiros encontros. Conheci um casal que, determinados a permanecerem juntos, criaram um engenhoso sistema. Toda noite dormiam juntos, nus, e com uma página de caderno que dizia que eram casados e contava sua história. Outra cópia dessa página ficava fixada na porta do quarto, que permanecia fechada. Ao acordarem, viam o companheiro ao lado e presumiam que haviam passado a noite juntos. Logo viam a página do caderno e lembravam, melhor seria “descobriam”, que eram casados. Se um deles não dormisse em casa, ao lado do outro, ou mesmo se um deles pegasse no sono por alguns minutos durante o dia, tudo se perderia e eles nem saberiam. Exceto talvez, por uma consulta fortuita em seus cadernos, talvez tarde demais para reatar um casamento esquecido. Ao menos eu devo imaginar que as mulheres não devem brigar com os maridos quando esses esquecem alguma data.


Não bastasse as dificuldades de relacionamento, ainda havia os resultados dessas relações. Não era incomum uma mulher acordar pela manhã e descobrir-se grávida de vários meses. E visto que era virtualmente impossível que os pais se lembrassem de seus filhos, todo cidadão de Olvidar era responsável por qualquer criança na ilha. Toda criança encontrada em casa, na rua, ou em qualquer outro lugar deveria ser protegida e educada como o próprio filho. Creches foram criadas para que as crianças pudessem ser levadas para maior segurança.


A medida que cresciam, as crianças, que ainda possuíam memória, é que ajudavam os adultos. Pela capacidade de ainda reter memórias, os indivíduos como maior potencial na ilha eram os jovens, entre 15 e 17 anos. Já desenvolvidos de corpo e ainda não desprovidos de memória. Alguns desses jovens se tornaram grandes heróis de seu povo, construindo ou atingindo grandes feitos para a o povo Olvidar. Claro que ninguém lembrava de seus feitos, nem mesmo eles. Igualmente havia aqueles que se aproveitavam dessas habilidades apenas em causa própria e se tornaram contraventores cujos crimes, em geral, acabavam esquecidos. Inclusive por eles.


Há muito ainda que escrever sobre esta ilha e seus costumes, mas já é tarde e o dia foi cansativo. Amanhã pela manhã retorno a esses escritos para contar um pouco mais sobre essa ilha inesquecível.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Conceitos

Thiago Floriano
03/abr/08

Acho que estou com amnésia. (...) Ou seria anamnese? (...) Minha memória não está das melhores. Qual a diferença? Amnésia... anamnésia? Por que mesmo estou quebrando cabeça com isso? {...[...(...)...]...} Ah! Claro. Tenho algumas recordações agora. Mas... recordação é amnésia ou anamnese? (...) Não importa. Foi um acidente. (...) Acidente de trânsito ou vascular? Nem lembro o que significa “vascular” mesmo. Deve ser a tal de amnésia. Ou seria a anamnese? [...(...)...] Alguém me ajude, estou confuso. Sim, é isso! A culpa é do Confúcio, seja lá quem for!