A xícara balançava sobre a bandeja e Dênis já alterava seu estado de humor. Não era difícil deixá-lo nervoso, e ver o garçom trêmulo já era o suficiente para uma leve irritação. Não podia ser pior do que o café melado do boteco da esquina, mas mesmo assim ele não podia perdoar. O trajeto da cozinha até a sua mesa parecia durar uma eternidade. Com a xícara à sua frente, olhou fixamente para o jovem que acabara de lhe servir o tão aguardado café preto expresso longo.
- Tua insegurança me dá náuseas!
- Desculpa, senhor, sou novo aqui. – Sussurra o jovem com o queixo quase tocando o próprio peito.
Com um muxoxo e um esboço de sorriso, Dênis pediu que o jovem trouxesse um sanduíche de ricota. Embora estivesse a certa distância, recostado sobre o balcão, o dono da lanchonete percebeu a grosseria do cliente e saiu em defesa de seu novo contratado.
- Posso ajudá-lo, senhor?
- Claro. Saindo da minha frente.
Jônata dá de ombros e atende ao pedido do freguês sem mexer um único músculo da face. Dênis, apesar dos pesares, vinha sendo um bom freqüentador do local nas últimas semanas. Não passava um único dia sem tomar seu café preto e esbanjar um pouco de seu mau-humor. Não falava muito, mas observava tudo atentamente, sem com as pestanas contraídas sobre os olhos.
Nesse dia, parece que ele resolveu não passar despercebido.Esperou o garoto trazer seu lanche e vociferou novamente.
- Não dava pra ser mais lento?
- Desculpa, senhor.
Incomodado com a situação, Jônata caminhou novamente até a mesa de Dênis.
- Há algo que eu possa fazer por você, senhor?
O jovem garçom olhava desconsolado para os dois. Dênis fez um sinal com a cabeça apontando para o jovem.
- Pode ir, garoto, eu cuido desse cliente.
- Bem, agora que estamos a sós posso abrir o jogo contigo. – Comenta Dênis como se nada tivesse acontecido. – Não gosto de pessoas inseguras. Elas me passam uma impressão de fragilidade e incompetência. Pode ver pelo seu garoto. – Apontou.
O jovem estava atrás do balcão lustrando alguns pratos quando Jônatas olhou e, realmente, parecia transtornado e desajeitado.
- Temos que ser um pouco tolerantes. Não faz nem duas semanas que ele começou. É o primeiro emprego dele.
Dênis tinha um ar pensativo. Na verdade ele já havia planejado toda aquela conversa detalhadamente, mas precisava fazer soar como um papo informal de verdade. Foi essa breve pausa que deu a deixa ao garçom, que abriu a caixa registradora, sacou apenas as onças-pintadas, colocando duas notas de vinte reais no lugar, e partiu pela porta dos fundos. Dênis deu um último gole em seu café quase frio, levantou-se lançando o dinheiro da conta sobre a mesa e saiu sem olhar pra trás.
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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Saudade
Espreguiçava-se lentamente e enquanto o edredon percorria o corpo quase nu. O cheiro de café começava a entrar pelo quarto e acordava num forte impulso. Quase conseguia sentir as mãos acariciando sua nuca. Colocou os pés no chão, abriu os olhos e olhou para o travesseiro intacto ao lado. Adorava a saudade, e ainda mais o cheiro que a trazia forte.
E passava todo o dia, o dia todo, com balas de café na boca. Os intervalos com nicotina tornavam o gosto forte ainda mais forte.
Almoçava e ia à cafeteria próxima. A cada dia, um café diferente. Com limão, nozes, mate. Quente, frio, morno, batido, com chantilly ou chocolate. O gosto da lembrança a cada gole, que queimava a língua e aquecia o corpo no inverno gelado.
A tarde voava entre reuniões e cafés ruins, mesmo que cafés. Chegava e antes mesmo que correr para o chuveiro, ligava a cafeteira. Quando saia, com a pele úmida e os cabelos molhados, inspirava o cheiro que já invadia a casa. Sorria, sentindo uma solidão bonita e melancólica. Se saudade fosse café, seria expresso e sem leite. Mas doce, muito doce. Como os dias e as lembranças que acompanham seu dia, todos os dias.
Amargo
Olhava a xícara fumegante na sua frente, parada sobre a mesa. Via seu reflexo no líquido negro, estático. Uma lágrima corria lentamente pela maçã do rosto, até desprender-se da face e atingir com violência a então calma superfície líquida. As pequenas ondas circulares que se formavam desfiguravam seu rosto, mostrando a ele o monstro que era, mas que era visível apenas assim. De olhos vermelhos e inchados, refletidos na mais negra das superfícies.
Colocou a colher dentro do pote de açúcar e a despejou dentro da xícara, como que tentando disfarçar a queda da lágrima. Apenas uma colher, rala. Mexeu até os cristais dissolverem-se e deu seu primeiro gole. O gosto forte encheu a boca e queimou a língua, descendo fumegante pela garganta. Fez uma cara feia, tão treinada pelas doses de tequila consumidas aos pares, mas sempre sozinho.
Levantou o rosto pela primeira vez desde que se sentou naquele café de esquina, bonito e requintado. Seus olhos se encontraram com os da mulher no balcão, mas assim que ela fez uma menção de lhe tomar um novo pedido, ele desviou o olhar. Os olhos pousaram desta vez num casal que se sentava em um sofá mais à frente. Suas risadas eram apaixonadas, e sua visão mais amarga que o mais forte dos cafés.
Não conseguia fixar o olhar em ninguém. Não tinha coragem para assumir uma proximidade tão grande quanto a de um olhar retribuído. Voltou os olhos novamente ao seu café. Colocou a mão esquerda sobre o ombro direito e apertou. Sentiu o músculo tenso reclamar, mas ao mesmo tempo relaxou com aquele quase-abraço, aquela quase-massagem, aquele quase-carinho. Chacoalhou a cabeça, para tirar-lhe da memória.
Evitava, a cada instante, o pensamento nela. Ela, que freqüentava aquele café com ele. Ela, que nem era muito fã de café, mas adorava os salgados do lugar. Ela, que não gostava do cheiro da cerveja, fazendo com que ele se tornasse um amante de um bom café. Ela, que estava a duas quadras dali, mas a uma eternidade de distância dele. Ela, que se tornara tão amarga quanto aquele café.
Colocou a colher dentro do pote de açúcar e a despejou dentro da xícara, como que tentando disfarçar a queda da lágrima. Apenas uma colher, rala. Mexeu até os cristais dissolverem-se e deu seu primeiro gole. O gosto forte encheu a boca e queimou a língua, descendo fumegante pela garganta. Fez uma cara feia, tão treinada pelas doses de tequila consumidas aos pares, mas sempre sozinho.
Levantou o rosto pela primeira vez desde que se sentou naquele café de esquina, bonito e requintado. Seus olhos se encontraram com os da mulher no balcão, mas assim que ela fez uma menção de lhe tomar um novo pedido, ele desviou o olhar. Os olhos pousaram desta vez num casal que se sentava em um sofá mais à frente. Suas risadas eram apaixonadas, e sua visão mais amarga que o mais forte dos cafés.
Não conseguia fixar o olhar em ninguém. Não tinha coragem para assumir uma proximidade tão grande quanto a de um olhar retribuído. Voltou os olhos novamente ao seu café. Colocou a mão esquerda sobre o ombro direito e apertou. Sentiu o músculo tenso reclamar, mas ao mesmo tempo relaxou com aquele quase-abraço, aquela quase-massagem, aquele quase-carinho. Chacoalhou a cabeça, para tirar-lhe da memória.
Evitava, a cada instante, o pensamento nela. Ela, que freqüentava aquele café com ele. Ela, que nem era muito fã de café, mas adorava os salgados do lugar. Ela, que não gostava do cheiro da cerveja, fazendo com que ele se tornasse um amante de um bom café. Ela, que estava a duas quadras dali, mas a uma eternidade de distância dele. Ela, que se tornara tão amarga quanto aquele café.
sábado, 14 de fevereiro de 2009
Café, sangue e ouro
Longe, longe, trabalhar, trabalhar. Andar, pegar um ramo, puxar. Grãos vermelhos como sangue para beberem o suor do seu trabalho. Bebida negra, negra como a pele marcada. Cicatrizes de sonhos nunca realizados, de fuga e liberdade. Tão negros quanto o líquido que jamais beberá, os restos dos porcos revolvem em seu estômago enquanto trabalha. Do negror ao negror, sem descanso nos píncaros da claridade. Claridade que traz calor, calor e tontura, que o impede de pensar, tornando-o uma marionete ao chicote do feitor. Feitor claro como o sol irradiante, não conseguiria viver um dia sob este, por isso se esconde nas horas infernais.
Ele segue trabalhando, pois não consegue raciocinar. Sua mente alquebrada não compreende aquilo tudo. Não vê o mundo com olhos claros, para ele a vida é ser escravo. Mal se lembra de uma terra distante, do mesmo modo escaldante, onde o sol não sobe ao céu e é a noite que domina. Um mundo não tão diferente, de dor e sofrimento, apenas onde o negro é escravo, mas também senhor.
Ele fraqueja, arqueia pernas e se permite um segundo de descanso. Descansa olhando para a cesta, tão cheia de riqueza. Ao alcance de suas mãos, mas distante de seu cérebro. Não tem noção do que aqueles grãos fazem girar. Em um mundo já pequeno, seu esforço viaja oceanos para agradar a povos longínquos, planetas diferentes compartilhando o mesmo astro. Os senhores se refestelam em rios de café, sangue e ouro, enquanto o negro apenas pode suar. Suar e sorrir com dentes amarelados. Pois, diante de uma trilha sem saídas, lhe resta apenas renegar os sonhos e viver da realidade, sem se render à insanidade, e bailar ao som de antigos delírios tribais. Tribos sem nome perdidas no passado, em uma consciência que não recapitula ancestrais.
O feitor não se furta a enfrentar o sol para checar quem está parado. Ele volta a trabalhar com vigor, quando o sol se aproxima. O branco não enxerga humanos, cuida de seus animais como faria com as reses. Escravo e senhor, não se vêem como irmãos, pois sabem que não o são. Incompreendidos pela história, tanto Yin quanto Yang, condenados e beatificados em um futuro que não se importa com contexto. A mesma história em todos os tempos, tempos que se repetem, ciclos naturais. Café, sangue e ouro, dominador e dominado, um universo de desiguais.
Ele segue trabalhando, pois não consegue raciocinar. Sua mente alquebrada não compreende aquilo tudo. Não vê o mundo com olhos claros, para ele a vida é ser escravo. Mal se lembra de uma terra distante, do mesmo modo escaldante, onde o sol não sobe ao céu e é a noite que domina. Um mundo não tão diferente, de dor e sofrimento, apenas onde o negro é escravo, mas também senhor.
Ele fraqueja, arqueia pernas e se permite um segundo de descanso. Descansa olhando para a cesta, tão cheia de riqueza. Ao alcance de suas mãos, mas distante de seu cérebro. Não tem noção do que aqueles grãos fazem girar. Em um mundo já pequeno, seu esforço viaja oceanos para agradar a povos longínquos, planetas diferentes compartilhando o mesmo astro. Os senhores se refestelam em rios de café, sangue e ouro, enquanto o negro apenas pode suar. Suar e sorrir com dentes amarelados. Pois, diante de uma trilha sem saídas, lhe resta apenas renegar os sonhos e viver da realidade, sem se render à insanidade, e bailar ao som de antigos delírios tribais. Tribos sem nome perdidas no passado, em uma consciência que não recapitula ancestrais.
O feitor não se furta a enfrentar o sol para checar quem está parado. Ele volta a trabalhar com vigor, quando o sol se aproxima. O branco não enxerga humanos, cuida de seus animais como faria com as reses. Escravo e senhor, não se vêem como irmãos, pois sabem que não o são. Incompreendidos pela história, tanto Yin quanto Yang, condenados e beatificados em um futuro que não se importa com contexto. A mesma história em todos os tempos, tempos que se repetem, ciclos naturais. Café, sangue e ouro, dominador e dominado, um universo de desiguais.
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
O Último Café de Peter.
— Olá, Peter.
— Hã...desculpa, nós nos conhecemos?
— Sim, claro. Eu conheço você.
— Como assim?
— Peter, nós precisamos conversar. Você não se importa se eu me sentar com você, não é? Bom.
— Olha, amigo, desculpa mas... tem alguma coisa que eu posso fazer por você?
— Não, Peter. Infelizmente já não há nada que você possa fazer por mim. Nada.
— Então com licença que o meu café tá esfriando, beleza?
— Calma, rapaz. Eu só quero falar com você.
— Mas eu não tenho certeza se quero falar com você. Nem te conheço e você já vem sentando na minha mesa. Dá pra fazer o favor de escolher outra mesa? O lugar tá vazio. Escolhe qualquer mesa. Aquela lá perto da janela. Aproveita e aprecia a vista.
— Não. Eu prefiro aqui no canto. É bem mais aconchegante. E mais... discreto.
— Péra lá! Você não tá me cantando, tá?
— Ah, ah, ah! Não. Pode ficar tranqüilo, Peter. Não é nada disso.
— Você vem aqui, senta na minha mesa e começa a falar um monte de coisas sem sentido. Dá pra fazer o favor de explicar? Eu to tentando tomar o meu café em paz. Aliás, como você sabe o meu nome?
— Ah, Peter. Eu sei muitas coisas sobre você. Na verdade, acho que eu sei tudo sobre você.
— Olha, cara. Não sei qual é a sua, mas se você não vai trocar de mesa, me dá licença que eu vou...
— Sente-se! Sente-se e tome seu café. Você não vai a lugar nenhum.
— Eu, er... olha, quem é você? Se é dinheiro que você quer...
— Eu não quero dinheiro. Na verdade não quero mais nada de você. É por isso que estou aqui.
— Olha, senhor, eu não tô entendendo nada. Quem é você, como me conhece, como sabe o meu nome?
— Como eu disse, Peter, eu sei tudo sobre você. Do seu nome ao seu endereço. Sei que você gosta de duas colheres de açúcar no seu café. E sei que a segunda é sempre menos cheia do que a primeira. Sei que você vem aqui quase todos os dias ao fim da tarde, pede um café e fica lendo revistas. Eu sei tudo sobre você. Eu sei coisas sobre você que nem você sabe. Assim como no fundo eu sabia que eu dia nós teríamos que ter essa conversa.
— Quem, quem é você? Você tá me seguindo?
— Eu não preciso seguir você para saber dessas coisas. Peter, eu sou seu Criador.
— Meu o quê!?
— Eu sei que você não acredita em mim e acha que sou louco. Mas eu sei disso justamente porque eu o criei um cético. Fui eu quem criou você e todo esse mundo a sua volta.
— Você quer dizer... você é... Deus? Rá! Eu devo estar maluco!
— Hum... É, talvez seja assim que você me veja. Eu não esperava esse ponto de vista... Mas, não. Eu não sou Deus. Sou simplesmente seu Criador.
— Criador? Como assim?
— Esse café que você está tomando, você próprio, até esse corpo que eu estou usando agora. Tudo isso é obra minha. Minha criação. Você é minha criação. Eu criei você!
— Ih, acho que não, hein! Quem me criou foi minha mãe, lá no Paraná.
— Tem certeza?
— Claro que sim. Do que você tá falando?
— Essas suas lembranças... da sua infância, do seu passado... você tem certeza que as viveu? Que elas realmente aconteceram?
— Claro, ué? Você acha que eu inventei isso?
— De forma alguma. Eu sei que você não inventou nada. Eu as inventei. Fui eu quem criou essas suas memórias, o seu passado. Fui eu quem lhe implantou essas lembranças. Lembranças que você tem, mas jamais viveu. Lembranças que eu criei e lhe dei.
— Hã?
— As suas lembranças de criança, por exemplo. Cada passo seu foi arquitetado por mim. Eu criei essas lembranças para que você tivesse um passado. Peter, você nunca foi criança. Você nunca teve que aprender a andar, você nunca quebrou seu braço quando caiu do trepa-trepa na segunda série. De fato, você nunca caiu daquele trepa-trepa. Que por sinal, também nunca existiu. São apenas lembranças. Um passado criado por mim para você. Para que você tivesse uma história.
— Do que você tá falando?! Você fez alguma coisa comigo? Algum tipo de experiência? É isso? Eu sou só um rato de laboratório pra você?
— Não, não. Não foi nenhuma experiência. Essas lembranças já foram criadas com você. Veja: você não poderia existir sem um passado, sem uma história. Ninguém simplesmente existe. Por isso quando criei você também criei a sua história.
— Tá. Você não é Deus, nem um cientista e também não parece nenhum alienígena que me abduziu. Quem é você, afinal?
— Seu Criador.
— Meu Criador.
— Seu Criador.
— E você também criou todo o resto.
— Tudo que você conhece.
— E você quer que eu acredite nisso?
— Você não precisa acreditar. Mas sim, eu gostaria que você entendesse.
— Como é que eu vou entender? O que é o “Criador”, afinal? Você é um tipo de força superior que criou a existência e agora está aqui tomando um café comigo.... peraí, da onde veio o seu café? A moça não trouxe.
— Não ela não trouxe.
— Então...
— Sim. Eu criei isso também.
— Por quê?
— Porque eu gosto de café.
— Não, não. Porque você me criou. Porque você criou o mundo, a existência, sei lá. E o que você tá fazendo aqui?
— Na verdade o princípio é o mesmo. Eu criei tudo isso porque eu gosto. Porque me dá prazer. Assim como esse café. Porque simplesmente gosto de criar.
— Então eu só sou um joguete num teatro cósmico?
— Meio melodramático, você, não?
— Ué, não foi você que me criou assim?
— Talvez eu tenha exagerado na dose de sarcasmo. Mas sim. Que bom que você está começando a compreender.
— Tudo bem. Digamos que eu engula esse papo todo, que você me criou, criou a existência...
— Essa existência. A sua existência.
— Então existem outras?
— Mas é claro! Uma infinidade.
— E você criou todas elas?
— Não, não. Apenas algumas.
— E quem criou as outras?
— Não sei. Algumas delas foram criadas por outros como eu. Mas outras, ou ao menos outra, não sei quem criou.
— Outra? Você quer dizer a sua?
— Isso.
— Então existem outros como você e outros ainda acima de você nessa história de criação, de existência e tudo mais?
— Creio que sim, mas não sei se há como ter certeza.
— E eu? Então eu sou a base da pirâmide? O último elo da cadeia?
— Não necessariamente. Você também poderia ser um Criador.
— Como assim? Tipo ter um aquário de peixes?
— Não, nada disso. Veja: com um aquário, você estaria dando condições dos peixes viverem em um ambiente. Mas você não criou os peixes. Você apenas os colocaria no aquário.
— Então como?
— Você gosta de ler, certo?
— Certo.
— Qual seu escritor favorito?
— Você já não deveria saber isso?
— Eu já sei: Pedro Mondebaján. Só estava tentando criar um clima de conversa normal.
— Desculpa aí, seu Criador, mas de normal essa conversa não tem nada.
— Tem razão, deve ser bem estranho para você. Voltemos ao seu escritor favorito então, que também é uma criação minha, se é isso que você está imaginando.
— Ele é?
— É, mas isso não vem ao caso.
— Quando Mondebaján escreve suas narrativas, ele cria sua própria história. Seu próprio universo, seus personagens, as personalidades destes personagens, toda aquela existência.
— Quer dizer que se eu escrever uma narrativa, eu também seria um Criador?
— Exatamente. Dentro daquele pequeno universo, daquela pequena existência, você seria o Criador. E seus personagens provavelmente veriam você assim como hoje você me vê.
— Então os personagens de Pedro Mondebaján são criações dele? E ele é o criador daquele universo?
— Em teoria. Mas veja, Pedro Mondebaján também é minha criação. Assim como a personalidade e a história dele. Logo as histórias criadas por ele, são na verdade, minha criação. Entendeu?
— Putz, pior é que entendi. Então, se eu criar alguma coisa, um romance por exemplo, eu seria o Criador daquele universo, certo?
— Isso.
— Mas se, como você disse, você me criou, a minha imaginação, os meus anseios e personalidade, também seriam fruto da sua criação.
— Você está pegando o jeito, Peter.
— Logo as minhas criações são na verdade, suas criações!
— Hum, de certa forma...
— Logo eu não posso ser um Criador, porque minhas criações na verdade são suas.
— Raciocínio interessante...
— Você parece surpreso.
— Na verdade estou um pouco.
— Mas como? Se, teoricamente, foi você quem me criou? Você deveria saber que eu chegaria a esse raciocínio. Ou não?
— Não sei... Talvez de alguma forma, as criações tenham certo livre-arbítrio afinal de contas...
— Tipo, um destino não traçado?
— Mais ou menos. Como se os personagens que criamos para viver as histórias criadas por nós, tivessem alguma forma de vida própria, uma pseudo-independência.
— Você quer dizer que a relação é mais ou menos essa? Tipo, você como Criador, é como se fosse um escritor e eu, supostamente sua criação, seria um personagem que vive uma história que você criou?
— Exatamente. Finalmente você entendeu.
— Bom, confesso que ao menos é uma analogia interessante.
— Não é não.
— Não é?
— Não.
— Por quê?
— Porque não é uma analogia.
— ?
— Não é como se um fosse um escritor e você meu personagem. É exatamente isso. Você é um personagem. Não há analogia alguma nisso. Nenhuma metáfora nem qualquer outra figura de linguagem. Você é um de meus personagens.
— Você quer dizer que você é um escritor e eu sou um personagem criado para algum romance.
— Um texto, na verdade. Um diálogo de poucas páginas. Não sei se vai ser uma peça, um conto ou só mais um arquivo perdido no meu HD. Mas definitivamente não um romance.
— Então quer dizer que eu não existo?
— Olhe a sua volta. É claro que você existe!
— Mas eu sou real?
— Se você pensar bem, o que é real? A cor da minha roupa, por exemplo, chega a você através dos seus olhos, que enxerga os raios de luz refletidos nela como sendo marrons. Mas na verdade, você não tem como dizer se ela é de fato marrom, tem?
— Acho que não?
— Claro que não. Mas você diz que é real. Veja, quando eu coloco a sua colher dentro deste copo com água, (não faça essa cara. Eu já criei uma xícara de café na sua frente. Qual o problema de criar um copo d’água?) ela parece estar partida. Os seus olhos a enxergam partida. Mas será que ela realmente está?
— Ilusão de ótica?
— A idéia é essa. Mas estenda o conceito a todos os sentidos. A tudo. Digamos que assim como os seus olhos podem lhe enganar e faze-lo perceber as coisas diferentes, todos os sentidos façam o mesmo. Logo você não poderia saber se uma parede realmente é lisa, se o café realmente já esfriou, se seu cheiro realmente continua exalando ou se os sons que você ouve, são realmente como você os ouve. Dessa forma, o que é real?
— Não entendi.
— Você é tão real quanto qualquer coisa. Afinal, ninguém sabe o que é realmente real. Depende de como você, e qualquer objeto, interage com o universo no qual está inserido.
— Então nada é real.
— Nada, tudo. Qual a diferença? O que importa é que você é tão real quanto qualquer coisa.
— Tanto quanto qualquer coisa neste universo, nessa existência, você quer dizer.
— Pode ser.
— Bom, se eu sou seu personagem, você deve ter me criado para viver alguma história.
— Certamente.
— Que tipo de história?
— Esse é o problema. Na verdade é por isso que eu queria falar com você desde o começo.
— Sobre a minha história?
— Na verdade o problema é que não há história. Não consegui criar nenhuma história para você. Estou sem idéias. Pode chamar de um “bloqueio”.
— Como assim? Tem que ter uma história, não tem? Não pode ter um personagem sem uma história, pode?
— Receio que não, Peter. Sinto muito.
— O que quer dizer? Que cara é essa?
— Receio que sem histórias não possam haver personagens.
— Ei! O que você vai fazer? Péra aí!
— Sinto muito. Não é algo que eu queira fazer, Peter. Mas toda história precisa de um ponto final. Mesmo essa.
— Espera! Não!
— Adeus, Peter. Sinto Muito.
FIM.
— Hã...desculpa, nós nos conhecemos?
— Sim, claro. Eu conheço você.
— Como assim?
— Peter, nós precisamos conversar. Você não se importa se eu me sentar com você, não é? Bom.
— Olha, amigo, desculpa mas... tem alguma coisa que eu posso fazer por você?
— Não, Peter. Infelizmente já não há nada que você possa fazer por mim. Nada.
— Então com licença que o meu café tá esfriando, beleza?
— Calma, rapaz. Eu só quero falar com você.
— Mas eu não tenho certeza se quero falar com você. Nem te conheço e você já vem sentando na minha mesa. Dá pra fazer o favor de escolher outra mesa? O lugar tá vazio. Escolhe qualquer mesa. Aquela lá perto da janela. Aproveita e aprecia a vista.
— Não. Eu prefiro aqui no canto. É bem mais aconchegante. E mais... discreto.
— Péra lá! Você não tá me cantando, tá?
— Ah, ah, ah! Não. Pode ficar tranqüilo, Peter. Não é nada disso.
— Você vem aqui, senta na minha mesa e começa a falar um monte de coisas sem sentido. Dá pra fazer o favor de explicar? Eu to tentando tomar o meu café em paz. Aliás, como você sabe o meu nome?
— Ah, Peter. Eu sei muitas coisas sobre você. Na verdade, acho que eu sei tudo sobre você.
— Olha, cara. Não sei qual é a sua, mas se você não vai trocar de mesa, me dá licença que eu vou...
— Sente-se! Sente-se e tome seu café. Você não vai a lugar nenhum.
— Eu, er... olha, quem é você? Se é dinheiro que você quer...
— Eu não quero dinheiro. Na verdade não quero mais nada de você. É por isso que estou aqui.
— Olha, senhor, eu não tô entendendo nada. Quem é você, como me conhece, como sabe o meu nome?
— Como eu disse, Peter, eu sei tudo sobre você. Do seu nome ao seu endereço. Sei que você gosta de duas colheres de açúcar no seu café. E sei que a segunda é sempre menos cheia do que a primeira. Sei que você vem aqui quase todos os dias ao fim da tarde, pede um café e fica lendo revistas. Eu sei tudo sobre você. Eu sei coisas sobre você que nem você sabe. Assim como no fundo eu sabia que eu dia nós teríamos que ter essa conversa.
— Quem, quem é você? Você tá me seguindo?
— Eu não preciso seguir você para saber dessas coisas. Peter, eu sou seu Criador.
— Meu o quê!?
— Eu sei que você não acredita em mim e acha que sou louco. Mas eu sei disso justamente porque eu o criei um cético. Fui eu quem criou você e todo esse mundo a sua volta.
— Você quer dizer... você é... Deus? Rá! Eu devo estar maluco!
— Hum... É, talvez seja assim que você me veja. Eu não esperava esse ponto de vista... Mas, não. Eu não sou Deus. Sou simplesmente seu Criador.
— Criador? Como assim?
— Esse café que você está tomando, você próprio, até esse corpo que eu estou usando agora. Tudo isso é obra minha. Minha criação. Você é minha criação. Eu criei você!
— Ih, acho que não, hein! Quem me criou foi minha mãe, lá no Paraná.
— Tem certeza?
— Claro que sim. Do que você tá falando?
— Essas suas lembranças... da sua infância, do seu passado... você tem certeza que as viveu? Que elas realmente aconteceram?
— Claro, ué? Você acha que eu inventei isso?
— De forma alguma. Eu sei que você não inventou nada. Eu as inventei. Fui eu quem criou essas suas memórias, o seu passado. Fui eu quem lhe implantou essas lembranças. Lembranças que você tem, mas jamais viveu. Lembranças que eu criei e lhe dei.
— Hã?
— As suas lembranças de criança, por exemplo. Cada passo seu foi arquitetado por mim. Eu criei essas lembranças para que você tivesse um passado. Peter, você nunca foi criança. Você nunca teve que aprender a andar, você nunca quebrou seu braço quando caiu do trepa-trepa na segunda série. De fato, você nunca caiu daquele trepa-trepa. Que por sinal, também nunca existiu. São apenas lembranças. Um passado criado por mim para você. Para que você tivesse uma história.
— Do que você tá falando?! Você fez alguma coisa comigo? Algum tipo de experiência? É isso? Eu sou só um rato de laboratório pra você?
— Não, não. Não foi nenhuma experiência. Essas lembranças já foram criadas com você. Veja: você não poderia existir sem um passado, sem uma história. Ninguém simplesmente existe. Por isso quando criei você também criei a sua história.
— Tá. Você não é Deus, nem um cientista e também não parece nenhum alienígena que me abduziu. Quem é você, afinal?
— Seu Criador.
— Meu Criador.
— Seu Criador.
— E você também criou todo o resto.
— Tudo que você conhece.
— E você quer que eu acredite nisso?
— Você não precisa acreditar. Mas sim, eu gostaria que você entendesse.
— Como é que eu vou entender? O que é o “Criador”, afinal? Você é um tipo de força superior que criou a existência e agora está aqui tomando um café comigo.... peraí, da onde veio o seu café? A moça não trouxe.
— Não ela não trouxe.
— Então...
— Sim. Eu criei isso também.
— Por quê?
— Porque eu gosto de café.
— Não, não. Porque você me criou. Porque você criou o mundo, a existência, sei lá. E o que você tá fazendo aqui?
— Na verdade o princípio é o mesmo. Eu criei tudo isso porque eu gosto. Porque me dá prazer. Assim como esse café. Porque simplesmente gosto de criar.
— Então eu só sou um joguete num teatro cósmico?
— Meio melodramático, você, não?
— Ué, não foi você que me criou assim?
— Talvez eu tenha exagerado na dose de sarcasmo. Mas sim. Que bom que você está começando a compreender.
— Tudo bem. Digamos que eu engula esse papo todo, que você me criou, criou a existência...
— Essa existência. A sua existência.
— Então existem outras?
— Mas é claro! Uma infinidade.
— E você criou todas elas?
— Não, não. Apenas algumas.
— E quem criou as outras?
— Não sei. Algumas delas foram criadas por outros como eu. Mas outras, ou ao menos outra, não sei quem criou.
— Outra? Você quer dizer a sua?
— Isso.
— Então existem outros como você e outros ainda acima de você nessa história de criação, de existência e tudo mais?
— Creio que sim, mas não sei se há como ter certeza.
— E eu? Então eu sou a base da pirâmide? O último elo da cadeia?
— Não necessariamente. Você também poderia ser um Criador.
— Como assim? Tipo ter um aquário de peixes?
— Não, nada disso. Veja: com um aquário, você estaria dando condições dos peixes viverem em um ambiente. Mas você não criou os peixes. Você apenas os colocaria no aquário.
— Então como?
— Você gosta de ler, certo?
— Certo.
— Qual seu escritor favorito?
— Você já não deveria saber isso?
— Eu já sei: Pedro Mondebaján. Só estava tentando criar um clima de conversa normal.
— Desculpa aí, seu Criador, mas de normal essa conversa não tem nada.
— Tem razão, deve ser bem estranho para você. Voltemos ao seu escritor favorito então, que também é uma criação minha, se é isso que você está imaginando.
— Ele é?
— É, mas isso não vem ao caso.
— Quando Mondebaján escreve suas narrativas, ele cria sua própria história. Seu próprio universo, seus personagens, as personalidades destes personagens, toda aquela existência.
— Quer dizer que se eu escrever uma narrativa, eu também seria um Criador?
— Exatamente. Dentro daquele pequeno universo, daquela pequena existência, você seria o Criador. E seus personagens provavelmente veriam você assim como hoje você me vê.
— Então os personagens de Pedro Mondebaján são criações dele? E ele é o criador daquele universo?
— Em teoria. Mas veja, Pedro Mondebaján também é minha criação. Assim como a personalidade e a história dele. Logo as histórias criadas por ele, são na verdade, minha criação. Entendeu?
— Putz, pior é que entendi. Então, se eu criar alguma coisa, um romance por exemplo, eu seria o Criador daquele universo, certo?
— Isso.
— Mas se, como você disse, você me criou, a minha imaginação, os meus anseios e personalidade, também seriam fruto da sua criação.
— Você está pegando o jeito, Peter.
— Logo as minhas criações são na verdade, suas criações!
— Hum, de certa forma...
— Logo eu não posso ser um Criador, porque minhas criações na verdade são suas.
— Raciocínio interessante...
— Você parece surpreso.
— Na verdade estou um pouco.
— Mas como? Se, teoricamente, foi você quem me criou? Você deveria saber que eu chegaria a esse raciocínio. Ou não?
— Não sei... Talvez de alguma forma, as criações tenham certo livre-arbítrio afinal de contas...
— Tipo, um destino não traçado?
— Mais ou menos. Como se os personagens que criamos para viver as histórias criadas por nós, tivessem alguma forma de vida própria, uma pseudo-independência.
— Você quer dizer que a relação é mais ou menos essa? Tipo, você como Criador, é como se fosse um escritor e eu, supostamente sua criação, seria um personagem que vive uma história que você criou?
— Exatamente. Finalmente você entendeu.
— Bom, confesso que ao menos é uma analogia interessante.
— Não é não.
— Não é?
— Não.
— Por quê?
— Porque não é uma analogia.
— ?
— Não é como se um fosse um escritor e você meu personagem. É exatamente isso. Você é um personagem. Não há analogia alguma nisso. Nenhuma metáfora nem qualquer outra figura de linguagem. Você é um de meus personagens.
— Você quer dizer que você é um escritor e eu sou um personagem criado para algum romance.
— Um texto, na verdade. Um diálogo de poucas páginas. Não sei se vai ser uma peça, um conto ou só mais um arquivo perdido no meu HD. Mas definitivamente não um romance.
— Então quer dizer que eu não existo?
— Olhe a sua volta. É claro que você existe!
— Mas eu sou real?
— Se você pensar bem, o que é real? A cor da minha roupa, por exemplo, chega a você através dos seus olhos, que enxerga os raios de luz refletidos nela como sendo marrons. Mas na verdade, você não tem como dizer se ela é de fato marrom, tem?
— Acho que não?
— Claro que não. Mas você diz que é real. Veja, quando eu coloco a sua colher dentro deste copo com água, (não faça essa cara. Eu já criei uma xícara de café na sua frente. Qual o problema de criar um copo d’água?) ela parece estar partida. Os seus olhos a enxergam partida. Mas será que ela realmente está?
— Ilusão de ótica?
— A idéia é essa. Mas estenda o conceito a todos os sentidos. A tudo. Digamos que assim como os seus olhos podem lhe enganar e faze-lo perceber as coisas diferentes, todos os sentidos façam o mesmo. Logo você não poderia saber se uma parede realmente é lisa, se o café realmente já esfriou, se seu cheiro realmente continua exalando ou se os sons que você ouve, são realmente como você os ouve. Dessa forma, o que é real?
— Não entendi.
— Você é tão real quanto qualquer coisa. Afinal, ninguém sabe o que é realmente real. Depende de como você, e qualquer objeto, interage com o universo no qual está inserido.
— Então nada é real.
— Nada, tudo. Qual a diferença? O que importa é que você é tão real quanto qualquer coisa.
— Tanto quanto qualquer coisa neste universo, nessa existência, você quer dizer.
— Pode ser.
— Bom, se eu sou seu personagem, você deve ter me criado para viver alguma história.
— Certamente.
— Que tipo de história?
— Esse é o problema. Na verdade é por isso que eu queria falar com você desde o começo.
— Sobre a minha história?
— Na verdade o problema é que não há história. Não consegui criar nenhuma história para você. Estou sem idéias. Pode chamar de um “bloqueio”.
— Como assim? Tem que ter uma história, não tem? Não pode ter um personagem sem uma história, pode?
— Receio que não, Peter. Sinto muito.
— O que quer dizer? Que cara é essa?
— Receio que sem histórias não possam haver personagens.
— Ei! O que você vai fazer? Péra aí!
— Sinto muito. Não é algo que eu queira fazer, Peter. Mas toda história precisa de um ponto final. Mesmo essa.
— Espera! Não!
— Adeus, Peter. Sinto Muito.
FIM.
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