A grama reclamava com estalidos gélidos sob a cristalina capa que abraçava as folhas ainda adormecidas naquela manhã fria. Do nevoeiro baixo que cobria o solo, se erguia uma figura sombria, protegida do frio pelo sobretudo escuro. O respirar lançava nuvens por sob o bigode meticulosamente aparado. E sob as sobrancelhas escuras, dois olhos soturnos perscrutavam a neblina. Aguardava paciente, segurando a maleta pendente em uma mão enluvada enquanto a outra procurava abrigo no interior do bolso. Aguardava o tempo passar aquecendo a memória com a lembrança de um barril de Amontillado. Às exatas seis horas um novo vulto divisou-se além da neblina. Cada passo estraçalhava a grama fria e quebradiça. Mais uns passos e fez-se visível a figura esguia. Uma testa proeminente e alta encimava-lhe a fronte, donde pendiam para trás as já não tão vastas madeixas, em longas ondas até a altura do maxilar. Um bigode desenhava-se sobre o lábio superior enquanto um tufo de barba pendurava-se do inferior. As duas figuras olharam-se e, com um movimento de cabeça, cumprimentaram-se.
— Bons dias, Mestre William — disse o homem que aguardava com a maleta.
— Se bons fossem os dias, estaríamos nós a ensaiar uma comédia e não a atuar uma tragédia, Edgar.
— A tragédia fostes vós que escrevestes. A mim cabe apenas dirigi-la e assisti-la.
— Pois prepara a platéia que ora chega mais um ator. Quem vem lá, que singra o nevoeiro qual espectro assombrado?
Silenciosa, a figura surgiu da neblina como quem vem de outro mundo. No alto da cabeça um chapéu marcava-lhe a silhueta, no pescoço uma gravata borboleta fechava-lhe o colarinho engomado. Por trás do par de óculos tremeluziam olhos serenos, mas que continham uma miríade de olhares, como uma represa que sustenta calmamente águas revoltas, mas que pode romper-se a qualquer momento.
— Acalma-te, bardo, que não é espectro que se aproxima. Já não há tanto entre o céu e a terra. Não é fantasma régio que chega, é teu algoz que se apresenta em Pessoa — provocou o recém-chegado.
— Pois vem, biltre, que se hoje és Montecchio, sou Capuleto.
— Chama-me como quiseres, que nomes não me faltam.
Os dois acercaram-se, os olhares trocando insultos. O homem da maleta aproximou-se, abriu a valise e entregou a cada um dos oponentes uma longa adaga. Os dois combatentes guardaram distância enquanto o portador da maleta se afastava com ela vazia. Em algum lugar um corvo crocitava um malfadado epílogo. Ao fim do dia apenas um dos antagonistas retornaria para casa. O outro, nunca mais.
— Pronto, inglês, cá estou de pena
— Medida por medida, português. Se queres domar o papel, é preciso aprender a usar a caneta. Em ti, a vida já é apenas uma sombra ambulante, cheia de fúria e muito barulho, mas que nada significa.
— Teus versos são profundos, mas os escritos de tua lâmina são rasos. Vê, sou ainda página em branco.
— Cão vil, mordes o polegar para mim? Quem és para confrontar-me com tal desonra? Acaso escrevestes sob o égide da Rainha Virgem? Acaso escrevestes para reis?
— Se é Reis que queres, Mestre William, Reis terás. Vem, Ricardo, que Shakespeare te espera!
Por trás dos óculos fulgurou um brilho intenso e o nevoeiro ao redor do poeta dançou. De trás de sua imagem surgiu, como vindo de um mundo de sombras, outro homem. Lado a lado, mal podia-se dizer quem era quem. Não fosse pela ausência dos óculos, os dois homens seriam iguais.
— Traz reforço, poeta? Pois bem! Se tu trais-me com novo combatente, traio-te com um conterrâneo. É agora, José!
Um estampido soou seco na manhã e Ricardo Reis pôs-se ao chão, com o sangue quente derretendo o orvalho sobre o solo. Da neblina, mais uma silhueta se aproximava. Os cabelos ralos e prateados se misturavam à neblina branca, e os óculos de lentes grandes protegiam os olhos tristes. Na mão magra uma velha pistola espanhola cuspia a fumaça acinzentada.
— Traição! — gritou o poeta português — E pelas mãos de um conterrâneo! Matastes Ricardo Reis.
— Se o matei foi para que outro Pessoa não morresse. Cessem, nobres senhores, essa lúgubre peleja. Pouco importam as ofensas passadas, se no fim Todos os Nomes se reúnirão como iguais. Cessem a tragédia, cessem este ensaio. Acaso a cegueira cercou-lhes os sentidos?
O americano que a tudo assistia, se aproximou sombrio. Abriu a maleta e estendeu-a aos duelistas:
— Senhores, abandonai a máscara rubra da morte. Estas cercanias da rua Morgue já têm crimes suficientes.
Os quatro trocaram olhares. Os olhos sombrios de Poe, os tristes de Saramago, os serenos de Pessoa e os inquietos de Shakespeare.
— Chega de mortes, que o Pastor já se ri — insistiu Saramago, deixando cair a pistola.
— Pois bem. Nem tudo vale a pena — declamou Pessoa, depositando a adaga afiada na maleta que Poe oferecia.
— Vamos, Shakespeare. Abandona a Tempestade e deixa à alma uma noite de verão — reforçou Poe.
— Todas as noites de verão são sonhos — retrucou o bardo. E com um movimento rápido, lavou-se da culpa de Macbeth e cravou a lâmina fria no abdome de Pessoa. Todos os olhos eram agora de surpresa. Inclusive os de Shakespeare, ao ver o poeta com a adaga cravada no corpo, mas ainda de pé. A morte parecia ter tido a sua intermitência. Sem respostas e sem palavras, os quatros deram as costas uns aos outros e se perderam de novo no nevoeiro.
7 comentários:
Como diria um bom lageano:
- "Assasinhorahomiducéu!"
Quanta cultura neste conto!
O encontro de 4 poetas e um heteronômio!
Infelizmente não sou profundo conhecedor dos mesmos para entender melhor as entrelinhas do conto, principalmente o final.
Shakespeare cravou a lâmina em Fernando Pessoa e este não morreu.
Um trabalho para Sir Arthur Conan Doyle!
são todos imortais da literatura... será?
adjetivos, adjetivos adjetivos... aaaa minha cabeça dói!
filho da puuuutaaaaaa!!!!! nunca mais, nunca mais, nunca mais!
opa, o "noticias", acima sou eu, Fábio Ricardo. tô logado no gmail com a conta do Barba Ruiva, hehehe
muito muito muito bom!!!
o modo como descreve as caracteristas de cada um, seu jeito de ser.. as palavras, a mistura de seus estilos!
Amei!
;]
Eu fiquei na dúvida se devia comentar aqui, mas como o Fábio falou, a proposta é trocar idéias. Então respondendo ao Marcus,pra essa questão específica, dá uma olhada em "As intermitências da Morte", do Saramago, citada na penúltima linha do conto. Do resto a gente troca uma idéia batendo um carteado :)
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