segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Tema da Rodada

Tema dessa rodada: Gárgula.

Textos postados até dia 6.

Valendo!

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Comunicado aos leitores

Leitores e amigos, temos um comunicado importante a fazer a todos que acompanham o Duelo de Escritores. No dia 1º de novembro, o Duelo de Escritores completa 2 anos de existência, com grande produção literária e experimentações das mais diversas formas. Nestes dois anos, as regras passaram por melhorias, todos aprendemos muito com nossos escritos e o Duelo evoluiu como um todo.

Agora, o Duelo de Escritores passa por sua maior transformação desde sua fundação. Os duelistas Félix Rosumek e Thiago Floriano se desligam da equipe inicial do projeto. A decisão foi tomada por eles, que vinham tendo dificuldades em conciliar vida profissional e o cronograma puxado de produção do site. Queremos agradecer por todo o tempo em que escrevemos juntos e nos divertimos, lembrando que sempre serão parte importante da história do projeto.

Mudanças

Por isso, esta rodada não terá competição aqui no Duelo. Ela será utilizada para aplicarmos as mudanças que se fazem necessárias para mantermos o projeto afiado mesmo com a saída dos dois integrantes. No dia 1º de novembro, data em que comemora 2 anos, o Duelo de Escritores volta com tudo, já apresentando ao público os dois novos Duelistas que passam a fazer parte do projeto.

Outra mudança é a de servidor. O Duelo deixa o Blogger (endereço blogspot.com) para ser hospedado no Wordpress, servidor mais prático e confiável. Para quem acessa o site pelo endereço www.duelodeescritores.com não muda nada, ele continua valendo. A outra opção é digitando o endereço completo: www.duelodeescritores.wordpress.com.

Durante a semana, apresentaremos os novos integrantes e migraremos todo o site para o novo servidor. Fiquem ligados, boas leituras e continuem votando!

Recado

Aos leitores, duelistas e amigos,

O Duelo de Escritores se aproxima de seu aniversário de dois anos. Ao final desta segunda etapa teremos mudanças por aqui. O Fábio ou a Marina em breve postarão mais detalhes a respeito. Por hora, adianto que as novidades virão na rodada comemorativa. Para preparar a casa, estamos estendendo esta rodada. (Na verdade uma microfolga de uma rodada). Portanto, o novo tema será postado apenas no dia 1° de Novembro.

Antes disso, no entanto, já postaremos mais novidades. Fiquem ligados. (ou assinem o RSS :) )

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Votação - Despedida

Está aberta a votação até o dia 20 de outubro.

Participe deixando seu comentário neste tópico.

Abraços.

Prelúdio da aceitação

Estás presente em mim,
mas de um jeito diferente.
Já não pesa ante meus olhos
cada história comovente.
Se és linda lá fora,
também o és em minha mente.
Cada palavra que te escrevo
faz sentido de repente.
Mesmo tempo que te afasta
é aquele que se sente.
Sorte não reclamo
mesmo te vendo ausente.
E o destino que, hora choca,
noutra se mostra clemente.
Logo céu se abre,
indubitavelmente.
O que é lembrança triste,
apague piedosamente.
Se outra chance não demora
a pairar em minha frente,
vejo e sinto que és passado e,
assim sendo, agora deixo-te ir
(sutilmente).




"Faixa bônus" (ou: o texto que seria postado caso o de cima não fosse...)

Epitáfio
Aqui jaz alguém que observou e registrou,
mas nunca esqueceu de interagir

(sem título)

Despeço-me e (des)peço-te: pare (não dispare, não repare). O primeiro passo depois do adeus não é o fim: é o começo de uma nova despedida.

De deuses e adeuses.

Um adeus nunca é a deus. Seja pela improbabilidade da partida ou da prévia chegada. Seja pelo nunca ir ou pelo nunca ter estado, a deus não há adeus. Os adeuses são todos ateus, independente da crença de quem os dá. Como se no adeus não se precisasse acreditar em mais nada, além do próprio adeus. Nele, acredita-se piamente. O temos ali, à frente, provado, escarrado e escrito. Ou acenado, lacrimejado. Mas o adeus o temos ali.

Mas logo, o próprio adeus dá adeus. Vai-se. Não temos nada mais, então, no que acreditar. Exceto, talvez, que inventemos algo. Porque os adeuses são breves e efêmeros como nós. Talvez por isso acreditemos tanto neles; para que possamos acreditar em nós mesmos. Os adeuses nos são muito mais próximos que os deuses. Os adeuses são nossos; e como nós. Imagem e semelhança, diríamos, se não o tivéssemos dito antes a outro que não ao adeus.

Nem por isso nos despeçamos dos deuses. Mesmo porque, visto que a eles não existem adeuses, seriam estes desnecessários e insignificantes. Os adeuses, digo. Há algo no adeus que escapa mesmo a deus. É ao adeus que estendemos a mão e acenamos, cabeça erguida em felicidade ou tristeza. Só quando o adeus se vai é que baixamos a cabeça e nos recolhemos a nós mesmos, rememorando, lambendo as feriadas ou saboreando um passado recém saído da pupa do presente.

A deus dá-se o contrário. Quando está presente — se alguma vez esteve, e deve ter estado, se não mentem os dois pelados em torno da árvore das iscas proibidas — é que baixamos a cabeça. Não há acenos, estender de braços ou olhares elevados. Há silêncio e olhos ao chão. Como procurando por algo que emane lá de baixo, que lá se esconda, e que nos atrai ainda mais quando contrastado pela presença divina. Só tornamos a erguer a cabeça quando deus se vai. E tornamos a erguer o braço, seja para baixá-lo com violência, seja para apontá-lo a alguém, seja para buscar algo que pareceu-nos extraviado de repente. Jamais em adeus. Porque o adeus é nosso para darmos a quem quer que seja. Exceto a deus, que ele, a nós, o deu muito antes.

Suprema hipocrisia

Este é o texto que eu jamais escreveria. Porque, ao chegar o momento final, não me importaria coisa alguma deixar algo para o que viesse depois. Não passaria de um agrado momentâneo enquanto a mente ainda funcionasse. À posterioridade, que se dane.

O pensamento sobrepuja os desejos. Muito se fala de como a racionalidade pode ser devastada pela emoção. Mas pouco sobre o caminho inverso. O raciocínio pode mudar as emoções. A objetividade pode sobrepujar a subjetividade. A razão pode matar a emoção. Como se houvesse alguma realidade nesse dualismo artificial. Pensamentos podem sobrepujar outros pensamentos, e pronto. Sejam pensamentos sobre a vida, o universo e tudo mais, ou pensamentos de te amo e te odeio.

Faz muito tempo que uma trilha alternativa foi tomada. Não foi na filosofia tradicional, não na leitura de tomos complicados, ou no diálogo com pares em um nível superior. O estranhamento nasceu em algum ponto além-lembrança. Desde a mais remota evidência da arqueologia pessoal, havia alguém que voluntariamente se afastava. Que se saturava de companhia, fosse inconveniente ou dos mais queridos amigos e parentes. Aquele pequeno ser que, na hora do sentar à mesa nas festas, pegava seu prato e ia sentar em algum canto afastado. Não por exclusão. Não por antipatia. Apenas por vontade.

A dúvida sempre esteve ali. Afinal, aquele que a tudo questiona, não deixará de questionar a si próprio? Evasão? Fuga? Medo? Ou diferença? Em um sistema complexo como uma mente humana, nunca há desvinculamento de conceitos. Há uma fonte, mas ela se perde em meio às suas consequências. O produto final é a diferença. O estranhamento. A misantropia egoísta e elitista que gera o senso de desajuste. Esnobe, em aparência. "O intuitivo sensitivo pensador julgador irradia uma aura de segurança que pode ser tomada como simples arrogância pelos menos decisivos, mas tem origem em sistemas de conhecimento especializado que começar a ser construídos cedo". Psicologia jungiana. Citar um nome conhecido sempre reveste com uma aura de autoridade a declaração de conhecimentos pré-adquiridos.

Para o observador, não há sentido em um monólogo intrínseco se não são feitas relações com o mundo exterior. Uma pessoa só interessa a outra pessoa quando serve de reflexo a si mesma. Hei de me prender a esta limitação em meu epitáfio imaginário, pois minha mente já há tempos não consegue se contentar com a idiotice travestida de beleza. Ela procura lógica onde lógica não há, na fantasia, na literatura, nos devaneios. Por que o personagem fez a escolha? Por que nasceu o mal de um Criador sem maldade? Por que aquele verso está ali? Falta de sentido é estupidez. Não importa o quão floreada esteja.

Como uma vida consegue lidar com todas suas hipocrisias intrínsecas? Como pode conviver consigo mesma, sendo incoerente em cada instante? Só sendo cego de pensamento, uma cegueira que nunca é de nascença, antes mais um fechar de olhos ou uma cabeça enfiada no buraco. Abençoados ou amaldiçoados? A ignorância pe uma benção? Nunca para aquele que já a deixou para trás. Que ainda se satisfará com piscares, mas sempre se forçará a abrir os olhos e fitar a luz. Mesmo que o Sol queime suas retinas.

O diferente aprendeu a mascarar seu deslocamento. Consegue muito bem sorrir e concordar. Apenas o mais perceptivo verá o ocasional olhar nublado, ou o suave e desprezante arqueamento de lábios. Todo deslocado se sente superior? No fundo, ele sentirá algo parecido. Mas sabe que superioridade não existe, pois melhor e pior fazem parte da cegueira. Secam, morrem e definham sob a luz. Diferença não é superioridade. Há compensações. Negativas e positivas. É possível ser profundamente pensador e profundamente sociável? A máscara pensa que sim. O demônio interior sabe que não.

A diferença leva ao isolamento. Ou o isolamento leva à diferença? Pergunta capciosa. Há alguma origem. É possível isolar uma variável? Felizes aqueles que possuem registros independentes das lembranças, sempre distorcidas pelo tempo. Havia a diferença. Nasce o isolamento. E inicia-se a retroalimentação.

De nada a lugar nenhum a vida leva, e um momento de despedida só pode evocar o fantasma do "e se?". Admirável como a mais tola de todas as perguntas, e continuará sendo enquanto não for possível retorcer o tempo, é também a mais evocada. Há um tênue limite entre a utilidade como aprendizado e o masoquismo pessoal. Definitivamente, não é às portas do inferno que se ficará no primeiro lado da linha.

Havia algum ponto-chave na estrada? Sempre será uma teia de fatos e relações. Mas há peças que derrubam muitas outras, e peças que caem praticamente sozinhas. Ter ido para um lugar em vez de outro? Ter escolhido a felicidade imediata e mediana, ou a probabilidade de uma alegria maior? Qual das faces pelo caminho era a chave? Aquela que se tornou a cicatriz, incurável, obsessiva, travestida ao máximo no sorriso de amizade? Ou aquela que aceitaria e desejaria, que correria atrás daquele que sonha com outros Édens?

Fez-se em poucos parágrafos um tortuoso influxo de pensamentos. Será que aqueles que acreditam em alguma continuidade relêem e elaboram seus epitáfios? Aos opostos, não basta a despedida ser a suprema hipocrisia. Quando mais olhar para os trastes que foram deixados para trás. Como na morte, que assim seja o último adeus, puro e intragável, pois para quem vai já não importa o pensamento de quem fica. Que a redenção não venha na forma de recompensa, nem de descanso. Só como um vazio desprovido de cor, forma e significado. Adeus.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Carne Viva

Viveu a vida inteira em 100%. Se existem pessoas que são ou 8 ou 80, ele era apenas 80, o tempo todo. Viveu, amou, sofreu. Aproveitou cada dia, cada semana, como se fossem os últimos. Não se planejava com o futuro, pois estava mais interessado no presente. Até mesmo em seus melhores sonhos, como o de ser pai, nunca conseguiu visualizar seu filho adolescente. Apenas como uma criança. De certa fora, nunca imaginou que viveria muito tempo.

Tinha pouco menos de 30 anos. Há cinco, já havia percebido seu problema, mesmo que os outros não o percebessem, ou fingissem que não. Sua contagem regressiva corria em ritmo alucinado. Ele, o cara cujos amores duravam três semanas, cujos empregos nunca chegavam a um ano, cuja vida fervia com a vontade de logo acabar.

Vivia em carne viva, e sofria muito por isso. Mas tinha a certeza total e absoluta de que cada lágrima valia a pena. Para ele, dois meses de sofrimento eram pouco, comparados à doçura de duas semanas de felicidade.

Um dia, comprou uma moto. Uma V-Blade, estilo custom, que sempre viu nos filmes e sempre sonhou em pilotar. Nem foi tão caro assim. O dinheiro que guardou para sua pós-graduação foi um bom investimento. Passou no banco e zerou a conta. Encheu os bolsos e mandou e-mails durante todo o dia.

Despedia-se. Da ex-namorada, da melhor amiga, do grande amor de sua vida e da dona de seus pensamentos. Dos amigos mais próximos e mais verdadeiros. No Orkut, disse um adeus geral, a todos os que faziam seus Natais melhores.

Subiu na moto e partiu. Abasteceu quando necessário. Rodou e rodou, sem lugar para ir, sem ponto de chegada ou qualquer expectativa. Rodou por muito tempo, 100% por segundo. Rodou até não mais ter dinheiro para abastecer e seguir com a jornada. Antes do último quilômetro rodado, estacionou sob um caminhão.

Demoraram meses até descobrirem o que aconteceu. Demoraram meses para entender.

Não demorou muito para ser mais um saudoso esquecimento.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Tema da rodada

Após um atraso genuinamente oktoberféstico, eis que o tema é:

Despedida.

Textos postados até dia 16.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Votação

Votação aberta até dia 10/10.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Desesperança

Quando acordei, me descobri imerso numa escuridão que não me permitia ver nem meu próprio corpo. Logo me lembrei do rapaz dirigindo um carro e mergulhando num infinito mar de leite. Lembrei das palavras exatas do texto e senti um aperto na alma, imaginando quanto tempo isso iria durar. Mas a razão me voltou ao notar uma cegueira negra, muito diferente das descrições do mar de leite.

Há dias eu estava perdido nas dunas. Meu balão perdeu atitude e me choquei contra a areia quente, neste inferno de suor e ar seco. Nem uma gota de água, nem uma gota de água, repito para mim mesmo em meus sonhos. Durante o dia, o sol castiga minha pele que ferve em bolhas em contato com a areia ardente. Durante a noite, o frio é insuportável e sinto todos os músculos do corpo tremendo, tensos e desesperançados.

Caminho, o corpo desidratado rente ao solo. Minha pele se arrasta na areia quente, deixando para trás quaisquer tipos de pertences. O bater de asas que já acompanha meus ouvidos há horas incontáveis se mostra cada vez mais próximo. Levo as mãos ao rosto, apenas para sentir a pele queimada das membranas que cobrem as pupilas, já secas e sem vida. A dor é minha única companheira, agora que a esperança já não mais me acompanha. Deito a cabeça nos grãos de fogo enquanto aguardo, inerte, o bater de asas se aproximar.

Um conselho

- Passa boi, passa boiada.

Morenice salgada

O chapéu, meio de lado, assim, escondia o rosto tímido, que escondia a malandragem. Estendeu a mão e puxou a morena. O samba que tocava nem sei qual era, e não importa também. Tic-tic-tun e quando a música parecia acabar, mais tic-tic-tun. A banda viu por cima do ombro suado da morena a trança de palha e tocou baixinho, miúdo. A mão aberta, bem no meio das costas dela, fazia com que ele parecesse comandar cada um dos seus movimentos. Ela era uma boneca. Uma boneca de pele morena, de pele suada.

Numa mesa de butiquim a batucar, ele compôs morena dourada, gosto de mar. Sonhou o sal que desprendia da pele dela, molhada de suor. Molhada de morenice salgada.

De repente ela chegou. Arrastou a saia pela mesa, esticou a mão. O cabelo molhado, a pele seca. Foi só chegar perto do pescoço e sentir o doce do perfume. Não era a morena do mar, era a morena do cheiro doce. Cruzou as pernas num passo salgado.

Exército de Esqueletos

Quando suas bocas estiverem secas
Suas salivas pegajosas, suas gargantas ardentes
E a sede embotar, cruel, o raciocínio em suas mentes

Lembrem-se dos banhos tomados! Lembrem-se das carnes assadas!
Lembrem-se dos pisos lavados! Lembrem-se das gotas pingadas!
Lembrem-se dos carros cintilantes! Lembrem-se das piscinas ao sol!
Lembrem-se dos canos empestantes! Lembrem-se dos venenos ao céu!

Vocês não terão nem lágrimas para chorar
Quando seus corpos forem apenas cascos secos
E eu me juntarei, rindo, ao exército de esqueletos

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

À mainha morta

eu rio
do rio

pruquê
o rio tá na vala, mainha

padinho diz
que quâno rio inchê
vai dá di vê meu riflexo

mas já dá, padinho
que o rio é marrom e rachado
qui nem minha cara di sertão

até meus óio verve mais água qu'esse rio

eu cuspo
pelo buraco onde tinha um dente
pra vê se o rio enche di novo

ai di mim, mainha

o poço secô
tu já morreu
painho sumiu

padin diz que foi pro rio

mas eu tô no rio
e
o rio secô
o rio rachô
e painho não tá
no rio, mainha

'que o rio tá seco
e velho
que nem eu
vazio

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Novo Tema

Pra contrastar com essa chuva, o tema da rodada será: Seca.
Os textos devem ser postados até dia 6/10.
E começa outubro.

domingo, 27 de setembro de 2009

Votação

Vote nos comentário deste post, até dia 30.

Forasteiro

Remake consideravelmente modificado de um texto escrito à beira mar em janeiro de 2005.

Tão longe, à distância de um toque, é onde estou
Não percebes meus olhos embaciados ao te ouvir?
Meu pensamento vaga, mil mundos viu e atravessou
Durante teus gestos, tuas falas, teu doce sorrir

Estou distante, querida... Distante de tudo que tu és
Tudo aquilo que te cerca, que cerca aos outros e os conduz
Deste teu mundinho, teu universo sólido, tomo meu viés
Sinto-me estranho, deslocado, uma sombra banhada em luz

Teus jeitos, teus trejeitos... Teus medos, teus desejos
Donde vês-me entretida como curiosidade singular
Eu apenas me sinto um forasteiro, escravo de meus meios
Podes tu me ajudar, meu amor? Ajudar a me adaptar?

Confrontada com a rejeição, a mente pobre enxerga evasão
Mas acredite, meu anjo, estou perdido em meio conhecido
Imerso em ilusória inserção, mas sei que eles nunca entenderão
Guerreiro sem reino, neonato sem seio, idealista sem motivação

Céu e mar sem perversão, as ondas do oceano em sua batida
Tentando esquecer-me um pouco, sorrio à carícia do ar
Eu apenas estou me sentindo como um forasteiro, querida
Podes tentar, ao menos tentar, ajudar a me adaptar?

Como um forasteiro, minha querida... Podes me ajudar a mudar?
Soterrando minha vontade, destruindo tudo o que me fiz ser
Mostre-me como devo me comportar para a você ter e amar
Pois minha pura verdade, esta, ah!, ninguém jamais há de querer!..



Texto bônus (aquele que ia se outro não fosse):

O trogatilho mais rápido do Oeste

Eu era de fora. Rápido e rasteiro. Eu era um forasteiro. Há!

sábado, 26 de setembro de 2009

Nano

No espelho, um forasteiro.

A sofrida história de um migrante

Quando o trouxeram ele ainda era muito novo. Não faz muito tempo que o deixaram, sozinho, em meio a grandes e imponentes árvores. Ele não conhecia o Brasil e estava amedrontado por ser deixado no centro daquela grande floresta nativa. Em pouco tempo, ele cresceu. Cresceu mais rápido do que a maioria dos nativos do local, despertando o interesse de um pequeno grupo de seres. Esse grande grupo era composto de bípedes do mesmo tipo dos que o trouxeram da Oceania. Mas quando veio de tão longe ele ainda era muito pequeno pra perceber a diferença desses bípedes para os demais. Eles tinham um tal de polegar opositor.

Bem, voltando à história principal. Ele cresceu rápido. Bem rápido mesmo. E logo se tornou grande e resistente. Era impressionante como ele tinha coragem se comparado com os nativos. Quando o uivo dos ventos começava a amedrontar a quase todos, ele simplesmente se colocava a dançar. Mostrava toda sua flexibilidade e colocava inveja nos seus hospedeiros.

Não há como negar que ele se adaptou ao ambiente, pois, tão cedo teve a primeira chance, deu à luz um herdeiro. E outro. E mais alguns. Rapidamente construiu uma família invejável. E seus filhos em nada pareciam com ele quando veio desembarcar no Brasil. Eles pareciam donos do ambiente. Certos de que nada os colocaria pra fora dali. Os grandes nativos já não eram tantos quanto na época que ele chegou. Havia mais espaço agora.

Os bípedes, também chamados de humanos, logo começaram a matar parte da família. Mas, ao mesmo tempo, cultivavam e incentivavam a reprodução da espécie. Ele não sabia o que era feito dos seus, pois não podia sair dali, mas os nativos repudiavam quando os humanos os abatiam. Como seus descendentes cresciam com mais rapidez que os nativos, aos poucos os humanos pararam de matar os nativos e se concentraram apenas nos frutos de sua fertilidade. Até que um belo dia o mataram também, mas já tinha muitos herdeiros, a quem deixou terras espalhadas no Brasil inteiro. Não se pode dizer que foi fácil a vida de Eucalipto, o forasteiro.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Flores na cabeça

Começou quase imperceptível. Só uma vibração entre a estrada de terra cercada de flores e o céu azul primaveril. As casas de tijolos à vista à beira da rua guardavam segredos silentes cercados de pétalas e canteiros e aromas de bolos de banana com farofa. Foi muito aos poucos que a melodia se fez, de fato, audível. Um assobio que saltitava alegre nas notas de diapasão, embalando as flores numa dança discreta na brisa suave.

O assobio nascia num vão entre lábios volumosos de tom café, contornados por uma barba baixa que cobria um rosto de olhos curiosos. A mochila nas costas jingava com o andar cadenciado guiado por passos certeiros de botas de solado grosso e couro resistente. A camisa listrada retribuindo as cores das flores que escoltavam o caminho.

Parou à sombra de uma árvore próxima a uma casinha de tijolos aparentes e floreiras nas janelas, admirando o telhado pontiagudo. Cessou o assobio ouvindo com prazer o silêncio da rua decorada e o som da brisa nas folhas. Sentou à beira da estrada, deitou ao chão a mochila e bebeu a água fresca de um cantil de alumínio, dividindo o espaço com as borboletas nas flores logo ao lado.

Se perdeu na delicadeza das asas que nem percebeu a chegada da criança loura que saltitava saindo do jardim bem aparado da casa. Foi o riso da menina que o despertou. Quando a criança o viu, hesitou desconfiada.

- Oi. Foi ele quem cumprimentou, jovial.

A criança não respondeu e ficou brincando à distância. Ele riu e retornou a atenção às borboletas, que vinham lhe brincar nos braços. Tocou com a ponta do dedo as asas coloridas e viu o inseto levantar voo até pousar-lhe na cabeça. Mais uma risada infantil lhe chamou a atenção.

- Parece um laço.

Divertiu-se a menina loura, apontando para a borboleta na cabeça do forasteiro. Ele riu com o chiste e a menina se aproximou.

- Você é um vagabundo? - perguntou a criança.

Ele espantou-se mas riu mais uma vez. Mas não. Ele era um viajante.

- E o que faz um viajante?

- Viaja - respondeu sorrindo.

Colheu uma flor amarela e colocou no cabelo louro da menina.

- Pronto. Agora você também tem um laço.

Ela sorriu. Mas com olhar preocupado para a porta da casa de tijolos aparentes disse:

- Meu pai não vai gostar disso. Ele diz que as flores tem que enfeitar a estrada.

- As flores ficam bonitas nas estradas sim. Mas eu digo que elas deveriam enfeitar mais as cabeças - respondeu o rapaz com calma.

- Ora, onde já se viu flor na cabeça. Lugar de flor é na rua. Ou na frente de casa.

- Mas aí as borboletas não vão querer visitar a sua cabeça. No máximo vão passar pela sua rua, mas não vão pousar em você.

- Hum... Meu pai nunca falou nada sobre borboletas.

- Ele não tem flores na cabeça, tem?

- Não... Mas você também não tem flor na cabeça e a borboleta pousou em você.

- É que quando você põe uma flor na cabeça, um pouquinho dela fica ali pra sempre. Como se fosse o perfume. E as borboletas percebem.

- Eu queria ter mais flores na cabeça. Mas aí meu pai vai brigar. Elas tem que ficar na rua.

- Talvez, se mais gente colocasse flores na cabeça, não precisasse tantas flores na rua. As borboletas viriam da mesma forma. E o perfume ia estar sempre com a gente. E de tanto a gente andar por aí, com flores na cabeça, elas iam acabar espalhando pólen mesmo. E daí, sem a gente nem perceber, logo iam ter flores espalhadas por todas as ruas. E a gente nem ia perceber que plantou.

- Vou fazer como a minha mãe, então. Ela tem um arco de cabelo cheio de flores. Vou usar sempre!

- Mas aí não adianta. No arco as flores são de plástico. Não são de verdade. Elas só parecem flores. Mas se você olhar de perto, vê que elas não tem perfume. E as borboletas não vem.

- É melhor eu voltar pra dentro. Meu pai não gosta que eu fale com vag - estranhos.

- Tudo bem. Foi legal conhecer você, viu?

A menina saiu correndo em direção a casa. O rapaz levantou-se, colocou às costas a mochila e seguiu o caminho pela estrada de barro com algumas borboletas no seu encalço. Saiu assobiando a melodia alegre que ia desaparecendo da vizinhança das casas de tijolo à vista e cheiro de bolo de colono. A melodia foi baixando, baixando, sumindo, sumindo até deixar no ar só aquela vibração quase imperceptível, deixando ouvir o som do vento nas folhas e de uma criança levando bronca por ter arrancado uma flor do jardim.

dissonante. (ou dissoneto)

estrangeirismos nacionais
nacionalidade de guerra
estranho no ninho do país onde nasceu.

grito brasileiro
no peito o nome inglês
no hay banda deve ser uma banda qualquer.

peregrino do mundo
(cidadão universal)
defensor da bandeira
não importa a cor é carnaval.

forasteiro
vindo de algum trem ou não
é brasileiro.
ou finge que não sabe, ou finge querer ser.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Tema da Rodada: Forasteiro

O tema da rodada será: Forasteiro.

Sem mais firulas. Postagens até dia 26.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Votação - Giz

Está aberta a votação para esta rodada.

Deixe aqui seu voto até o dia 20 de setembro.

A lei da verdade no século XXI – Parte I


I – Muitas das histórias já nascem provisórias.

Brasil. Santa Catarina. Florianópolis. Trindade. Nossa história de hoje está localizada no bairro onde reside grande parte dos estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina, ou apenas UFSC.

Melina é uma estudante de Ciências Sociais. Está no quinto semestre e mora com uma amiga em um dos blocos de um famoso condomínio residencial da localidade, mas não nos cabe dar o endereço exato da moça. Namora há cinco meses com um rapaz conhecido como Carlão.

Carlão é um estudante de Engenharia Mecânica. Está no sétimo semestre (ou no quarto, ou no oitavo... não sabe dizer exatamente) e mora sozinho em um edifício no bairro Saco dos Limões. Namora há três meses e meio com Melina.

Há cerca de um ano Melina e Carlão se conheceram em uma festa da turma de Jornalismo, dentro do campus da universidade. Não é bem o tipo de festa que Carlão costumava frequentar, já que o negócio dele sempre foi ir onde o grande público (feminino) está. “Música boa eu ouço em casa”, dizia com orgulho o jovem aprendiz de boêmio.

Por sua vez, Melina era a típica frequentadora daquelas festas. Violão ou uma banda e gente reunida sempre foram atrativos naturais para aquela garota de cabelos sobre o ombro e roupas mais discretas do que espião. Mas sua discrição não foi suficiente para escapar dos olhos verdes escuros de Carlão. Em pouco mais de vinte minutos de festa, a abordagem já tinha sido feita. A aproximação inicial com piadinhas infames surpreendeu a garota. “Que retardado”, pensou consigo mesma. Mas ele conseguiu sua atenção. Era só o que precisava acontecer para que em pouco tempo eles estivessem agarrados num canto qualquer ao som de Aerocirco.

E foi assim que se desenhou mais um início de história romântica. Carlão nunca quis casar. Melina sonha com isso desde que descobriu o que é casamento. Quanta diferença. “As coisas em comum tornam uma relação agradável, mas são as diferenças que a tornam interessante”, lembrava Melina a si mesma sem lembrar o autor da frase que há muito havia decorado.

Hoje pela manhã, Melina acordou com Carlão ao seu lado e ficou imaginando como seria a casa deles quando casarem, daqui a dois anos. Ele continuou dormindo. Um belo domingo de sol. Que maravilha!

Ela se levantou e preparou café para os dois, suspirando de paixão. Ele acordou. Ela ouviu barulho vindo do quarto e, correndo, atirou-se sobre ele, cobrindo-o de beijos. Ele permanecia sonolento.

Vocês já entenderam onde vai chegar essa história?

Ela vai terminar o namoro e não demora muito. Cedo ou tarde, vai perceber que o relacionamento foi construído sem alicerces. A história foi escrita a giz e, mesmo que o giz acabe, ainda há tijolo de construção antes que se encontre a primeira caneta para passar a limpo. Tarde ou mais tarde, Carlão pode querer algo mais sério. Pode tentar mudar. Mas aí também pode ser tarde demais. “Ô ô uôo. Tarde demais. Já deixou passar. O que ficou podia ser o seu maior prazer”¹. E se eles acharem uma boa e velha máquina de escrever?

¹ Trecho da música Tarde Demais, da banda catarinense Aerocirco.

Tijolada

Férias!

(Não.)

Mas está foda!

(Azar. Todo mundo está fodido.)

É por isso mesmo!

(Não. Pausar jamais.)

Fica qualquer lixo então?

(Qualquer coisa é melhor que nada.)

Mas acabou meu giz...

(Vai ter que ser este tijolo de construção.)

Céu

Devia poder dar três passos. Daqueles de uma perna ao lado da outra, de caminhar. Mas enquanto desenho o um, o dois e o três, já sei que vai ter que ser numa perna só. Difícil isso de se equilibrar numa perna e só. Mas depois eu penso nisso porque o três acabou e agora tem o quatro e cinco.

O quatro fica ao lado do cinco e eu traço uma reta no meio dos dois. Eu aprendi que o meu cachorro tem quatro patas e que são cinco os dedos das mãos. Sempre penso que se a gente andasse de quatro, o quatro e cinco ficariam tão pertinho e nem iam poder se abraçar, se encostar.

Já o seis não. O seis é sozinho. É quase metade e seria meia se a contagem fosse de dúzias. Mas é sozinho o seis.

Aí vem o sete e o oito, que são os números mais bonitos. Ficam separados, mas não deviam, porque são sete as cores do arco-íris e me disseram que o oito deitado é infinito. Quando termino de dividir os dois, penso que ninguém nunca viu o fim do arco-íris.

O nove é quase. A linha do nove é um pouco maior, porque quando é quase, a gente já está cansado e ficar com uma perna só no quase é quase cair.

Acaba o giz, mas bem do lado tem um pedaço de tijolo. Tijolo da construção. O céu não é branco, não. Branco é o caminho, a estrada que chamam de amarela pequenininha, mas que é branca. O céu é em forma de nuvem e nuvem parece algodão. A marca do tijolo é meio laranja, meio rosa. O meu céu é doce como o algodão. Doce.

(E no céu não se precisa ficar numa perna. E só.)

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Chuva

Lembro muito bem daqueles dias. Brincávamos na rua quase deserta a qualquer hora do dia. Aquela rua era o nosso mundo, nosso império. Lá, éramos o que quiséssemos. Eu era um rei. Você, minha rainha. Inventávamos as leis, as regras de conduta de um mundo perfeito onde só havia eu e você. E todas as tardes, quando o sol se derretia sobre nós com suas luzes avermelhadas, nos despedíamos, sobre as bicicletas, com desejos de boa noite e um inesquecível "até amanhã".

Impossível não lembrar daqueles dias, onde não havia medos ou incertezas. Dias em que o maior desastre que poderia acontecer era a chuva chegar com seus pingos que a afastavam de mim. Mas outro dia viria, e com ele, outro sol. E, numa prece desesperada, eu desenhava um sol enorme. O sol que a chuva apagou. Um sol grande e redondo, que tomava toda a rua. E quando acabava o giz, eu corria para buscar tijolo da construção. E desenhava, grande e redondo, o sol para trazer você pra mim.

E você me chamava de bobo e me dava um beijo no rosto. E eu flutuava, a centímetros do chão, enquanto caminhava ao seu lado. E você me perguntava por que é que eu desenhava um sol tão grande, me perguntava se eu não gostava da chuva. E eu dizia que não, que era a chuva que te deixava longe de mim. E você sorria mais uma vez, e me chamava de bobo. Bobo, você dizia, pois você sempre iria voltar.

Mas não voltava. E cada vez demorava mais para aparecer depois de um dia de chuva. E eu te via pela janela, rindo ao telefone, e os sóis de tijolo já não eram suficiente. E os corações entalhados em árvores também não chegariam a ser.

E os dias foram passando. E trazendo com eles mais chuva. Mais chuva. Mais chuva. Mais chuva para dentro de mim.

O Construtor

O espirro lhe veio de repente. Quase deu com a testa contra a parede de tijolos ainda por terminar. Viu despencar-lhe, da franja mal cortada do cabelo, um pó vermelho fino, enrubescendo toda a visão da construção. Homens simples espalhados aqui e ali. Pais de família ou de famílias ainda por vir. Todos construindo juntos um prédio no qual nenhum deles moraria. Teriam, certamente, de usar apenas o elevador de serviços caso algum dia o visitassem depois de pronto. Todos avermelhados pelo sol ou pelos tijolos das paredes, do teto, pulverizados no ar e nos cabelos como um peso polvilhado sem economia. As partículas diminutas descendo devagar no ar, como se decantassem com os pensamentos embolados.

Lembrou de quando via o mundo esbranquiçado. A mesma rinite a castigar-lhe o nariz, do mesmo modo coberto de pó. Quase pôde ver o quadro negro à sua frente, se formando sobre a parede de tijolos enquanto o pó vermelho ia assentando no chão. Na época os espirros eram seguidos duma nevasca branca de giz e risadas de alunos muito novos para estarem nas construções que lhes aguardavam em breve. Ele dividia as risadas da mesma forma, achando graça da cabeça, ombros, mãos e roupas esbranquiçadas. Era preciso se sujar para ensinar, ele sempre dizia.

Mas com as últimas partículas vermelhas pairando baixo, foi-se também a imagem do quadro. E ele via apenas a parede vermelha à sua frente novamente. O rubro refletido na face, espargido no corpo, penetrando-lhe os poros. As risadas já eram mais raras, a carga mais pesada. E não havia mais o giz nas mãos. Restavam-lhe apenas os tijolos e parede a erguer. O prédio a construir.

Deixou, perdido nas próprias memórias que estava, um tijolo cair-lhe das mãos e espatifar-se no chão. Os companheiros mais próximos deram uma risada que ele retribuiu com o gosto das raras oportunidades que não se devem deixar passar. Abaixou-se para retomar a peça estilhaçada e, numa lasca estreita, viu, em meio ao vermelho, o cair de um pó branco que se precipitava dos cabelos. Não viu o brilho nos próprios olhos nem os lábios arquearem para cima. Tudo o que via era o pó vermelho empalidecendo branco. Num sopro poderoso o pó se ergueu, já branco e deu contra uma parede já quase toda caiada de cimento.

Olhou rindo para os amigos próximos, que sorriam sem muito saber porquê. Levou a lasca até a parede. Quando a ponta tocou o cimento, pode ver uma cor esbranquiçada tomar conta da lasca, subindo pela ponta em contato com a parede até a outra extremidade, em suas mãos. Os companheiros aproximaram-se curiosos. A lasca vermelha rabiscava contra a parede um pequeno mapa do estado sertanejo. Desenhava rabiscos como árvores da caatinga, enquanto começava a relatar o relevo do local, suas plantas, animais. Virou-se aos amigos que assistiam e sorriu para a pequena plateia que se formara. Estava, novamente, depois de muito tempo, coberto de giz e com a rinite atacada pelo pó branco. E ria como ria antigamente. As paredes continuavam vermelhas, como os homens cobertos de pó. Um deles, no entanto, por uma tarde, veria o mundo com vira antigamente. Onde o pó era pálido e as esperanças pairavam com ele no ar. Quando o pó do giz ainda não havia sido suplantado pelo dos tijolos avermelhados das construções.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Tema da Rodada

Enfim estou postando um tema por aqui. Fazia tempo, hein.

E o tema da rodada de 11 a 20 de Setembro é...
...
...

"acaba o giz, tem tijolo de construção"

Um trecho da música Giz, da Legião Urbana.
Para facilitar as coisas, o marcador vai ser apenas "Giz".

Mãos às obras!

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Votação - Idade Média

Pedimos desculpas aos leitores pelo atraso na publicação do post de votação.

Vote, indicando seu texto favorito, até o dia 10/setembro e participe desta disputa literária.


domingo, 6 de setembro de 2009

Gongo

Era um dos últimos bailes dos Luízes, no século XV. Eles ainda não sabiam disso. Esbanjavam nos leilões, nos vinhos, nas dançarinas, altura do volume da música, nas telas renascentistas que enfeitavam as paredes. A comida tinha acabado de ser servida e parte dos convidados já se encaminhava para o salão enquanto alguns poucos ainda chupavam as pontas dos dedos.

Acima das cabeças das figuras mais importantes da burguesia, Valentin, filho do rei, cometia o maior dos pecados: deixava a pele tocar a de uma prostituta.

Ana não utilizava as anáguas e longos vestidos apertados na barriga e no busto. Nem precisava. Suas vestes de moça simples deixavam saliente a circunferência volumosa que ela ostentava na região dos seios. Era sofrida. Diferenciava-se das demais por trocar maquiagens e jóias por água, para que se mantivesse minimamente limpa.

Quanto Valentin foi levado à casa onde Ana vivia, precisava escolher uma das mulheres que tinham acabado de chegar traficadas da cidade grande para iniciar sua vida sexual. Era eximido do pecado e a poderia tocar. Relacionaram-se até que Valentin tivesse que casar com a filha de outro rei. Aquela era a festa de apresentação dele para a família a noiva.

Exaustos, com o corpo deitado ao lado dos lençóis que deveriam, no mínimo, separar os dois corpos, Valentin e Ana se despediam. Até que o quarto foi invadido e o segredo dos dois descoberto. Ana foi morta pelo Padre amigo da família.

Valentin se casou. Todos os dias ia ao túmulo de Ana. Não havia nem esperança de gongo, mas todos os dias ele ia ao cemitério e deitava-se sob o corpo de Ana. A diferença é que agora havia entre eles sete palmos de terra, que os deixavam mais distantes do que o lençol que nunca os separou.

Invasões

As lamparinas se apagaram e só se via o reflexo da luz nas águas do rio. O assobio do vento não era exagerado, mas profundamente tenso. As pessoas congelaram suas expressões, como se tivessem visto um fantasma. A notícia de que os bárbaros estavam chegando ao Império Romano já era por si só assustadora para aquelas pessoas.

Por mais que costumassem dizer que estavam preparados para enfrentar a tudo e a todos, menosprezando a ameaça bárbara, eles tinham receio de não poder ganhar todas as batalhas. Mas ali, naquele momento, em meio à escuridão, só se ouvia o uivar dos ventos e as respirações de cada uma das pessoas escondidas naquela construção abandonada.

Elas olhavam de soslaio uns para os outros, mesmo não os enxergando. Não estavam preparados para lutar. As espadas e armaduras eram pesadas demais para eles. Não tinham sido treinados o suficiente. Não tinham organização. Seus senhores da guerra não o deixaram confiantes para a batalha que estava por vir.

Em poucos minutos começaram a ouvir a movimentação das tropas inimigas. Pareciam vir de todos os lados. O som do galope dos cavalos não dava a dimensão exata de quantos eram. Desde que os visigodos saquearam Roma o sossego já não era algo natural para o exército romano.

Vândalos cercaram a construção com rapidez incrível. Certamente sabiam que ali estava concentrada a tropa romana. Era como se tivessem marcado um jogo, por esporte. Mas era uma batalha a certa distância dos ouvidos dos cidadãos. Quando as espadas começaram a se confrontarem e as cabeças rolaram, nenhum som se ouviu nas cidades.

Os bravos guerreiros, sedentos por sangue, duravam sempre mais do que aqueles mais assustados.

Em menos de uma hora, sobraram apenas restos mortais, espadas, armaduras e os cavalos. Sangue. Espadas. Sangue. Dor. Os cavalos seguiram, sem cavaleiros, sem rumo. Nenhum rumo. Nenhum registro. Nenhuma glória.

Maná

Não havia, no campo, uma espiga madura. Não havia centeio a colher. Não havia raiz sob a terra que não estivesse congelada e morta. Havia apenas uma vastidão branca donde brotavam os ciprestes mudos, como gigantes em pedras de sal. O campo, branco, elíseo de nuvem baixas que cobriam o solo. Da neve nascia apenas o nevoeiro. Uns telhados brancos de palha, com as paredes de barro guardando um silêncio quebrado apenas pelo ronco das barrigas vazias. O único calor brotava do alto. Da presença divina que se irradiava das paredes de pedra dos santos padres. Calor, alimento, proteção. Por trás dos muros distantes subia a fumaça quente desprendendo o cheio do pão. E nas choupanas de barro, palha e neve, brotava a alegria por um deus misericordioso e seus santos homens. Aos poucos, como animais em fins de inverno, alguns bípedes saíam das tocas, envoltos em peles de magros animais padecidos, tentando afugentar o frio cobrindo o próprio lombo, envolvendo-se de esperança e fé em nosso bom senhor.

Eles vinham de todos os pontos. Brotavam de casas que mal se viam, cobertas de neve que estavam. As canelas finas deixando profundas marcas na neve, só não mais fundas pelo pouco peso dos corpos. Iam deixando atrás de si pegadas, como que rastros para retornar às casas escondidas no campo branco. E subiam a escarpada colina guiados pelo calor divino que emanava do santuário. O ar frio parecia já carregar os aromas que estavam por vir. Aqueles pontos pardos aproximavam-se devagar, em meio à neve densa. Iam se acercando do monastério que se elevava, acima da encosta, acima da neve, pairando acima do mundo. A própria natureza parecia respeitar aquelas muradas sagradas. A cada passo, os pontos pardos se aproximavam recitando suas orações, pedindo bênçãos em voz baixa, sem se atrever a levantar os olhos aos céus. Miravam apenas a neve que pisariam no próximo passo, enterrando até as canelas na terra sepulta. Sem dizer palavra, iam aproximando-se uns dos outros à medida que chegavam rente aos muros. Como um rebanho bem guiado pela mão do Pastor, circundaram as muradas à distância, até chegar à retaguarda do enorme baluarte de fé. Aproximaram-se das paredes de pedra sem olharem-se nos olhos. Tocaram o muro de pedra em oração. E só então ergueram o olhar para o alto da amurada. As portinholas de madeira, no alto da construção, estavam ainda fechadas mas o cheiro do maná já anunciava a redenção.

Um rangido alto anunciou a chegada. As portinholas se abriram liberando um vapor branco e aquecido, como o calor do senhor nosso deus e as nuvens de seu palácio celeste. E de lá choveu o maná sobre os fiéis. Uma bênção em meio ao inverno. Uma cornucópia donde brotavam os manjares do éden. Cascas, cascas de todos os tipos! Tocos de raízes, pontas de frutos escurecidos. Grãos esparsos e miolos de espiga. Frutos espremidos, muitos sem vermes. E o rebanho bem disse o senhor que lhe verteu maravilhas.

No alto da amurada um anjo olhava benevolente, com armadura brilhante e lança de fé. Dum odre de couro comungou por aqueles lá embaixo, sorvendo o sangue de nosso senhor Jesus Cristo, celebrando a união entre os homens e os céus. E viu retornarem os pontos pardos às suas tocas, afundando os pés nos mesmos buracos na neve que deixaram ao vir ter com o Senhor. Retornaram com os braços segurando o alimento da semana e a certeza de um deus benevolente que vertia da pedra o maná para os homens de bom coração.

Do alto da colina branca, o monastério sagrado via o campo voltar à quietude invernal. Como se ninguém tivesse por ali passado, exceto pelas pegadas na neve e um ou outro corpo que não conseguira retornar para a toca. Tanto uns quanto outros, seriam em breve recobertos pelo sepulcro branco e sagrado do deus misericordioso e tornariam à terra e ao abraço do pai. A fumaça quente e cheirosa saía do monastério acompanhada do canto gregoriano abençoando cada um dos casebres soterrados em neve colina abaixo. Dentro de cada um deles, as barrigas roncavam em louvor ao Senhor.

Updated. Conforme comentários.

sábado, 5 de setembro de 2009

Eles nunca entenderão

O céu começava a mudar de cor, trocando o branco e azul pelo vermelho e amarelo. Seguindo a trilha no meio da floresta, decidi que era hora de arrumar um abrigo para a noite. Afastei-me do caminho, me embrenhando na mata, seguindo o som de um riacho próximo. Ao encontrar o curso d'água, segui-o em busca de uma pequena porção de área aberta. Finalmente me deparei com uma curva no riacho, onde a ausência de algumas árvores formava uma pequena clareira.

Deixei cair a mochila e a lança das mãos, tirando também o arco e a seteira presos ao corpo. Parei por alguns minutos para ouvir o som da água corrente, o sussurro das folhas ao vento, as tímidas vozes dos pássaros que ainda cantavam. Eu me sentia muito mais disposto agora do que no dia anterior, quando tinha passado o tempo caminhando por áreas mais humanizadas em busca de informações. Agora, a energia de Maira fluía para meu corpo, trazendo consigo as mensagens das redondezas e de distantes regiões, que compartilhavam todas a mesma terra.

Mas antes de meditar com mais concentração, eu precisava cuidar da sobrevivência imediata. Na mochila, de pouco conteúdo, peguei uma pequena rede. Amarrei-a em pequenos arbustos à beira do riacho, deixando a deusa guiar alguns peixes incautos para o seu destino. Enquanto isso, me ocupei da tarefa de arranjar madeira e ramos para construir um abrigo e manter uma fogueira.

Quando o sol já abandonava a terra e apenas o débil reflexo da lua fornecia alguma luz, dei-me por satisfeito com a baixa cobertura de folhas. Chequei a rede, encontrando alguns pequenos infelizes que, junto com os frutos e cogumelos encontrados durante a busca, dariam uma refeição decente. Com as pederneiras, fiz um pequeno fogo para afastar o frio e assar os peixes. Enquanto a madeira crepitava e o cheiro de assado começava a atiçar meu estômago, tirei a última das posses que carregava na mochila: um pergaminho velho e um pequeno estojo com uma pena e alguma tinta. Adicionei uma curta nota aos registros das últimas semanas.

"Hoje saí de Ador, um vilarejo de pescadores na costa de Ludgrim, e obtive informações preciosas sobre os planos elementais. Devo ir à busca dos Irmãos Elementaristas no velho Lar Élfico, embora não espere um calorosa recepção de meus pares para um renegado. As informações de um grupo de aventureiros descendo de Saravossa para as Terras Selvagens se torna mais perturbadora agora, pois minha intuição diz ter alguma ligação com o desequilíbrio em Maira que sinto. A deusa não está falando comigo de modo claro, apenas sei que devo ficar atento, pois acontecimentos de consequências ominosas para o mundo parecem estar se desenrolando".

Os peixes estavam prontos, e fiz rapidamente minha refeição. Joguei um toco volumoso no fogo e deitei sob o abrigo, enrolando-me no manto e pensando nos dias por vir. Seja como forem, devo encontrar os irmãos e, também, estes mercenários que, por motivos desconhecidos, parecem estar na mesma trilha. Dependendo de suas motivações, se forem nobres, talvez eu me junte a eles. De outro modo, terei que matá-los. Se não escutam a voz de Maira, não sabem o que se passa por trás da aparente calma do mundo. E eles nunca entenderão. Afastando os pensamentos, meus olhos se fecharam e logo abandonei a consciência, dormindo tranquilo na sombria floresta que naquela noite era meu lar.

Acordei na completa escuridão. A tocha estava apagada e luz alguma penetrava nas profundidades da caverna, encravada nas entranhas da terra. O som que me despertara de um sono alerta se repetiu: um pequeno arrastar de dedos com garras nas lajes de pedra do chão, junto com uma respiração no limite da audição. Alguma coisa estava se movendo nos ancestrais túneis dos anões, além de um aventureiro em busca de uma saída. E, a julgar pelo seu comportamento, estava faminta. E caçando.

Em um mundo sem luz, eu não poderia confiar tanto em meus sentidos quanto a fera, seja lá qual fosse. Fiz movimentos lentos e silenciosos, sentindo onde estavam a espada e o escudo. Seguros de sua localização, tateei em busca de outra tocha e das pederneiras. Os movimentos da criatura tinham se tornado ainda mais suaves. Ela havia percebido minha presença e sentido minha movimentação, preparando-se para o bote. Eu teria talvez um ou dois segundos entre o movimento brusco de acender a tocha e o ataque. Com todo o corpo tenso e preparado, bati as duas pedras com rapidez e força, despejando faíscas que relampejaram no breu, atendo fogo ao pano embebido em combustível.

Mal a primeira labareda surgiu quando o impacto veio. Uma boca de presas formidáveis se fechou em torno do meu braço, apertando os anéis metálicos da cota de malha. Soquei-lhe a cabeça com força, e a criatura soltou, permitindo-me rolar em busca dos armamentos. Em uma manobra ágil, agarrei a espada e o escudo, voltando-me na direção em que imaginava encontrar-se o oponente, enquanto esmorecia a chama da tocha caída ao chão.

Eu tivera muita sorte: caso o ataque tivesse chego no pescoço, eu seria apenas um saboroso naco de carne agora. Mas uma primeira falha não iria desestimular a fera, afinal, não era tão fácil encontrar alimento nessas paragens, e o animal deveria ter se desorientado para acabar em tais profundezas. Não havia mais preocupação com silêncio agora, pois eu conseguia ouvir seu rosnado furioso, mas ela permanecia fora do círculo de luz. Largando o escudo, peguei a tocha antes que se apagasse. O fogo deveria tornar a criatura um pouco mais cautelosa, se fosse acostumada a viver toda sua vida sob o solo. Avancei com a espada em riste, passos lentos e pequenos, ouvindo o rosnado aumentar de intensidade conforme eu me aproximava. Comecei a distinguir um vulto no limite da visão. E, para meu horror, ele avançou e se revelou. Eu estava esperando algum predador normal que se entoca em cavernas, talvez um urso ou leão perdido, mas não podia contar com aquela monstruosidade sobrenatural que se postava em minha frente.

Parecia uma grande pantera de cor negra, quase azulada. Mas sua cara não era da inexpressividade natural de um animal, mas de uma intensa malignidade irracional. Seu corpo não era de solidez absoluta, parecia deixar passar alguma luz, e eu quase podia imaginar o contorno das paredes por detrás. A suave luz azul que emanava da minha lâmina enfeitiçada atestava: aquilo não era um ser completamente material. Mas o mais terrível era a série de tentáculos que se erguia de seu dorso, portando em suas pontas enormes olhos de pupilas fendidas, como as de uma serpente, que se contraíram com a incidência da luz. Eu conhecia aquela aberração apenas de mitos e fantasias, mas sabia que, se fitasse por alguns segundos aqueles olhos, qualquer esperança de sobreviver seria em vão.

Desviei o olhar dos tentáculos e foquei minha atenção na cabeça de pantera. A minha vida estava por um fio, mas não iria me render tão facilmente. Um aventureiro menos preparado não teria a menor chance, mas este não era meu caso. A cota de malha mágica tinha sido uma bela surpresa para o monstro, e o encantamento lançado sobre a espada poderia me fazer conseguir atingi-lo. Passo a passo, nós nos aproximamos mais, cada combatente tenso, confiando em suas armas, e em dúvida quanto aos truques do oponente. A cada centímetro, minha lâmina brilhava mais, e meu braço acumulava energias para um golpe preciso que poderia resolver o embate com rapidez.

Foi quando escutei um segundo rosnado, vindo de trás.

Apenas tive tempo de soltar uma imprecação, voltando a cabeça e vendo um vulto imenso e semi-transparente pular nas minhas costas. Fui derrubado com o golpe, sentindo as garras tentando me dilacerar por sobre a armadura, mas consegui segurar a espada. O monstro era forte, mas eu não era um guerreiro à toa. Com uma violenta estocada do cabo na criatura sobre mim, consegui ter um pouco de espaço para me virar de costas. Meu braço da espada ficou livre e balancei a pesada lâmina, preparando um golpe com força. Mas, ao me voltar, meus olhos se encontraram com aquelas fendas ofídicas da ponta dos tentáculos.

Não consegui desviar o olhar desta vez. Os músculos perderam a força e senti meu corpo relaxar. A espada caiu no chão, com o barulho de metal ecoando pelo túnel. Minha mente ficou embaçada, sem conseguir mais formular raciocínios lógicos. A minha visão era apenas tomada por aqueles olhos, que pareciam aumentar de tamanho e me engolfar inteiramente. A fera hipnótica pareceu sorrir quando sua boca salivante se aproximou do meu rosto. Lutando com minha força de vontade contra aquela possessão demoníaca, tudo o que eu pude fazer era gritar. Quem encontrasse meu corpo nunca entenderia, mas eu apenas gritei.

Gritei a plenos pulmões para meus exércitos se manterem em posição, enquanto os trebuchets bombardeavam as muralhas do castelo. Os pobres diabos, indefesos, nada podiam fazer diante da destruição causada pelas máquinas de guerra. Algumas tropas desesperadas tentavam atravessas a planície e nos flanquear para destruí-las, mas mal conseguiam chegar sob a chuva de setas assassinas dos arqueiros. Os bravos que não morriam ou debandavam apenas encontravam a morte diante da infantaria que protegia cada trebuchet.

Com o castelo arruinado, observamos ao longe as tropas abandonando seu bastião de defesa e recuando rumo à cidade. Era o momento de avançar. Os mecânicos começaram o lento trabalho de desmontar as máquinas de guerra, enquanto ordenei que a cavalaria seguisse em frente, queimando as fazendas que permaneciam na planície e matando os soldados e camponeses que ainda tentavam defender o território.

Com o cair da noite, ordenei que todas as tropas se agrupassem na alta colina onde jaziam os destroços do outrora poderoso castelo. Montamos acampamento ali, erguendo nossas barracas e fazendo grandes fogueiras. Os curandeiros se ocuparam de tratar os feridos, enquanto os mecânicos reparavam os danos sofridos às máquinas de guerra. Avaliei as perdas que tivemos. Um trebuchet fora perdido em um assalto surpresa de cavalaria, mas ainda havia o bastante para demolir as defesas da cidade. A cavalaria sofrera poucos danos, e a infantaria se mantinha intacta. Porém, aquela era apenas a primeira etapa: romper o perímetro defensivo da cidade e penetramos em seus arredores. Certamente a notícia já se espalhava e as forças do reino inimigo estavam se reorganizando. Não havia tempo para esperar por reforços: se demorássemos demais ali, logo choveriam soldados por todos os lados. Nossa manobra era arriscada e sem retorno: penetrar nas muralhas da cidade e destruir seu núcleo militar, fazendo sobrar pouco mais do que forças esparsas e sem liderança entre nós e a conquista total.

Ao amanhecer do dia seguinte, dei as ordens para meu exército se colocar em movimento. Descemos a colina para o vale onde a cidade se estendia, cercada por muralhas formidáveis e fortalezas defensivas. O plano era simples: nos colocarmos a uma distância segura para permitir que os trebuchets devastassem as defesas, evitando contra-ataques, enfraquecendo a cidade antes de espalhar o terror. Ao final do dia, estávamos em posição, e os mecânicos aproveitaram os últimos momentos de luz para montar as máquinas. Naquela noite iniciamos um bombardeio de dois dias, repelindo as forças que tentavam contra-atacar.

Ao amanhecer do terceiro dia, os batedores que foram deixados para vigiar o território conquistado vieram com a notícia que eu já esperava: as tropas externas do reino tinham se ajuntado na nossa retaguarda, e planejavam um ataque coordenado com as da cidade nas duas direções. Era o momento em que tínhamos que abandonar a segurança de nosso ataque à distância e penetrar de vez nas muralhas.

O avanço até os portões foi fácil, já que os torreões estavam destruídos. Em um bloco único, chegamos quase à distância em que os arqueiros inimigos poderiam nos alcançar de cima das muralhas. Chegou o momento de utilizar o nosso segundo trunfo. Mandei tropas de infantaria tomarem o controle dos aríetes que trazíamos conosco, montados sobre rodas e com pesadas defesas de madeira e metal por cima. Os soldados avançaram, sob flechas normais e incendiárias, sofrendo diversas perdas. Mas era um preço que eu sabia que teria que pagar para colocar os portões abaixo. Finalmente, os remanescentes conseguiram se colocar diante das portas de madeira, e bastaram alguns golpes para que estas fossem abaixo. Era chegada a hora.

Ordenei à cavalaria, avançar, destruir os pontos militares estratégicos e não deixem ninguém vivo. Os capitães assumiram seus regimentos e desceram o restante da colina, prontos para fazer aquilo para o qual foram treinados: matar e destruir. A infantaria e os arqueiros seguiram atrás, penetrando na cidade como rios de devastação. Os inimigos tentaram reagir, mas não estavam preparados para tantos soldados de elite bem armados. Camponeses, mulheres, crianças, para todos a ordem era clara: conquista total. Nenhuma piedade. De toda aquela terra, só poderia haver uma ordem, e eu seria o único e inquestionável rei.

Pois é nessas terras que eu sou o líder, o explorador e o aventureiro. Sem nada a dever, sem passado e sem futuro, com infinitas sagas a viver. Aqueles para quem uma vida só é o suficiente, sei que nunca entenderão.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O ritual

- Ezdras, é chegada a hora.

O velho sábio se levantou, tateando com a ponta dos dedos enrugados o tampo de madeira da mesa em sua frente. O aprendiz o esperava segurando a cortina que dividia o aposento de orações.

- Tudo bem com o senhor, mestre?

- A noite está perfeita, Athomo. Estarei pronto em um segundo.

Ezdras passou as mãos grandes pelos cabelos brancos. Sentiu os fios se soltando da pele e escapando por entre os dedos. Baixou a cabeça em vão, apenas para imagina a dança ébria que fizeram até tocar o solo arenoso da cabana. Há muito os olhos haviam deixado de enxergar as maravilhas das Terras Selvagens, cobertos por uma película de pele esbranquiçada.

O ancião caminhou até a estante empoeirada na parede oeste e pegou suas vestes. Cobriu o corpo castigado pelo tempo com as mantas sagradas dos Deuses, baixou a cabeça e fez uma rápida prece. Caminhou para fora de seus aposentos, onde já ouvia o forte barulho de água corrente. Athomo o ajudou a acomodar-se no trono de madeira que, carregado por oito homens serviria de transporte até o local do ritual.

Todos os sacerdotes e membros da realeza participavam do ritual milenar. O povo aguardava ansioso às beiras do rio Gouoba, olhando para o topo da Grande Cachoeira. Ezdras havia herdado todo o respeito de seu pai, o velho ancião da vida, já há muito falecido. Hoje, aos 86 anos, era ele que deixava este mundo para unir-se aos sábios que os esperavam do outro lado.

Os sacerdotes menores aproximaram-se e ergueram o trono de Ezdras. Athomo acompanhou todo o ritual de perto, com um olhar distante. Não foi permitido que nenhum dos nobres falasse, a nenhum não-místico era permitido usar palavras dentro da Grande Cachoeira. Athomo deu a ordem: os sacerdotes colocaram o trono na areia e Ezdras levantou-se. Não se despediu, não agradeceu e não reclamou de nada. Apenas fez uma prece.

O grande sábio caminhou ao terminar suas palavras, com as velhas sandálias arrastando no chão. O rastro de seus passos ficaria lá até o vento apagá-lo por completo. Só então a Grande Cachoeira estaria novamente aberta para a população. Não se ouviu nenhum choro, nenhuma respiração. Apenas o som de água corrente, cada vez mais ensurdecedor. Ezdras caminhou, concentrado em seus passos apenas, até a borda. Parou a poucos centímetros do penhasco, esticou a mão direita para a frente e murmurou duas palavras. Nunca se soube quais foram as últimas palavras do velho sacerdote.

Com mais um passo, Ezdras deixou este mundo.

A população comemorava ao ver o corpo do sacerdote tomar os céus, sabendo que este ano a colheita voltaria a ser abençoada pelos Deuses. Athomo assumiria em uma questão de dias. Nunca mais se falou o nome de Ezdras naquela vila. E por muitos anos, a paz voltou a reinar.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Tema da rodada

E o tema é...

IDADE MÉDIA

Isso se refere à Idade Média histórica (e suas variações na fantasia). Nada de falar da idade média das pessoas do Brasil ou de crises de meia idade nesta rodada! :)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Votação - Texto humorístico

Está aberta a votação da rodada.

Participe indicando seu texto preferido neste tópico até o dia 30 de agosto.

Sozinho

* 13/abr/2009 *¹

Maria das Dores precisava sair e não tinha com quem deixar Fotolito. Já estava levando o pequeno Linotipo no colo e seria muito difícil cuidar dos dois. “Ele já é grandinho”, pensou e, virando na direção de Fotolito, continuou.

- Foto! A mamãe precisa sair uns minutinhos. Se eu te deixar sozinho, promete se comportar?

Enquanto dizia que sim, o olhar de Fotolito denunciava a figa que fazia com as mãos atrás do corpo.

- Então ta. Só não sai de dentro de casa enquanto eu não chegar e não mexe no fogão.
Saiu com o bebê entre os braços, trancando a porta sem olhar para trás. Era a primeira vez que deixava o filho sozinho em casa. “Não sai casa… não mexe fogão”, era tudo que ele lembrava. Brincou, correu, pulou. Fez guerra de travesseiro com um amigo imaginário, desenhou um boneco no espelho e chutou a bola na mesa da cozinha, derrubando uma xícara. Foi aí que a fome bateu. “Não mexe fogão”, lembrava enquanto o estomago dizia “comer, comer, comer, comer, comer”.

Ele não podia contrarias as regras básicas, senão não teria chance de ficar sem a mãe em casa tão cedo. Abriu a despensa procurando um pacote de bolachas. Não encontrou. Achou um pacote de macarrão instantâneo. Abriu e tentou comer. Não gostou. Teve uma ideia.

Maria das Dores abriu a porta de casa e ouviu barulho de chuveiro. Será que Joselito tinha chegado mais cedo da gráfica? Chamou por Foto, mas não obteve resposta. Caminhou, preocupada, até o banheiro e lá estava o pequeno Fotolito, com a roupa toda molhada, segurando um escorredor de macarrão sob a água quente que vertia do chuveiro.

¹ Texto escrito para o blog Um Momento (www.thiagofloriano.com.br).

Amigassssss.

- Próton.
- Alô?
- Oi, Juju.
- Próton?
- É como eu atenderia o telefone se eu fosse um elétron.
- Quarenta dias, amiga.
- Sem nadica?
- Só na malhação pra gastar energia.
- Pensa, vais ficar tão magra que quando tu colocar um vestido vermelho vai parecer um aranhão.
- Hm.. er... é.
- E a faculdade?
- Corrida, fofa. Corrida.
- Pensa que pelo menos tu não vai ser como aquela mulher que é burra, mas tão burra que tropeçou no fio do celular.
- Maneiro.
- Vamos no cinema?
- Hum, pode ser.
- Batman?
- Pode ser.
- Sabe como ele e o Robin se conheceram?
- Hãm.
- No bat-papo. E sabe como ele abre a bat-caverna?
- C-o-m-o?
- Ele bat-palma.
- Acho que tô começando a passar mal.
- Vai no gineco. Aliás, sabe qual a semelhança dele com o entregador de pizza? Ambos podem cheirar e ver, mas não podem comer, ahá!
- Hum.
- O que o passarinho falou para a passarinha?
- ...
- Quer danoninho?
- Faz um mês que eu não dou e tu tá aqui tentando me fazer rir de piadas idiotas sobre sexo de passarinhos, é isso?
- Pensa tu nunca vai poder ser humorista como eu.
- Graças a Deus!
- Pede porque, pede porque.
- Fala.
- Porque você não foi gozada.

A ligação caiu. Bem, pelo menos foi isso que pareceu. Ah, e ela nunca mais levantou, tadinha.

A prece

“Pai nosso, que estais no céu...”

- Fala, filho.

Silêncio.

“Pai nosso, que estais no céu..”

- Fala, pode falar.
- Er... quem tá aí?
- Eu, ué. Você não chamou?
- “Eu” quem? Quem tá aí, que merda é essa?
- Sou eu, cacete. O Pai. Você chamou, eu respondi.
- D-Deus?
- Eu mesmo. Diz aí, no que eu posso te ajudar?
- C-Como assim? Quem merda é essa?
- Ai, meu cacete. Sempre a mesma coisa... Vamos lá, é o seguinte. Eu sou Deus, e você me chamou. Diz aí, o que te aflige?
- C-como assim? Deus?
- Ô, caralho! Mas por que vocês nunca facilitam, hein?
-...
- Seguinte, já sei como isso funciona. Vocês só acreditam quando eu provo, né? E ainda se dizem crentes.

Uma nuvem de fumaça começa a tomar o chão do quarto. Um cheiro adocicado enche o ar e um vento vindo sabe-se lá de onde balança algumas folhas, espalhando-as pelo chão.

- O que tá acontecendo? Quem é você?
- Ai, cacete. Gente burra!

O vento aumenta, a fumaça torna-se espessa. Em cima do criado-mudo, m bonsai entra em chamas. No meio do fogo, um rosto idoso e imponente surge com uma voz retumbante.

- Acredita agora, infiel?
- Tá certo, tá certo, eu acredito... eu acredito...
- Então, diga no que posso lhe se útil.
- É você mesmo? Mas... mas como isso é possível?
- Putaqueopariu, hein? A coisa tá difícil de andar aqui. Seguinte: tu me chamou, eu vim. Ou você diz logo porque tava me chamando, ou avisa de uma vez, que eu tenho um outro tanto de casas pra visitar ainda essa noite.
- Você é mesmo Deus?
- Sou sim. A fumaça, o vento, a arvorezinha pegando fogo, nada disso funcionou, não?
- T-tudo bem... eu acredito.
- Mas então, me diga, meu filho: por que você me chamou.
- Eu... eu estava rezando.
- Sim, isso eu percebi. Mas por que rezavas?
- Bem... eu rezo toda noite, antes de dormir.
- Sei disso, sei disso. Mas vamos direto ao assunto! Imagino que irias me pedir algo. Pode mandar.
- Hum... er...saúde?
- Ah, pára, né? Quer que eu acredite nisso? Vamos lá, você pode fazer melhor que isso!
- Ahn... a paz entre os homens?
- Porra! Não me venha com conversa fiada! O que você realmente queria? Pode falar! Que tal ser promovido? Ganhar na Mega Sena? Ser adorado por todos, ser amado por uma em especial...
- Hum... sabe a Silvinha do 204?
- Não cobiçarás a mulher do próximo! Cuida com a boca que a Silvinha é casada.
- Ah, foi mal. Mas diz aí, posso pedir qualquer coisa mesmo?
- Claro, a oração é sua.
- Tá bom. Então me responde: existe vida após a morte?
- Ai, cacete. Que fixação é essa de vocês com a vida após a morte? Você pode pedir tudo o que você quiser, dinheiro, fama, amor, toda a felicidade de uma vida, TUDO! E vem me perguntar justo o que vai acontecer DEPOIS de você morrer?
- Ah, é uma curiosidade, assim.
- Não! Não existe vida após a morte. Morreu, morreu. E ponto final. Passar bem.
- Deus? Deus?

A fumaça se foi, o fogo se apagou e José sentiu-se confuso.

“Bah... não existe?”

Diálogo

10/03/04

- Alô?
- Ahn... Olá... Humm... Darlene?
- Não. Quem quer falar com ela?
- É o... Humm... Um ami...
- Tá, espera aí. Maria Do Socorro, telefone!
- Alô?
- Ahn, deve ser um engano... Eu queria fala com a Darl...
- É ela. Pode falar.
- Bom, eu vi teu anúncio no jornal e...
- E?
- Queria saber... Quanto?
- Trezentos reais a hora.
- Trezentos paus? Que facada!
- É o preço por um bom produto...
- Trezentos é muito... Faz por duzentos?
- Sinto muito, duzentos é o preço.
- Mas é caro!
- Quer coisa barata, procura outra.
- Ah, eu vi fotos tuas na internet... Não tem garota mais linda que tu nessa cidade!
- Então, querido... Por isso o preço é alto. Muita gente prefere qualidade a pechincha.
- Tudo bem... Trezentos por duas horas?
- Nã-nã-não, meu bem... Meu preço é esse, e garanto que vale a pena...
- Ah, dá um desconto aí, ô!
- Olha, essa linha não pode ficar muito tempo ocupada. Sou uma garota muito popular, sabe? Tem mais gente querendo falar comigo.
- Tudo bem. Mas se tu não conseguir nada para hoje, me liga de volta, tá? Meu telefone é XXX-XXXX. Vai ser melhor do que não ganhar nada.
- Isso eu duvido muito que aconteça, meu anjo. Tchauzinho...

* * *

- Alô?
- Olá, eu gostaria de falar com o... o... Droga, qual o nome dele mesmo?
- Maria? Quero dizer, Darlene?
- Ah, sim, oi. Sou eu.
- Nada para hoje, hein?
- Ainda quer?
- Duzentos pila?
- Trezentos. Duas horas.
- Duzentos e cinquenta?
- Não abusa.
- Ok. Onde? Tem lugar?
- Gosto de motéis...
- Conhece algum bom?
- O "Luxúria" é ótimo...
- Sei onde é... Onde posso te pegar?
- Na Rua Das ..., número XXX, apartamento XXX.
- Ótimo. Daqui a uma hora estou aí.
- Até mais, querido...
- Tchau!

* * *

- Sim?
- A Darlene está?
- Quem quer falar com ela?
- O Germânio.
- Germânio?
- É, o cara do telefone.
- Muita gente liga pra esse telefone.
- Ahn... Eu sou o "um ami".
- Ah, você. Peraí que ela já desce.
- Obriga...

* * *

- Olá, Darlene.
- Olá, meu bem. Germânio o teu nome, então?
- Aham.
- Sei...
- Mas é mesmo!
- Pode ficar calmo, querido. Estou acostumada a isso.
- Mas é...
- Você tem algum apelido?
- Meu amigos me chamam de Gezão. E minha mãe de Gezinho.
- Ah... Posso te chamar de Ger?
- Claro, Dar. Ou prefere Socorrinho?
- Gostei do Dar... Onde está teu carro?
- Passa só daqui a uns dez minutos.
- Como?
- Para ir no "Luxúria" não tem que pegar a linha XXX?
- Ônibus???
- Claro.
- Eu mereço... É, essa mesma...
- O ponto é logo ali. Vamos?
- Vai na frente, eu já estou indo...

* * *

- Mãe! Alguém ligou para mim?
- Não, Maria. Algum problema?
- Sim... Ai, quero dizer, não... Fica tranquila. Até daqui a pouco.
- Duas horas?
- Umas três... Se o ônibus não atrasar muito...

* * *

- Voltei.
- Percebi.
- ...
- Então...
- Hummm...
- Maria Do Socorro, hein?
- Darlene, para os... amigos... "Germânio"...
- É meu nome mesmo! Quer ver a identidade?!?
- Não precisa, Ger...
- Sabe, tu é mais bonita ao vivo que nas fotos...
- Obrigada.
- Universitária, sensual, carinhosa, tarada, gulosa e completa?
- Ahnnn... Anúncio é anúncio, sabe? Mas acho que é isso mesmo...
- O que tu faz?
- Hein?
- Ou melhor, o que tu não faz?
- Assim tu me encabula...
- Tudo?
- Bom... Dentro dos limites da normalidade... Tudo... E muito bem, por sinal...
- Por trás? Engole? A três?
- Bah, isso é básico.
- O que não é normal?
- Ah, sei lá...
- Cadáveres? Crianças?
- Não, não! Ui! Eu queria dizer coisas como... Levar pancada forte, ou enfiar objetos...
- Enfiar objetos não é normal?
- No cara, não!
- Ah, tá...
- Porque o interesse? Eras a fim?
- Não, não! É que...
- Olha, o ônibus chegou!

* * *

- Amigo, quanto está a passagem?
- Dois e cinquenta, senhor.
- Que assalto... Bom, aqui está.
- Obrigado, senhor.
- Querido...
- Sim, Dar?
- Não esqueceu de nada?
- Do que?... Ah... Bom, cada um paga a sua, né?
- Como assim???
- É trezentos mais taxa de transporte? Não me avisasse...
- Raios... Eu ainda vou me arrepender disso... Tudo bem, então. Tome...
- Obrigado, senhora.

* * *

- Enfim, sós...
- Bonito lugar.
- Nunca tinhas entrado num motel antes, meu bem?
- Não. Na verdade, eu sou virgem.
- O que?
- É. Zero quilômetro. Louco para mudar.
- Ah, agora entendo o desespero... Pode deixar, meu garoto, vais sair daqui um homem completo...
- Tu me garante?
- Garanto que sim... Maior de idade, né?
- Com certeza.
- Então relaxa, meu amor... Quer desbravar o que tem por baixo desse vestido, hum?
- É para isso que eu tô pagando, não?
- Ok, senhor estraga-climas... Vai tirando essas calças, rápido!
- Desculpa, é que o tempo é curto... Deixa eu ativar o cronômetro...

* * *

- E então?
- Ahhnnnnnn?
- O que achou, querido?
- Nossa, não sei como passei tanto tempo sem isso!
- É... Agora vai viciar...
- Espero que não... Meu orçamento não iria permitir... E craque é mais barato, se for o caso.
- Argh! Comparada com uma pedra de cocaína suja!
- Pelo menos eu não falei "chá de cogumelo", a obtenção é ainda pior...
- Uhum...
- E para ti?
- Para mim o que?
- Como foi?
- Bom... Digamos que, para uma primeira vez, você foi razoável...
- E no geral?
- Deu pro gasto.
- Tem certeza? O cronômetro tá no quinze...
- Já vi gente pior, nem esquenta. Se nós fossemos namorados, daí eu me preocuparia.
- Tens namorado?
- Não... E não estou à procura de um no momento, certo?
- Ok... Ei, ele está voltando à vida!
- Já???
- Ele sabe como cada minuto perdido sai caro.
- Umpf... Bom, vamos fazer isso direito agora, então...

* * *

- Ufa!
- Essa foi melhor?
- Bem melhor... Poucos clientes conseguem me dar um orgasmo.
- Sério? Não foi fingimento?
- Não.
- Nem na primeira?
- Ah, naquela sim.
- Ahnnn... Pareceu que a primeira foi mais verdadeira...
- Não. Essa agora foi... E como foi!
- Então quanto mais teatrinho, maior a chance de ser fingimento?
- É... Pode ser por aí...
- Bom saber. Então eu fui demais nessa?
- Não vamos exagerar. Digamos... Surpreendente.
- Isso é um elogio... Acho...
- Claro que é... Falando nisso...
- Diga.
- Não queres beber nada?
- Eu estava pensando nisso. Acho que vou pegar uma cerveja.
- Duas, né?
- Tu quer mesmo? Aqui parece ser caro.
- E daí?
- Tudo bem, não te preocupa que eu pego para ti.
- Só pEga?
- Claro. Porque?
- Entendo... Aluga a máquina, mas não paga o combustível... Vou lembrar disso na próxima...
- Tem Skol e Schin. A Schin é mais barata!
- Me traz uma Skol, meu querido... Unha de fome...
- Hein? Não escutei.
- Esquece...
- Aqui está.
- Obrigada... Ahhhh, refrescante...
- Bom, né? Mas toma rápido.
- Por qu... Nossa!
- Tem muita energia acumulada. Agora ele está a toda.
- Tudo bem... Não pode ser rápido dessa vez... Vamos lá!

* * *

- Ahhhhhhnnnnnnnnn...
- Essa foi fingimento, não?
- Fingimento? Nunca! Foi incrível!
- É que teve teatrinho demais...
- Se tu soubesse o que são orgasmos múltiplos, não pensaria isso...
- Eu sei o que são orgasmos múltiplos!
- Saber é uma coisa... Sentir é outra.
- E pular é outra. E andar de bicicleta é outra. Claro.
- Bobo!
- Que tapa fraco.
- É que foi de brincadeira, oras.
- Ah, sei... Isso parece coisa de casalzinho.
- Verdade. Intimidade demais. É melhor parar por aí.
- Ei, ainda faltam cinquenta e dois minutos!
- Eu não estava falando em parar isso... Se bem que, se continuar assim, eu vou sair daqui morta.
- Espero que não. Deve ficar gelado.
- Eu também espero. Tenho que ir para a faculdade amanhã ainda.
- Ahá! É universitária mesmo!
- Claro que sim.
- Muita gente bota isso no anúncio só para atrair, não?
- É... Os velhos adoram traçar garotinhas...
- E tu gosta dessa vida?
- Falando assim parece que "essa vida" é algo horrível...
- Não queria dizer isso. Mas tu gosta?
- Eu faço sexo toda noite e ainda ganho dinheiro. Qual a parte ruim?
- É, tem razão. Mas e quando tais sem vontade?
- Daí eu não saio.
- Os clientes não ficam brabos? "Como assim, fechado para manutenção" e coisas do tipo?
- É, alguns ficam. Mas a procura é grande. Eles resmungam, batem o telefone na minha cara e depois de uns tempos ligam de novo.
- Que grossos. Não tem educação, não?
- Desde quando homem se importa com sentimentos de pu... hum... acompanhante?
- Não acredito que nós sejamos assim...
- Não? Vai numa zona um dia para ver... Pais de família e homens de negócios viram bárbaros selvagens.
- É por isso que tu não trabalha em uma?
- Eu não preciso. Em zona tem que pagar para o dono também.
- Pra que pagar se o dono não faz nada?
- Ele fornece o lugar.
- Lugar até eu posso fornecer. Tem um quarto na minha casa que dá para botar uma cama de casal. É só limpar o pó.
- Então abra uma zona, oras.
- Isso parece interessante. Será que posso entrar no negócio?
- Virar cafetão?
- Não, prostituto.
- Poder tu pode. Mas eu nunca vi garoto de programa que não atendesse "elas & eles", ou pelo menos casais.
- Eh, isso não! Não dá para atender só mulher?
- A procura é pouca. Mas se tu tiver essa disposição com todas, é só aprimorar a técnica que podes fazer sucesso.
- Por falar em disposição...
- Não acredito! Vai acabar caindo assim!
- Espero que só caia daqui a uma hora.

* * *

- Puf... Puf... Afff... Eu vou morrer...
- Essa foi demorada, hein?
- É... Levando em conta o tempo da primeira, tu já progrediu muito. Ufff...
- Cansada?
- Muito. Por isso não costumo fazer programas de duas horas... Corro o risco de encontrar um monstro com tu.
- Vou tomar esse "monstro" com um elogio.
- Depende do ponto de vista. Tem donas de casa que acham quatro demais até para um ano. Se tu for sempre assim, casa comigo.
- Aceito.
- Eu estava brincando.
- Droga.
- Cigarro?
- Não, obrigado. Isso faz mal.
- Eu sei. Cerveja também, e tu tomou.
- Mas a cerveja que eu tomo não estraga o fígado de quem está do meu lado.
- Ok, entendi. Posso passar sem dessa vez. Afinal, seria esperar demais que tu fosse comprar um para mim, certo?
- Pelo teu bem, claro.
- Sei...
- Por que tu não teve mais cliente hoje? Não tem procura sobrando?
- Hoje foi um caso a parte. Um desmarcou, o outro eu não queria ver.
- Sorte minha.
- Muita.
- Porque tu é tão procurada?
- Não deu para perceber?
- Claro que deu. Mas tanta gente assim está disposta a pagar tanto por uma hora de diversão?
- Não tem quem pague uma fortuna por alguns segundos pulando preso em um elástico? Então...
- Pois é...
- É só unir dinheiro a casamentos infelizes e você tem um vasto mercado de trabalho.
- Então tu ganha dinheiro com a infelicidade dos outros?
- Prefiro pensar que eu dou um pouco de alegria aos infelizes. É mais romântico.
- Lindo. Trabalho voluntário nem pensar?
- Nem pensar. Tudo por um preço módico.
- Nada módico.
- Nem todos pensam assim.
- Desse jeito até parece fácil ganhar dinheiro.
- Não é. Precisa-se romper dogmas morais idiotas, enfrentar preconceitos, gostar da coisa... E ter um corpo abençoado, claro.
- Por Deus?
- Pelo Demônio, eu acho.
- Pela Natureza, pode ser?
- Ótimo.
- Posso dar uma olhada atenta nesse corpo?
- Olhar?
- É.
- Tudo bem. É tu quem está pagando, lembra?
- Assim parece eu falando...
- Essa foi a intenção.
- Hummm... Quanta coisa aqui... Deve ser difícil fazer alguma coisa decente com a boca.
- É um mundo novo?
- Bom, já vi coisa parecida nas aulas de anatomia. Mas era frio e fedia a formol.
- Argh, não fala nessas coisas!
- Ok, esse tapa foi forte...
- Desculpe. Não gosto de gente morta.
- Na verdade era apenas esse pedaço, não a pessoa inteira.
- Que seja, que seja!
- Mas não é tão horrível quanto aparenta. Na verdade, parece borracha e...
- Quer continuar olhando, por favor???
- Sim, senhora. Incrível... Nem um buraquinho.
- É por que estou com as pernas dobradas.
- Pensei que não tivesse.
- Sonhe, querido. Mulher alguma escapa.
- Mas nas revistas...
- Computador. Algumas atrizes de TV devem ter a bunda parecendo a Lua.
- Não destrua minhas ilusões.
- É apenas a verdade.
- Raios! Jamais vou conseguir olhar um pôster de revista com os mesmos olhos!
- E não esqueça das calças jeans, que escondem muita coisa.
- Agora é a vez de você ficar quieta.
- Tudo bem. Afinal, tu é o patrão, não?
- Sou sim. Agora vá para o chão e imite um pinguim.
- Não exagere.
- Um ornitorrinco então?
- Ornitoquê?
- Um pato com pêlos que bota ovo e amamenta os filhotes.
- Parece seriado japonês. Uma lula que anda e solta raios laser.
- É tão bizarro quanto. Mas eles não crescem.
- Ao contrário de certas coisas, pelo visto.
- Toda essa investigação deixou ele atento.
- Mais uma e ele vai quebrar no meio.
- Será que isso pode acontecer?
- Nunca vi.
- E já viu muitos, imagino.
- Mais do que tu imagina.
- Desde quando?
- Comecei tarde, mas não tão tarde quanto tu...
- Depois que começa não se pára mais, hein?
- É. Arranja uma namorada logo.
- Que tal tu?
- Compre um carro e me sustente que a gente conversa. Só queria te alertar para as inevitáveis crises de abstinência.
- Não me assuste.
- Mas sempre pode contar comigo, claro.
- A fidelidade do cliente conta?
- Muito.
- Descontos progressivos?
- Talvez.
- Vou pensar no caso. Mas ainda tenho dez minutos...
- Devo me lembrar de nunca mais fazer programas longos...

* * *

- ...
- ...
- ...teu celular tá tocando...
- Não tenho celular. É o relógio.
- Fim do tempo?
- É.
- Deus existe.
- Tem bônus?
- Sonha! Não consigo nem me mexer mais.
- E eu vou precisar comprar um saco de gelo.
- Passa Gelol. Vamos antes que eles cobrem mais pelo quarto.
- Adeus, quarto. Sempre lembrarei de você.
- "O lugar onde deixei minha inocência"?
- Não, a inocência foi-se há tempos. Já tive duas parceiras sexuais.
- Quem?!?
- Minha mão esquerda e minha mão direita.
- Acredite, elas não conseguirão mais matar a ânsia.
- Droga. Revista custa pouco e dura para sempre.
- Mas dá pra comparar?
- Nem de longe.
- Então não reclama.
- Não estou reclamando. Quanto é o motel?
- Oitenta.
- Tens quarenta trocado?
- Maldições... Vou acabar no prejuízo desse jeito...
- Que nada. Trezentos, menos quarenta, menos dois e cinquenta, menos...
- Ah, tá bom! Toma!
- E agora? Para casa?
- Para um spa seria melhor...
- Falando assim até parece que não gostou.
- Gente como eu sempre tem que gostar do que faz.
- Mas não foi nem um pouco diferente?
- Foi.
- Quanto?
- Muito bom, por sinal.
- Só muito bom?
- Tá! Foi espetacular, genial, nunca vi um homem assim na minha vida! Feliz agora?
- Muito. Tu pagaria por isso?
- Para que, se posso fazer ganhando?
- Só estou fazendo uma pesquisa de mercado.
- Se eu fosse uma perua rica mal comida, pagaria todo dia.
- Bom sinal.
- Mas eu mesma? Não, nunca.
- Ah...
- Bem, eu vou pegar o ônibus logo, que essa deve ser a última linha.
- Eu vou contigo.
- Para que? Pagar minha passagem?
- Não, para garantir que tu vai chegar viva em casa.
- E tu se importa?
- Para não ser acusado de estupro quíntuplo seguido de morte, sim.
- Eu não devia esperar mais...
- Se quiser mais...
- Não, obrigado! Céus, preciso de uma pomada!

* * *

- Pronto, está entregue.
- Agradeço ao transporte público.
- Então, acho que é adeus.
- Não tão rápido. Há certas coisas que tu precisa pagar, senhor pão-duro.
- Droga.
- Espero que toda essa economia tenha sido avareza, não falta de dinheiro.
- É, eu não tenho um centavo.
- E, se isso for verdade, não vai ter um testículo também.
- Afffff... Pode largar, pode largar! É brincadeira.
- Confiado.
- Aiiii...
- Então?
- Aqui.
- Obrigado, querido. Volte sempre.
- Nota fiscal?
- Muito engraçado.
- Tu deveria rir. Afinal, fiquei só com a grana da passagem de ônibus.
- Tu que acha...
- O que?
- Afinal, eu forneci as camisinhas. Como nós dois usufruímos o produto, vamos rachar.
- Mas tu não falou isso antes!
- Estou dizendo agora. Apenas o que é justo, meu anjo.
- Raios. Pegue.
- Obrigado.
- E agora vou ter que voltar a pé.
- Ora...
- Que??
- Pode dormir aqui, se quiser.
- Sério?
- Aham.
- Gostei da oferta. Cama de casal?
- Sofá da sala.
- Melhor que nada. E tua mãe?
- Sem problema.
- Então vamos.
- ...
- ...
- Tu dorme com a porta trancada?
- É algo que tu só vai saber testando...
- Isso foi uma oferta?
- Só não nas próximas horas, por favor!

Ora, pois...

Hoje olhei as estatísticas do meu site. Vocês não tem ideia de quantas variantes eu encontrei para buscas "como tirar marca de chupão do pescoço". Não sei vocês, mas eu acho que o pessoal por aí anda se divertindo bastante. Pior que se eles seguirem o que eu escrevi no texto sobre Marco e Beth, vai estar cheio de neguinho por aí com perfume de vodka no cangote. Já pensou a roubada? "Seu cachorro! Fedendo a cachaça de novo?" "Não amor, é só pra tirar uma mancha do pescoço". Não sei qual é pior. Depois disso vai ter gente tendo que passar vodka no olho roxo. O mais legal é que, com tanta gente acessando aquele texto à procura de uma solução, eu já tô conseguindo identificar os meus leitores na rua. Cidadão passa com aquele cheiro de álcool na canguta e você já saca: "esfregou um pente com cachaça aí é, espertalhão?" Mas vocês podem ficar tranquilos que eu sou bem discreto. (IP 200.175.53.170, isso é pra você)

Pra mulherada fica bem mais fácil, agora com essa moda de lenço no pescoço. Melhor sair parecendo personagem de bang-bang que esfregar um pente de plástico no pescoço e sair com cheiro de bebida. Aliás, ultimamente esse lenço tá bem vesátil, né? Com esse esquema da gripe é bem mais prático levar o lenço no pescoço que levar no bolso. É espirrar e já tá ali, bem à mão. Tem os seus problemas, claro. "Ai, amiga, esse seu lenço verde ressalta tanto seus olhos. Adorei!" Eca.

Agora, pior que o lenço mesmo é aquela flor gigante de couro na cabeça. Meu, o Falcão usava um girassol na lapela e era brega, agora pôr na cabeça pode, né? "Daí é chique, bem". Eu juro que não entendo a moda. Outro dia minha namorada veio com uma blusinha de bolinha que parecia catapora. Já vi até alguma coisa parecida em circo, se não me engano. "É de poá", ela disse. "Podia ser de sampa! Ainda assim é estranho!", eu falei. Só bem depois é que ela foi me explicar - bem depois porque ela ficou uma tarde sem falar comigo - que poá, não era poá. Era pois. Pois então. Pois, eu fui saber, era bolinha em françês. Tem coisa mais afetada? É BOLINHA! Pior: se for pequeninha, aí é petit-pois. Pe-tí-po-á. Sabe o que é isso? BOLINHAZINHA! A minha namorada não concordou muito e resolveu a discussão de uma forma bem prática. Me deu uma joelhada nas pois. Daí eu baixei a bola. Literalmente. Posso até não ser fino, mas ao menos por um tempo, falar fino eu falei.

sábado, 22 de agosto de 2009

Tema da Rodada

O tema da rodada é:

"Escrever um texto humorístico/engraçado".

Vamos tentar trazer à tona nossa veia comediante!

Tudo deve ser postado até o dia 26 de agosto, quarta-feira.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Votação - Pintura Abstrata

Está aberta a votação para o tema "Foto: PINTURA ABSTRATA".

Para votar basta comentar neste espaço até o dia 20 de Agosto, indicando qual foi o melhor texto. Participe!


* Peço desculpas ao público e aos duelistas por não participar desta
rodada.

domingo, 16 de agosto de 2009

Abstrato

Acendeu o cigarro negro, puxou o ar fazendo força e, e antes de soltar a fumaça, vociferou:
- Como assim, só isso?
- Só isso? Mas senhora, este é um raríssimo Kandinsky.
- Kandinsky? Pro inferno com isso! Não me interessaria nem que fosse um Gabbana.
- Senhora, é uma das obras de arte mais respeitadas dos últimos séculos.
- Ah, é? Pois eu só vejo cubos mágicos e uma droga de uma cabeça mal desenhada! O que mais ele me deixou?
- Apenas o quadro, minha senhora. Mas a senhora tem que entender que...
- Entender? Pois eu digo a você quem é que tem que entender alguma coisa aqui. Eu tive que aguentar esse porco roncando do meu lado durante todos esses anos para receber uma porcaria de um desenho? Ele é dono de fazendas, diabo! Onde estão as mansões e os carros importados?
- Está no testamento, madame. A casa continua com a senhora, é claro. Além disso, o patrão deixou este valiosíssimo exemplar artístico. Já foi procurado por diversos museus.
- Então porque não vende logo essa porcaria? Pode fazer um cheque, porque na minha parede é que essa coisa sem sentido não vai ficar pendurada.
Apagou o cigarro no cinzeiro de mármore, descruzou as pernas e deixou a sala. Com um olhar de desdém, jogou as folhas sem assinatura em cima da mesa de reuniões. O quadro, guardado por um forte sistema de segurança, continuou trancafiado por anos ainda, aguardando o dia que voltaria para o seu lugar: junto ao público.

A canção do vidente sem rosto

Em um reino distante
Brilham o sol e a lua
Mas, em dado instante
A danação se configura

Apu, a Grande Serpente
Se ergue em fogo e fúria
Acolá estremece o vidente
Serão eras de dor e penúria

Reza a ancestral profecia
Não haveria o apocalipse
Pois a paz Apu encontraria
No buraco negro do eclipse

Mas o monstro impaciente
Pelo negro sol não espera
Sua imponência não mente
A fome consome a fera

No reino não há descanso
O rei abandona seu posto
E o camponês no remanso
Ouve o vidente sem rosto

“São tempos de inglória
Mas há esperança nos dias
Pois se erguerão da escória
Nossos insuspeitos messias”

“Cinco serão os amigos
Unidos por sangue e aventura
Dispostos a encarar os perigos
Que se cante a sua bravura!”

Vindo de terras baixas e bravias
O guerreiro Odedã, anão de valor
Ao lado do que indica as vias
Dinar Doric, o elfo rastreador

Laruan, com o fogo no fim
Um feiticeiro de poucas ações
Com o pequeno Hodin Nim
Que furtivo invade negros salões

Porém cada herói fica diminuto
Próximos ao seu líder valoroso
Para salvar o mundo em luto
Unidos por Doméi, cavaleiro poderoso

Sem perder tempo parte a companhia
Não sem ouvir o vidente a última vez
“Há muitos perigos, Apu não é sozinha
E que Mepala Serandon esteja com vocês”

O Arrigab atravessam incansáveis
Deserto que traga os irresolutos
E se esquivam de terrores improváveis
O Abismo de Gobium de enigmas ocultos

Os desertos e abismos se acanham
Pelas ameaças que estão pela frente
O horror e desespero que acompanham
Quem invade a Floresta dos Holpentes

Só com sua firmeza de espírito
Os heróis sobrevivem ao Holpente
Ente horroroso de conto e mito
Que louva Apu, a Grande Serpente

De sofrimento a saga se faz
Medo assola o piromante
Não podem olhar para trás
O final se revela adiante

Saindo da mata de sombra
Vacila até o temerário
Mesmo Doméi se assombra
Com o pavor daquele cenário

Sobre os montes gêmeos de Gabos
Repousa o imponente colosso
Com Holpentes cercando seus lados
Sem se aproximar do ser ominoso

Encarando seu desafio final
Deixam aos deuses suas apostas
Odedã grita em carga frontal
Os quatro atacam pelas costas

O poder de Apu não é lenda
A face rubra de fogo infernal
Sua forte carapaça aguenta
Dano que destroçaria um mortal

Mas o panteão vela os valentes
E a força cede ante a bravura
Sob golpes cruéis e potentes
Apu sente a derrota em agrura

Por fim, em golpe poderoso
O monstro cede e tomba latente
Vomita seu ícor leitoso
E o mundo está em paz novamente

Os heróis retornam em glória
O povo nas ruas comemora
Mas o vidente conhece a história
Sabe que o mal nunca vai embora

“Apu voltará a se erguer
Pois inquieto é o animal
Até o Buraco Negro aparecer
E encontrar seu destino, afinal!”

Não há fábula com só um significado
A palavra é tão enganosa quanto o ar
Como em um cubo mágico desordenado
Só na ordem certa suas facetas irá revelar