terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Votação

Aí está a votação da rodada.

Todo mundo pode votar, basta comentar neste tópico, indicando o nome ou o autor do texto de sua preferência até o dia 30 de fevereiro.

Aproveito para fazer uma leve propaganda de um novo blog, nosso afiliado. Entrem e confiram o www.incubadoraliteraria.blogspot.com . Quanto mais gente lendo e escrevendo, maior a rede e maior a difusão da literatura. Vamos lá!

Poder da sugestão

Thiago Floriano
26/fev/2008

Um cachorro (ou seria um monstro?) os persegue imerso em um vasto matagal. Correm até a porta de um casarão e fecham as portas ao som dos grunhidos da fera, que lá fora os amedrontava. Agora, pareciam seguros. Separam-se e partem um para cada lado, procurando alguma maneira de sair dali. Ela segue por uma grande sala de jantar até um corredor. O único som que se ouve é de um relógio antigo de chão, cujo pêndulo era o único objeto que aparentava ter vida. Ao final do corredor, se depara com um sujeito agachado, de costas para ela. Poucos segundos e ele se vira.

A criança, sentada no sofá, dá um tremendo pulo devido ao susto. Seu irmão ri e continua pressionando os botões até que a mulher descarregue um pente de sua Colt no maldito Zumbi. Se não estivesse sedento por ação à distância, sustos e sangue virtual, não teria escolhido Resident Evil (Bio Hazzard) para lhe fazer companhia através da madrugada. Já tinha idéia do que o esperava no jogo porque seus amigos comentavam as assustadoras histórias no colégio.

Longe de casa, Pedro fica preso no trânsito caótico da cidade. Por sorte, a rádio que ouve o agrada com uma bela canção da Nação Zumbi, muito melhor do que a tal banda Zumbis do Espaço, que a outra estação veiculava naquele momento. Não percebia, porém, relação nenhuma entre as músicas. Ao chegar em casa, percebe um silêncio assustador. Abre a porta, que emite aquele som característico das portas antigas, de madeira com dobradiças em ferro.

Não encontra ninguém na sala. Apenas zumbis vagando pela tela da televisão e os controles do videogame jogados pelo chão. Não se preocupou porque provavelmente seus filhos já deveriam estar dormindo. Segue até a cozinha, come um pão com manteiga e segue para o quarto dos meninos para o tradicional ato de colocar sobre eles o cobertor. Não os encontra.

MDC*, 14 anos, e DFC*, 5, correm pela rua. D. carrega apenas um boneco do homem-aranha, enquanto seu irmão leva consigo um taco de beisebol. Assustados com as cenas do jogos, ficam atentos a qualquer movimento estranho. M. tenta não demonstrar seu medo ao irmão, mas o pequeno não pára de chorar.

Pedro fica totalmente descontrolado e entra em cada aposento da casa procurando seus filhos. A primeira idéia que vem na cabeça desesperada é que essa história toda de zumbis se tornou real. Entra na dispensa no quarto de hóspedes e percebe que labaredas consomem o guarda-roupas. Sem perder tempo, liga para a polícia e comunica o desaparecimento dos filhos. Ligar para os bombeiros fica em segundo plano, o mais urgente agora é achar o que ele tem de mais precioso.

* O nome das crianças foi preservado em cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

Zumbi em mim

Marina Melz
26/02/2008

O desejo é um zumbi dentro de mim. Ora brando, ora incendiário. Se vivo, consome minhas entranhas. Se morto, torna a vida um insuportável preto e branco.

A saudade é um zumbi dentro de mim. Ora esquecida, ora avassaladora. Se viva, uma tortura para a alma. Se morta, um inconcebível aperto no peito.

O ódio é um zumbi dentro de mim. Ora suportável, ora ensandecedor. Se vivo, garra para lutar contra. Se morto, uma calmaria ensurdecedora.

A vaidade é um zumbi dentro de mim. Ora enriquecedora, ora insportável. Se viva, me garante bons dias de bom-humor. Se morta, me faz esquecer como é encarar a mim mesma.

O ciúme é um zumbi dentro de mim. Ora afetivo, ora desapego. Se vivo, uma tortura emocional das mais fortes. Se morto, me preocupa o desapego.

Você é um zumbi dentro de mim. Ora esquecido, ora insuportavelmente presente. Se vivo, um misto de alegria e conscentimento. Se morto, uma falta inexplicável.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Do outro lado

Fábio Ricardo
25/02/08


Senti meu corpo sendo dilacerado quando passava pela cerca de arame farpado que circundava a propriedade. Restos de carne e podridão eram arrancados dos corpos fétidos ao meu redor. O cheiro era repugnante quando as carnes se desprendiam dos corpos e caiam pelo caminho. Além do arrastar de membros, só se ouvia o choro baixinho de uma criança, vindo de dentro do velho hangar para onde nos dirigíamos.

Ouvi um tiro sendo disparado e pude ver quando a bala se alojou no crânio da criatura pouco atrás de mim. Seu corpo caiu sem reação e toda a parte frontal de seu rosto desapareceu. Mesmo assim, ele ainda se levantou cambaleante e voltou a caminhar com passos pesados.

Faltava pouco para amanhecer, mas mesmo assim todos continuavam avançando através do portão de madeira do velho hangar. Um homem tentava se esconder atrás de um caixote com uma criança em seus braços, enquanto outro se portava à frente deles, com uma espingarda de caça em mãos.

Não sei por que andávamos em sua direção, muito menos o que eu estava fazendo lá. Apenas me lembrava que há poucas horas eu estava ao lado daqueles homens, com minha filha nos braços e fugindo daquelas terríveis criaturas. Eles conseguiram correr pelo descampado para escapar da horda de zumbis. Eu não. Eu fiquei para trás e ouvi quando gritaram meu nome, sabendo que não havia mais nada que pudessem fazer por mim. Agora, apesar de eu tentar parar, meu corpo não mais me obedece. Apenas caminho enquanto minha consciência vai se perdendo a cada momento que passa. Lembro de quando senti os dentes podres daquelas criaturas atravessando os músculos de minhas costas, e suas garras rasgaram a pele de minha face. Meus amigos nada puderam fazer para evitar, apenas levaram minha filha para longe de mim.

Eu não sentia raiva, não sentia tristeza, não sentia remorso. Sentia apenas um apetite incontrolável pelo gosto de cérebro humano.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Os Herdeiros do Coveiro sem Cova

Entraram correndo. Fecharam atrás de si o portão que separava os vivos dos mortos. “Agora os mortos dos outros mortos”, pensou o velho da espingarda na mão. Os muros altos e o portão lhes dariam alguma proteção por algum tempo. Era estranho procurar a vida na vila dos mortos. Escapar da morte em meio aos que já a abraçaram. A moça da saia rodada estava em paz. Sempre odiou cemitérios. Não visitava nenhum, não assistia a funerais nem de familiares. Preferia lembranças melhores, dizia. Mas aqui, entre as lápides sob a lua que começava a aparecer, ela se sentia em paz. “É lá fora que se morre”, pensou. E permitiu-se um momento de alegria entre os túmulos. Apenas o segundo desde que esta loucura começara. O primeiro foi encontrar o velho e seu filho e, assim, não precisar mais vagar sozinha por aí, à noite, feito um... Ela fez uma careta para não pronunciar a palavra. Mas já a havia pensado. E no pensamento, que é tão feito de palavras como um livro, lia-se zumbi. O filho do velho viu a expressão da moça e foi como se lesse a palavra. Levantou o revólver de tambor procurando algo em que fazer mira enquanto apertava o cabo do facão na outra mão. Mas aqui todos os mortos estão em silêncio, dormindo o sono dos justos, como diziam uns, ou descansando em paz, como dizem outros, em suas camas de madeira com dossel de terra. Nas cabeceiras liam-se seus nomes, como para que não se confundam na hora de voltar para a cama. A troça não agradou o velho da espingarda. Não gostou de pensar que alguns dos seus amigos, que ali estavam, podiam levantar-se e querer um abraço em nome dos velhos tempos. Mas logo se tranqüilizou lembrando que os nomes nas lápides não eram para aqueles que nelas se deitavam. Mas para aqueles que entre elas caminhavam. “Afinal, somos nós que precisamos de guias. Somos nós que vivemos perdidos”. Pôs-se a caminhar seguido do filho e da moça da saia rodada. Lá fora os mortos caminhos entre os vivos, cá dentro, os vivos entre os mortos.
Um grunhido os despertou. Voltaram os rostos, assustados e de armas a postos. Teriam sido encontrados? A cena que viram, no entanto, foi desconcertante. Pálido, com a luz da lua banhando-o, estava um dos mortos-vivos. Grunhindo com as veias roxas mostrando-se sob a pele e com os braços estendidos em sua direção, tentando alcança-los. Mas não saía do lugar. Seus pés não tocavam o chão. Balançavam-se a um metro e meio de altura do chão, como se estivesse caminho com os sapatos sem cadarço flutuando. Os cadarços que faltavam estavam em torno do pescoço machucado e iam amarrar-se num galho de árvore logo acima da cabeça. Um fruto podre pendendo da árvore morta. Mantendo-o sob a mira, aproximaram-se. O braço esquerdo tinha ainda as marcas de dentes, provavelmente o ferimento que o transformara naquela abominação. A moça da saia rodada tinha os olhos inundados em lágrimas. Sentia pena dele. Ali pendurado, enforcado em sofrimento eterno. Como ele tinha parado ali ela não sabia, mas sabia o que precisava ser feito. Não se assustou quando o velho levou o cano da espingarda bem perto do rosto da criatura, que estendia os braços e grunhia enquanto tentava inutilmente caminhar para pega-los. Uma marionete pendura pelas cordas enleadas. A moça virou-se. Ouviu o velho puxar o cão da arma. Um breve silêncio. Um suspiro pesaroso — o velho parecia tão triste quanto ela — e a explosão. Ela não se virou. Ninguém falou. Só pela sombra que atingia uma lápide ela via o corpo inerte, com os braços pendurados, balançando-se, de um lado para o outro, como um pêndulo que marcava as horas para o inevitável. Finalmente ela vira-se. Não olhou para cima. Via apenas os pés que balançavam, um já sem o sapato, que caíra com o tiro. O cano da espingarda baixou. O velho fungou. Também tinha os um pouco úmidos. Já os olhos do filho não se comoviam.
— Vocês não vão chorar por ele, vão? Ele não teria pena de nós se fosse o contrário.
— Mas ele teve — retrucou o velho — se algum morto-vivo tivesse chegado aqui e ele já estivesse morto, não teria porque tentar come-lo, logo ele não se tornaria um zumbi. E se ele já fosse um zumbi, não teria se enforcado. Se ele está aqui é porque sabia o que aconteceria com ele depois da mordida no braço. Foi para não nos caçar, que ele se matou.
— Sem nem mesmo nos conhecer, completou a moça.
— Só é pena que a coragem não traga por si só sabedoria. Ele não sabia que precisava destruir o cérebro. Provavelmente morreu e ficou pendurado até a mordida fazer efeito e ele acordar como um deles.
— Pela roupa pode ser o coveiro, observou o filho do velho da espingarda.
— E a casa dele deve ser aqui perto. Lá a gente deve estar mais seguro, concluiu a moça, tentando não olhar para vulto pendurado.
E o trio se foi deixando para trás a árvore do coveiro sem cova.
A casa era pequena, o mobiliário simples. Foi tudo o que puderam observar antes de ouvir o som do grito e um arranhar constante. Seguiram o som com cautela, armas em punho. A moça da saia rodada atrás da fila, o filho do velho na frente. Acenderam a luz da cozinha de azulejos azuis decorados. O som vinha da porta que dava para o porão. O filho do velho apontou o revólver para a porta e fez sinal para o pai abri-la. De dentro saltou uma mulher e o filho do velho por pouco não disparou contra ela confundindo-a com um zumbi. A sorte foi que ela estava toda arrumada. Com um vestido de baile turquesa brilhante bem ajustado ao corpo, um colar de pérolas falsas que dava algumas voltas ao redor do pescoço, o cabelo com um loiro penteado de festa e muito bem maquiada. Por pouco o filho do velho não disparou quando ela se precipitou para os seus braços. Antes o tivesse feito. Só quando viu a expressão de dor do filho o velho percebeu o que acontecera. Com um golpe com o cabo da espingarda afastou a criatura do rapaz o suficiente para disparar um tiro certeiro que arrebatou o rosto maquiado e lançou tufos de cabelo laqueado ao chão da cozinha. Quase imediatamente, o velho virou a arma alguns graus para a esquerda e, de mira feita e olhos fechados, puxou o gatilho novamente. Espalhou sobre o azulejo azul a cabeça e o sangue do filho. “Sangue do meu sangue”, pensou, e colocou o cano quente sob o queixo. A moça da saia rodada deu rápido um tapa no cano que reclamou com chumbo contra o teto. O velho olhou para ela, deixou cair a arma ao chão, lágrimas ao rosto e o corpo à moça, que o amparou o melhor que pôde. Levou-o de volta a sala e deitou-o no sofá. Tornou a cozinha para pegar a arma e viu o ferimento no ombro do rapaz, as marcas vermelhas de dentes. Nauseou-se frente aos corpos sem cabeça e a cozinha ensangüentada. Aliviou o estômago ali mesmo, junto à porta que leva ao porão. Limpou a boca na manga da blusa, pegou a espingarda do chão e desceu as escadas com o dedo no gatilho.
Lá embaixo a luz estava acesa e viam-se duas mesas de metal. Sobre uma delas, o corpo inerte de um senhor de terno bem alinhado. A moça parou no último degrau. Não ouviu nada. Olhou em volta. Nada. Com a arma apontada ao corpo se aproximou em silêncio, pé ante pé. Apontou para a cabeça, envolveu o gatinho com o indicador e tocou a têmpora com a ponta do cano. Deu três cutucões. Estava morto. Respirou um pouco mais aliviada. O homem era velho e um pouco barrigudo, mas estava vestido com tal elegância que lhe pareceu charmoso. O cabelo branco impecavelmente penteado e o rosto maquiado davam a impressão de que poderia a qualquer momento abrir os olhos acordando. O pensamento a fez afastar-se um pouco e olhar novamente em volta. Era ali que eles preparavam os mortos para os velórios e enterros, disfarçando a morte com uma camada generosa de pó-de-arroz e algum blush. “Do pó ao pó”, o trocadilho lhe veio. A mesa ao lado estava vazia, mas numa banqueta próxima estava um estojo de maquiagem. Ao lado deste um espelho de mão fora esquecido do lado de fora. “Mas os mortos não precisam de espelhos para maquiarem-se. São os vivos que se espelham em reflexos”. No chão, atirados a um canto, viu três vidros de comprimidos com algumas poucas bagas bicolores que sobraram caídas em volta. Ao lado da cama vazia havia um copo de água pela metade. “Metade vazio”, lembrou-se do adágio Olhou para o senhor distinto da mesa ao lado. “Ela só queria ir bonita”. Voltou para o estojo de maquiagem. Pegou o espelhinho de mão e procurou-se lá dentro. Quase não se encontrou, tão suja que estava. “E ela estava certa”. Chegou a pronunciar as palavras baixinho, enquanto olhava para o estojo que guardava os segredos da beleza e certamente algum pó-de-arroz. Foi à pia na parede próxima, lavou o rosto, os braços e o colo o melhor que pôde e secou-se com uma toalha de rosto. Passou também a toalha umedecida pelas pernas, tirando o grosso da sujeira. Sentou-se na mesa vaga, com o espelhinho na mãe esquerda e o estojo sobre as coxas escondidas sob a saia rodada. “O certo seria deitar-me”, ponderou olhando para o vizinho de mesa. Mas aí não conseguiria maquiar-se direito. Permaneceu sentada e abriu o estojo. Lá dentro encontrou, junto com os cosméticos, um caderno grosso e pequeno, de capa rosa e marcado com uma flor seca no meio das páginas. Era um diário de mulher. A página marcada continha as últimas anotações. A história daquele último dia era terrível.
Ela era a mulher do coveiro sem cova. Ela maquiava os mortos para que eles parecessem bonitos nos velórios, e o marido os enterrava para que ninguém visse como ficavam feios depois que não lhes damos mais atenção. Os dois tinham sido feridos pelos mortos tentando voltar para casa, mas conseguiram se desvencilhar. Voltavam para casa em busca da bebê. Quando chegaram ela estava sozinha. A babá devia ter fugido, ou ido procurar os próprios familiares. Feridos eles já sabiam o que lhes aconteceria em breve. Perguntou para o marido se havia alguma forma de escapar daquele destino, nem tanto por eles, mas pela filha. O marido disse que a única forma de escapar de uma morte horrível era por uma morte mais digna. Decidiram que a filhinha não morreria pela mão dos mortos. Era melhor uma morte tranqüila, dormindo, junto da família. Enterraram o bebê junto ao túmulo dos avós, para que, dormindo morresse e em um sono tranqüilo. O marido disse que precisava ir fazer alguma coisa. Ela compreendeu e sabia e ele não retornaria. Tinham feito amor pela última vez entre as lápides e ele se fora. As últimas palavras foram “uma morte mais digna”.
A moça da saia rodada fechou o diário. Olhou a maquiagem, os comprimidos no chão, lembrou-se do chão da cozinha... “Não adiantou”, pensou. E completou em voz alta “você precisa destruir o cérebro”. Ia fechar a caixa de cosméticos e viu uma última vez o diário. Pensou que também gostaria de, ao morrer, ser enterrada ao lado dos avós. Morrer de uma morte tranqüila, enquanto dormia. E foi como se uma luz se acendesse. Se a bebê ia morrer enquanto dormia, ela estava viva quando foi enterrada. E ainda poderia estar. Ela subiu as escadas correndo, passou voando pela cozinha e contou ao velho o que descobrira. Saíram em busca das lápides que tinha o mesmo sobrenome que estava no verso da capa do diário. Ao lado da lápide havia um pequeno monte de terra com uma pá, ainda suja, próxima. O velho pegou a ferramenta e começou a cavar. A cova era rasa e logo atingiu um objeto duro, que começou a chorar em protesto contra o impacto. Tiraram o resto da terra com as mãos e abriram o pequeno caixão. A criança chorava e só se calou nos braços da moça. Eles, que vieram salvar as suas vidas entre os mortos, não esperavam salvar a de outra pessoa. Do lado de fora dos muros, os mortos ainda perambulavam pelo mundo dos vivos. Do lado de dentro, ao menos por aquela noite, os vivos levariam a vida no mundo dos mortos.

Corpos

Félix B. Rosumek
26/06/06

Com a arma pendendo debilmente entre os dedos, ele cambaleava pela devastação, onde a morte fizera sua mais insana orgia. Corpos se espalhavam até onde a vista alcançava, cobrindo a grama, escondendo o solo, imersos em um oceano de vinho humano. Um manto de cadáveres cobria colinas e planícies, rochas e ravinas. Fumaça se erguia de onde carne fora queimada. Silêncio absoluto.

Ele era a única coisa viva ou morta que no campo se movia. Nem homens, nem abutres, nem ventos. Só ele e os corpos. Corpos por todos os lados, mutilados de todas as formas, sangrando por todos os meios. Crânios deformados. Ventres abertos. Troncos esmagados. Membros decepados. Contusões. Cortes. Perfurações. Mortes.

Ele tropeçava entre pedaços daqueles que um dia já respiraram, amaram e lutaram. Lutaram por aquilo que acreditavam, ou por aquilo que os obrigaram a acreditar. Lutaram sem parar, lutaram sem pensar. Lutaram e mataram. Lutaram e caíram. Lutaram e morreram. Amigos. Inimigos. Desconhecidos. Corpos.

Sob nuvens vermelhas de um dia agonizante, sobre mares rubros de uma terra embriagada por sangue, ele caminhou. Banhado em carmim, transbordando em almas ceifadas. Vazio. Morto, vivo, ou qualquer coisa entre os dois. Caminhou sem rumo, para destino algum, para onde os corpos se espalhavam. Para onde os corpos se confundiam ao longe. Para onde os corpos jamais findavam. Infinitos corpos caídos, e apenas um ainda se arrastando para o horizonte.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Novo tema da rodada:

Rodrigo envia o tema desta nova rodada: "Zumbi".

Lembramos que os participantes têm até o dia 26 para postar seus textos, e a votação seguirá até dia 29 (este mês não tem 30 dias).

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Uma nova mudança nas regras: a partir desta rodada, os leitores do Duelo de Escritores têm mais voz!
A partir de agora, dois votos de leitores equivalem a um voto de duelista. Assim, se um texto tiver um voto de duelista mais dois de leitores, ele terá 2 votos totais.

Leiam, votem, escrevam!

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Votação

Aberta a votação para o tema CARTEADO.

Aqui todo mundo tem direito a voto.

Participe! Deixe seu comentário indicando o texto que mais gostou até o dia 20/fev/2008.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

O observador

Thiago Floriano
16/fev/2008

Era difícil descrever a cena, mas ela acontecia todo dia. Ele chegava, vestia-se com o uniforme do cassino. Aqueles seres abonados o irritavam só por existir. Pessoas com o dom de mentir, simular, fingir, ignorar e esnobar. Ele os detestava. Ele os abominava. Ele os admirava. Uma relação dicotômica e antagônica, de certa forma. O jeito como olhavam para ele já era o suficiente para fazê-lo perder a cabeça, mas não podia. Ele era empregado e estava lá para comandar o jogo, não para dar palpite.

Analisava cada um dos jogadores, mas só gostava dos vencedores. E ele sempre sabia quem seria o vencedor mesmo antes de finda a partida. Eram pilhas de ficha que ele movia de um lado a outro. E ele tinha certeza de quem sairia com elas no final. E ele tinha certeza que, a maioria desses vencedores voltaria no dia seguinte e no próximo, e no próximo. Ele acompanhava a vida noturna dessas pessoas. Analisava o comportamento de cada um, e era diferente todos os dias. A partir do momento que passavam pela porta com seus chapéus e bengalas, ou mesmo suas valises carregadas de grandes notas, se transformavam em personagens.

O que “os grandes” - como ele costumava denominar – não sabiam era que ele os analisava durante o dia também. E, talvez por isso, sabia exatamente porque eles eram vencedores e como eles se tornavam “os grandes”. Eles eram personagens também durante o dia. Personagens muito menos previsíveis do que à mesa do cassino, mas mesmo assim seguiam algum roteiro.

Ele os seguia com câmera em punho e a teleobjetiva era sua paixão. Podia fotografá-los e estudá-los minuciosamente, sem dar pistas. Não precisava nem sequer chegar perto quando fora do cassino. A proximidade na hora do jogo era suficiente para conhecer os cheiros e as vozes dos seus tão odiados ídolos. Definitivamente, ele não gostava de jogadores. No começo, aprendia a arte da dissimulação para não deixar transparecer seu ódio por aqueles que lhe garantiam o emprego, mas depois tornou-se obsessivo.

Não podia fazer nada contra “os grandes”, pois eram seus tutores, mesmo sem saber. Mas os perdedores. Ah! Os perdedores! Losers! Sofredores! Viciados! Desgraçados! Não aprendiam, mesmo depois de anos perdendo dinheiro naquelas mesas. Ele cansara de ver aquelas pessoas. Pessoas que esnobavam sem mérito. Os perdedores, que o aviltavam muito mais intensamente do que “os grandes”.

Decidira estudar os perdedores também, e começou a chamá-los de “os tristes”. É muito mais fácil estudar um grupo quando se dá um nome. Seguia-os à noite, após o expediente. Sentia-se preparado, não precisava mais aprender muito com “os grandes”, agora era hora de criar um estilo próprio. Era hora de criar seu próprio personagem.

Decidira, então, comprar um baralho. Era o primeiro passo para iniciar sua nova vida. Carregava-o consigo sempre até começar a usá-lo. A primeira vez foi um pouco difícil, mas ele estava preparado, definitivamente. Pegou seu carro após o expediente e seguiu um jovem “filhinho de papai”, que perdera todo seu dinheiro no cassino àquela noite. Não era difícil seguir uma caminhonete imponente como a que o jovem dirigia, então, foi um trabalho fácil. Esperou que as luzes da casa se apagassem e entrou. Não deixou nem que o “triste” acordasse, simplesmente atirou, colocando um Valete de Ouros em sua boca.

Saiu sem deixar rastros e trabalhou normalmente no dia seguinte. Sentia que agora estava completo, tinha seu próprio personagem, um estilo, uma vingança e um objetivo. Após algumas noites de observação, uma madame fora encontrada com uma Dama de Copas dentro da boca e uma marca de projétil no centro da testa. Como testemunha, apenas um pequeno poodle com os pêlos tingidos de cor-de-rosa.

Um senhor de cerca de cinqüenta anos era a próxima vítima. O assassinato com a pista do Rei de Espadas intrigava a polícia, mas ele percebera que estava com o foco errado. Aquelas pessoas não eram reis, damas e valetes, eram apenas perdedores, que não mereciam sua atenção. Parou de atirar para analisar os jogos durante mais alguns meses, procurando o verdadeiro Ás que ele queria se tornar. Ninguém poderia ser um Ás enquanto ele fosse crupiê naquele cassino.

Fingidores anônimos - ou não

Marina Melz
16/02/2008

Não era lá um ambiente muito agradável, mas jamais esperei o contrário. Mulheres semi-nuas, cigarros, pilhas de fichas. Era um cassino como eu imaginara e como via todos os domingos num canal de TV a cabo, quando assistia o campeonato internacional de poker. Demorara muito até que resolvi ir até lá. Sorte e azar se contrapunham na minha vida de forma espetacularmente estranha, e poderia ser da mesma forma agora, numa mesa de jogo.

Eu era prostituta, mas odiava aquilo. Ao mesmo tempo em que adorava. Viciara-me em fingir orgasmos, mesmo sabendo que tinha a possibilidade de tê-los, já que essa não era lá minha maior dificuldade. Queria ser atriz, por isso resolvi treinar nas mesas de jogo e nas camas de motel.

Mas, voltando ao cassino. Queria arriscar-me. Descobri que para entrar numa mesa de jogo precisava se inscrever com um dos caras vestidos de pingüim. Ri ao imaginar um daqueles na cama – criei o hábito de pensar em todos nus quando via homens em geral.

Depois de dois copos de uísque com gelo, sentou-me. Encarei bem os homens a sua volta. Dei um piscada discreta pra um deles e me concentrei nas cartas.

Primeira dupla: um ás e um rei de espadas. Paguei o big blind e permaneci na mesa apenas com mais dois competidores. Jamais esquecerei aquela dupla. Primeiras três cartas viradas. Um ás e um rei de copas. Respirei fundo, fiz cara de quem comeu e não gostou. Ensaiei uma desistência. Ah, garota fingida, é foda. Paguei. Todos a minha volta pagaram imediatamente. Quarta carta, um dois de espadas. Ninguém reviu suas apostas. Quinta carta, mais um rei, desta vez de ouros. Acumulei 190 reais para a noite.

Única mulher em todo aquele salão, já bebido algumas doses. Estava me sentido a mais ganhadora pessoa do mundo. E, de fato, naquele momento eu era. A partir deste dia, todas as quintas-feiras saio de lá com um valor com pelo menos quatro dígitos.

Fiquei milionária. Mas ainda gosto de fazer programas. E ainda quero ser atriz. Descobri que o vício da minha vida não eram homens em fichas. Era ganhar dinheiro fingindo. E dele eu realmente não quero me livrar.

“Só por hoje eu quero ganhar dinheiro nas costas dos outros. Só por hoje quero fazer cara de coitadinha. Só por hoje quero me sentir a melhor cara de pau da história”.

Todos aplaudiram, encerraram a sessão e foram para a mesa de jogo.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Small Blind, Big Blind.

De rei a bufão, o que somos se não um grande baralho num jogo de azar? Uma pilha de cartas embaralhadas. Unem-se em jogos, pares, trincas, seqüências, até que venha alguém a cortar o maço e reembaralhar as cartas. Da ordem ao caos. Dos agrupamentos lógicos, matemáticos, à aproximação aleatória de dígitos e naipes. Algumas cartas marcadas pelo uso excessivo ou apenas pela decisão despudorada de algum jogador atrás de alguma vantagem ilícita. Outras, na manga, esperam até que ninguém esteja olhando para se porem em jogo, na esperança de que a surpresa, e a intromissão despercebida, angariem algumas fichas a mais. Cartas rasas, chatas e leves, mas, que empilhadas umas sobre as outras, se tornam em uma única grande pilha, mais profunda, mais encorpada, mas igualmente chata. Uma mistura de naipes pretos e vermelhos que, mesmo dentre as mesmas cores, denunciam naipes tão distintos. Os corações ao lado dos diamantes de ouros. As espadas delgadas contra a rusticidade de paus. Armas, ouros e emoções, embaralhados juntos, num mesmo maço, desordenados.

Vez por outra uma luz abre-se às cartas. Alguém que tira o baralho da gaveta e tenta pôr alguma ordem ao maço, reorganizando as cartas em jogos mais ordenados. Primeiro os ases, depois os dois, em seguida os três, até que o jogo esteja feito. E por um breve momento, às vezes pelo intervalo de algumas horas, alguma ordem se encontra entre aquelas lâminas de papel com símbolos e números sem nome e, na maior parte, sem rosto. Àqueles a que é concedido o luxo de ter uma face, têm-nas duas. Uma voltada para cada lado. Se uma está de pé, outra está virada para baixo. Se uma olha para a direita, a outra dá às costas olhando à esquerda. E assim, no final, o baralho torna a ser embaralhado e os números, agora desgarrados uns dos outros, tornam à escuridão da gaveta, desordenados, cegos e embaralhados.

Neste mundo de papel plastificado, em que se ganham e se perdem fichas à custa de números e apostas, vence a maior pilha de fichas, o jogador mais agressivo, como se a pilha colorida fosse um arranha-céus, a torre de marfim multicor donde, do alto, governa-se a mesa. A torre, por mais colorida que seja a quem a vê de cima, mostrasse apenas uma sombra negra para aqueles que estão sob o seu vulto. E quanto mais alta a torre, mais longe a sombra alcança. Do alto, o colorido da toalha mostra todos os naipes sobre o campo verde. Para quem está sob a sombra da pilha de fichas, todos os naipes são negros e todos os números indistintos.

Ao redor da torre, todas as cartas prestam reverência. Reis, damas, setes, dois, cartas de todos os naipes. Cartas de um baralho em que poucos têm a figura identificada. Uns poucos reis com um punhado de damas, uns pares de valetes em vestes suntuosas. Os demais são apenas números. Números em um pedaço de papel. Todos embaralhados. A nós, resta sermos coringas: fazendo por vezes papéis de reis, de damas, de dois ou de ases. Ora de copas, ora de espadas. Mas a figura estampada na carta será sempre a do bufão.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O grande torneio

Félix B. Rosumek

14/02/08


Naquele salão, todos jogavam. Era um longo torneio, onde os melhores jogadores seguiam adiante. Os outros saíam, frustrados, para embebedar-se e jogar-se nos bancos, lamuriando sobre as glórias de conquistas passadas. Além dos gemidos e brados embriagados, alguns ainda guardavam algumas parcas fichas e jogavam duelos paralelos, na esperança de um dia conseguir voltar ao jogo principal.

Alheios aos lamentos, os jogadores da mesa do centro estavam concentrados nos movimentos dos oponentes. O primeiro era um ancião de longas barbas e olhar severo. Ao seu lado, um jogador mais jovem, cujos traços fisionômicos revelavam a relação com o ancião, seu velho pai. Do outro lado da mesa, uma exótica figura de barba curta e turbante. Embora os trajes o diferenciassem e fosse o mais jovem, um observador atento logo enxergaria os traços de semelhança com os outros dois. A tensão entre os três jogadores era evidente: laços de parentesco e jogos arriscados não combinam. Alheio a tudo isso, a mesa era completada por um pequeno e franzino jogador, cujas rugas profundas no rosto imberbe atestavam sua incrível idade.

A rodada estava tensa: após a desistência de dois jogadores, o ancião encarava seu oponente. Este havia começado a rodada inocentemente, apostando baixo, para agora bradar com as fichas que sua mão escondia um jogo de peso. O ancião, com uma razoável trinca de ases na mão, via sua vitória fácil se transformar em uma arriscada contenda contra o mais jovem. Tentava ler o seu olhar, mas os olhos que despontavam por baixo do turbante nada lhe revelavam, além de uma intencional zombetearia. Por fim, o velho resolveu igualar a aposta. Baixou seus três ases. O outro fez uma expressão duvidosa. Baixou uma trinca de setes. O pequeno momento de alegria do ancião só durou até o homem de turbante baixar, com um amplo sorriso, seu par de valetes, espadas e ouros. Puxou a grande pilha de apostas para si, uma vitória pelo qual há tempos ansiava.

Uma nova rodada se iniciou. Logo, as apostas começaram a subir. O primeiro a sair foi o homenzinho. Olhando para sua pequena pilha de apostas e sua mão nada promissora, coçou o pequeno pingente na testa e resolveu desistir diante das altas apostas do homem de turbante. O ancião foi o próximo, ainda abalado pela arrasadora derrota. No momento em que ele jogou suas cartas na mesa, os jogadores restantes se encararam. Não havia espaço para sorrisos ou truques ali. As faces eram pétreas. Apenas os olhos faiscavam, cada um tentando fulminar o oponente. Sem desviar o olhar, o filho do ancião aumentou a aposta. O outro nem se preocupou em olhar quanto. Empurrou toda sua imensa pilha de apostas para o centro da mesa. "Tudo ou nada", bradou. O ancião e o homenzinho gemeram.

O rapaz titubeou. Parou. Pensou. Quase arremessou as cartas na mesa. Mas por fim, suspirou profundamente e com raiva. E aceitou a aposta. A pilha no centro da mesa dobrou de tamanho. Para um deles, a partida acabaria ali.

O homem de turbante exibiu duas de suas cartas: os mesmos dois valetes que haviam lhe dado a vitória anterior, espadas e ouros. O outro entrou no jogo e mostrou duas de suas cartas, nada mais que um dez e um nove de paus. A expressão do homem de turbante suavizou quando baixou convicto mais uma carta: o valete de copas. O outro mostrou a dama de paus. O homem de turbante tentou se mostrar feliz com seu jogo, mas não havia mais em sua mão: um ás e um oito. O filho do ancião baixou mais uma carta. "Eis o valete que faltava", falou.

E com calma, suavidade e o mais cruel dos sorrisos no rosto, empurrou o rei de paus para o centro da mesa...


Na Terra, a tensão entre israelitas e palestinos chegou a níveis insuportáveis. Com o massacre palestino que adveio, os iranianos se uniram à Síria e Jordânia para arrasar Israel. Aproveitando o caos político, o Paquistão atacou pesadamente a Casimira, e após uma vitória sangrenta, assinou um tratado de paz com a Índia, que se retirou do conflito. O governo americano não hesitou em intervir, enxergando ali a possibilidade de uma intervenção definitiva no Oriente Médio. A provocação foi mais do que suficiente: comandada pelos aiatolás do Irã, a coalizão declarou guerra santa, recebendo adesões de fanáticos por todos os lados. Os Estados Unidos declararam guerra e finalmente movimentaram todo seu imenso poderio militar, incitados pelo discurso de Deus e liberdade do seu presidente. Numa desesperada última tentativa, os iranianos ameaçaram usar seu arsenal nuclear que, sim, diziam, eles sempre mantiveram, mas estava bem escondido. Sem dar ouvidos a ameaças ou à ONU, os Estados Unidos completaram a devastação e ocuparam todos os territórios conquistados. O resto do mundo saía da inércia e tentava pensar no que fazer, enquanto as tensões ocultas estouravam, as forças se desequilibravam e a remanescente massa islâmica se voltava contra o mundo cristão. Era o crepúsculo da Era da Democracia, e um novo rei ascendia no mundo dos homens.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Rei de Copas

Fábio Ricardo
11/02/08

Trancou o ar por um milésimo de segundo e logo retomou a respiração normal. Olhou disfarçadamente para o rosto do garoto sentado à sua frente, sem saber se ele tinha notado a breve pausa. Poderia colocar tudo a perder se demonstrasse um pingo de nervosismo. Os óculos escuros escondiam os olhos por trás da lente, a face congelada impedia a identificação de qualquer emoção, da forma que ele havia treinado durante toda a vida.

Pegou a pilha de fichas azuis e mexeu-as rapidamente, dando a impressão de que contava a quantia. Mas ele já sabia exatamente quantas fichas estavam na pilha, apenas utilizava o tempo para tentar descobrir o que o garoto tinha nas mãos. O rapaz era jovem, loiro e parecia o típico garoto mimado. Como podia não demonstrar qualquer tipo de sentimento? Ele olhava as cartas tão rápido que mal poderia saber o número presente em cada uma. Agora fitava suas próprias fichas, com um sorriso no rosto.

Estaria ele blefando? As três cartas viradas na mesa davam diversas possibilidades diferentes de jogo. Se virasse mais um Rei, ele teria certeza de seu jogo, mas não sabia o que poderia acontecer se o adversário tivesse um Ás na mão. Pediu mesa.

O garoto bateu o punho fechado na mesa tão rápido que nem parecia estar prestando atenção nas cartas. O dealer virou a nova carta: o valete de paus.

Aquele era o momento, tinha que arriscar. Sorriu maliciosamente e empurrou a pilha de fichas que estava na sua frente. A voz quase não saiu de sua boca quando pronunciou as duas palavras: all in.

O rapaz simplesmente virou suas cartas em cima da mesa. Não respondeu nada, nem sequer tocou em suas fichas. Apenas virou as suas cartas e sorriu.

Ele ficou olhando a mesa sem reação. Tinha feito tudo certo, tinha o maior valor, apostou com firmeza e não sabia como o garoto tinha ido nesta jogada. Virou suas cartas na mesa e viu a dupla de valetes do jovem, combinando com o terceiro valete virado sobre a mesa. Como ele poderia não ter demonstrado nenhuma mudança facial, nem um breve sorriso ou uma respiração um pouco aliviada?

Levantou-se e ficou apoiado na mesa. O apresentador falava sem parar, mas nenhum som chegava aos seus ouvidos. A testa estava molhada, uma gota de suor escorreu por sua têmpora quando o dealer tocou o dedo indicador na carta que seria virada. Fechou os olhos.

Ouviu uma explosão de sons e teve medo de abrir os olhos. Um tapa forte atingiu seu ombro. Abriu os olhos desorientado, encolhendo o pescoço. A platéia explodia em gritos e uma chuva de plástico prateado picado caía dos céus. Assustado, via tudo em câmera lenta.

Um calafrio atravessou sua espinha arrepiando cada pêlo de seu corpo quando viu o Rei de Copas virado sobre a mesa. O rapaz em sua frente pela primeira vez tinha seu rosto tomado pela raiva, com os olhos cheios de lágrimas. Pessoas começavam a saltar sobre o vencedor. Era a maior vitória de todos os tempos. Os matemáticos informavam que ele tinha apenas 8% de chance de vitória. Apenas aquele Rei. Aquele Rei que ficava tão belo ao lado dos dois Reis que trazia na mão. Aquele Rei que acabara de transformar ele próprio em um deles.

tema da rodada

Dando início à 10ª rodada...

O tema é: CARTEADO

E os textos devem ser postados até dia 16/fev/2008.

Recado para o público: participem... comentem os textos, votem e dêem sugestões para melhorar o duelo!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Votação

Está aberta a votação do tema 7 pecados.

Participem até o dia 10/02.

A aposta

Fábio Ricardo de Oliveira
07/02/08 (desculpem o atraso...)

Danielle perdeu a aposta com as amigas. Ela já estava em sua quarta tequila, em plena despedida de solteira, e não conseguiu sorver toda a bebida sem tossir ou fazer cara feia. O castigo? Realizar em uma só noite os sete pecados capitais.

Resolveu começar pelo mais aprazível no momento. Como já estava com fome, ligou para o disk-lanches e pediu um sanduíche tamanho extra, com bacon, calabresa e tudo o que tinha direito. O motoboy trouxe o lanche e ela comeu de pé, na frente da balada. Mesmo morrendo de vergonha entre risos e comentários maldosos dos que assistiam a cena, Danielle lambeu os dedos e avisou as meninas, ao entrar novamente na danceteria: "um já foi".

As meninas riram e se jogaram nos sofás do reservado, esperando o próximo pecado. Uma delas adiantou a decisão, convidando as garotas até a pista.
- Isso, vamos dançar! - comemorou Danielle.
- Você não, senhorita. Esqueceu que a preguiça é um dos pecados? - retrucou a amiga.

Danielle ficou sentada sozinha e viu a preguiça se transformar em inveja, enquanto as meninas já dançavam a terceira música no meio da pista. Ela queria terminar logo com aquilo. Foi até o balcão e pediu uma bebida por conta da casa. O garçom achou graça e disse que não poderia servi-la sem pagamento. Apostando alto na avareza, ela insistiu, falou que era sua despedida de solteira e que merecia sim, um último agrado. O garçom concordou, mas falou que não poderia fazer nada. Danielle decidiu que teria que apelar para outro pecado.

Apoiou-se sobre o balcão, comprimindo os seios entre os braços, forçando-os através do decote. Insinuou-se lascivamente e garantiu ao barman que ele não se arrependeria por entregar-lhe a bebida. Ele trouxe uma dose de uísque com energético e, assim que ela virou o copo, disse que sentira uma vontade repentina de ir ao banheiro feminino. Ela entendeu o recado e o seguiu, trancando a porta atrás de si.

Transaram em cima da pia, de frente para o espelho, enquanto ouviam as batidas incessantes na porta. Danielle saiu descabelada e arrumando o vestido, e encontrou suas amigas já sentadas esperando por ela. Não resistiu e com o orgulho inchado, contou a todas a fantasia que acabara de realizar.

O tom da conversa mudou, e cada uma das garotas passou a detalhar minuciosamente suas fantasias já realizadas. Uma das amigas desabafou: seu sonho era transar com um homem comprometido. Entre as risadas que o comentário gerou, outra amiga, já mais avançada na bebida, disse que para ela isso não era problema, e citou as histórias diversas de aventuras sexuais com homens comprometidos. Danielle sentiu a fisgada maligna do sétimo pecado ao ouvir o nome de seu noivo, e descobriu que nunca mais viria a se curar da ressaca que começaria na manhã seguinte.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Segunda feira

Félix B. Rosumek

06/02/07

Ele acordou um pouco antes do despertador tocar. Gostava de não precisar levantar como um soldado sob os berros do aparelho, podendo rolar ainda alguns minutos pela cama. Melhor ainda nos dias em que estava bem acompanhado. Despertou-a calmamente e ambos sorriram quando os olhos se encontraram. Um longo beijo e uma lenta espreguiçada bastou para estar disposto a sair da cama. Ela foi ao banheiro enquanto ele se vestia diante do espelho. Quando ela voltou para o quarto, assobiou e perguntou qual a colega de trabalho ele estava querendo conquistar com todo aquele charme. Ele fingiu uma expressão de segredo e sorriu. Tomaram um rápido café e cada um foi para seu carro, combinando de se ligar nas próximas semanas.

Trânsito, barulho, multidões, loucura. O de sempre no caminho da labuta. As boas lembranças do fim de semana rapidamente ficavam para o passado a cada buzinaço e cantar de pneus. Pior era ter que encarar os malabaristas e suas firulas em cada semáforo. Não seria tão ruim se eles não fossem tão insistentes nos pedidos de dinheiro, assim como os meninos vendedores de chicletes e pedintes. Sem paciência para aquilo numa segunda feira, fechou a janela, preferindo o calor à incomodação. Sorte do carro ao lado, com vidros escurecidos e ar condicionado a toda. Mas deixe estar, no final do mês ele também esperava ser um destes afortunados.

Chegando ao trabalho, o humor suavizou novamente. O trânsito era o pior, agora ao menos a mente ficava ocupada com coisas produtivas. Lá se foram as horas passando como as de qualquer segunda feira. A única novidade foi o diretor anunciando a promoção de um dedicado funcionário. Como todos, ele aplaudiu e sorriu, mas olhou de soslaio. Afinal, aquela vaga poderia ter sido de qualquer um ali. Paciência, outras oportunidades surgiriam. Bastava continuar se empenhando para isso.

Fim do expediente, alguns colegas se reuniram na saída da empresa. Já era tradicional o encontro nas segundas feiras, para tornar menos dolorosa a transição do domingo para a longa jornada de cinco dias úteis. Ele sugeriu se não poderiam trocar a costumeira churrascaria por uma pizzaria rodízio muito boa, com promoção às segundas. Todos concordaram, e ele ficou alguns trocados mais próximo de seu ar condicionado. Colegas e amigos, comeram, riram, tomaram algumas cervejas e saíram estufados. Ele rumou para casa, tomou um banho e foi deitar-se. Tinha sido uma boa segunda feira. Conseguiu dormir rapidamente, pois sentia-se bem. Sentia-se feliz. Afinal, tinha sido mesmo uma ótima conversa com aquela colega do trabalho...

* * *

Contemplando tudo, os demônios entreolharam-se e sorriram.

- Este já é nosso.

Os arcanjos estavam desanimados.

- Sim, Lúcifer, provavelmente - respondeu Miguel.

- Isso vai deixá-lo feliz - comentou Leviatã - Afinal, se encontrará com todos os seus amigos lá.

- Sim, todos. Até sua parceira ocasional. Quanto a deixá-lo feliz...

- Eu apostaria que sim, Rafael! - replicou Mammon.

O líder Gabriel não se conformava.

- Mais um, como pode?! E ele parecia tão promissor!

- Calma, Gabi, não se irrite - disse Satã, sarcástico.

- Onde estarão os puros deste mundo de Deus?!

- Talvez suas virtudes estejam realmente fora de moda... - sugeriu Asmodeus.

- Ou - complementou Belphegor - este mundo não seja mais tanto assim de Deus...

Observaram o sono do mortal por mais alguns instantes. Os demônios trocaram algumas palavras e se retiraram para o portal que se abria.

- Bem, quem sabe - Belzebu virou-se, antes de entrar - eles apenas não gostem de tocar harpa!

Os arcanjos permaneceram em silêncio. Um a um, deram as costas e, lentamente, desvaneceram no ar.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

PECADO EM CENA

Thiago Floriano
05/fev/2008

Personagens do drama

RENATO

FABIANA: esposa de Renato

GILBERTO: chefe de Renato

ALBERTINA: mãe de Renato

GERALDO: pai de Renato

LADRÃO

CENA I
Uma rua qualquer
Entra Renato caminhando. E o ladrão em sua direção.

RENATO – Alto. Quem vem lá?

LADRÃO – Isto é um assalto. Passes todo teu dinheiro ou sabes bem o que virá!

RENATO – Mas sou homem de bem. Todo troco que possuo, levo para sustento próprio ou de outrem.

(O ladrão bate com o cabo da pistola na cabeça de Renato, que cai imediatamente).

[coro]
Pecado! Pecado! Óh, pobre e ensanguentado!

CENA II
Casa de Renato
Entram Renato e Fabiana

FABIANA – Como perdestes nosso precioso dinheiro?

RENATO – Por ladrão fui abordado. Além de um corte na cabeça, foi-se o bolso por inteiro.

FABIANA – Não passas de um belo covarde. Reação não tivesses e nem por socorro fizestes alarde.

[coro]
Pecado! Pecado! Agora triste e magoado!

CENA III
Outra rua qualquer
Entra Renato sozinho

(Ecoa o som de um acidente automotivo)

RENATO – Pai do céu, que infortúnio. Ao trabalho devo seguir, mas perco rua e paciência. Se sigo correndo, me esvaio em suor. Se espero, atraso o turno.

[coro]
Pecado! Pecado! No emprego atrasado!

CENA IV
Escritório
Entram Renato e Gilberto

GILBERTO – Ora, ora! A que devemos tal demora?

RENATO – Desculpas peço pelo atraso, pois contratempos me mantinham porta a fora.

GILBERTO – Se para falar não perdes tempo, tampouco deverias perdê-lo para o emprego. Tires logo a preguiça do corpo e trates de valer teu provento!

[coro]
Pecado! Pecado! Incompreendido e maltratado!

CENA V
Casa dos pais
Entram Renato e Albertina

RENATO – Acabo de contar-te de minha má sorte. Não compadeceis de meu sofrimento?

ALBERTINA – Não percebes o quão maçante é escutar o teu lamento!

(entra Geraldo)

GERALDO – Que estais a aborrecer tua mãe com teus fracassos e lamúrias? Vá te embora desta casa, ó, frágil e angustiado rebento.

[coro]
Pecado! Pecado! Pela família, renegado!

CENA VI
Casa de Pedro
Entram Renato e Pedro

PEDRO – Alto! Quem vem lá?

RENATO – É Renato, teu amigo. Prometo não tomar muito de teu tempo.

PEDRO – Entre logo e te acomodes. Digas logo o que te aflige. De onde vem teu desalento?

RENATO – Passo por má hora. Preciso de ti pequeno saldo. Na próxima lua, hei de devolver-te.

PEDRO – Como ousas mendigar assim a um amigo. Não me privo de minhas benesses para desfazer tuas mazelas. Agora tomes rumo, ou perdes tempo. E não me apraz discutir contigo.

[coro]
Pecado! Pecado! Pelo amigo, condenado!

CENA VII
Cemitério
Entra Renato sozinho

RENATO – Que fiz eu para merecer tanto penar? Assaltado, magoado, atrasado, maltratado, renegado e condenado. Por quê? Já me vejo em desatinos e considero fuga eterna. Se amanhã não me vereis, não adianta lamentares. Fiz o certo e fui julgado. Resta, talvez, morrer.

[coro]
Pecado! Pecado! Aqui jaz, morto e enterrado.

(fecha-se a cortina ao som de marcha fúnebre)

Os Sete Senhores

E ela escapara da madrasta para isso! Se soubesse teria deixado que o caçador tivesse lhe extraído o coração. Nem ela precisaria suportar tantos suplícios nem o gamo teria pagado pelos crimes que não cometera. Agora as alvas mãos não lembravam mais a maciez da neve. Os calos se assemelhavam mais à rocha da mina de onde os seus sete flagelos cavavam riquezas não partilhadas. A ela restava o trabalho e escravidão.
A um deles não saciavam os infinitos banquetes que tinha de preparar. Das iguarias mais exóticas tinha de descobrir as receitas, providenciar os ingredientes e garantir a fartura. Outro lhe impedia acesso até às migalhas. Não aceitava que lhe tomasse nada e nada dividia. Nem riquezas, nem sobras, nem atenção. Um terceiro lhe exigia mais e mais. Nada era suficiente, nenhuma quantia era o bastante. Atenção, cuidados, quaisquer q fossem os serviços, ele queria tudo, e queria mais. Outro nada fazia. Ela tinha-lhe q pegar as botas, trazer-lhe comida, vesti-lo e asseá-lo. Vivia exausta enquanto ele descansava. E não importa quão inferior se sentia, um outro a fazia sentir ainda pior. Exibia-lhe a opulência de suas vestes, recitava seus maiores feitos e evidenciava o contraste q os separavam. Assim, ela chegava à noite cansada de corpo e espírito. E ainda o corpo tinha de entregar aos vícios do sexto algoz, lascivo e insaciável. Com o corpo já exaurido tinha por fim o espírito flagelado pelo sétimo senhor, para quem, apesar de tudo, nada está bem feito, inflamando-lhe os humores. Não raro a violência das reprimendas tornava-se física, alquebrando o pouco que lhe restava do corpo e da dignidade.
E assim passava os seus dias, com a saia amarela em farrapos e os cabelos pretos desgrenhados, esperando que lhe aparecesse à porta uma velha vendedora de maçãs.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Sete

Marina Melz
02 de Fevereiro de 2008

O que mais me enoja é ela. Ela que surge em mim quando visto a mais sexy lingerie, o mais provocante vestido, a mais perfeita maquiagem e me olho no espelho. Sinto uma auto-suficiência que pode ser efêmera, mas é, de fato, emocionante. As sete letras do “eu me amo” soam como música. Ah, a vaidade.

O que mais me assusta é ela. Ela que surge quando você, que se contenta com um emprego qualquer, percebe que a sem-cérebro da sua turma ganha do triplo que você. Ela que volta quando você percebe que o seu cara está com a gostosa do corpo violão. As sete notas musicais soam como você queria roubar a vida dela pra você. A inveja é incontrolável.

O que mais me persegue é ela. É o que eu sinto com grande parte das pessoas – especialmente as humanas. É o ódio desde por quem rouba o meu país, passando por quem ousa me julgar, até quem me irrita (às vezes só por existir). Ah, se eu pudesse colocar sete palmos abaixo do solo esse tipo de gente. Ira? Apenas um leve desgosto por algumas pessoas.

O que mais me atinge é ela. Sagrada parceira de pós-refeições do final de semana, de sonecas repetitivas pela manhã. É ela quem faz pintar o sete com os pés, mas só se forem bem pro alto, com um travesseiro bem confortável e sem hora pra acordar. Preguiiiiiiiiiiça.

O que mais me irrita é ela. É a cegueira emocional e a cobiça material. Costumo suspeitar de grandes carros, grandes mansões, grandes poderes. Geralmente por trás deles há pequenas almas. Nem uma das sete artes suportaria tamanhos megalomaníacos materiais. Insuportável avareza.

O que mais me agrada é ela. Ela é quem me sacia minhas ânsias mais profundas, é ela quem me completa quando sinto um buraco – seja no estômago seja no peito. É ela quem me faz esquecer todos os suores, todos os integrais, todos os esforços. É ela quem me faz enxergar no final das sete cores do arco-íris um pote de brigadeiro. E viva a gula!

O que mais me choca é ela. É a completa perseguição aos prazeres carnais, sexuais. É o que atinge a todos, alguns com mais veemência que outros. É ela quem mostra a magia, o desejo e o prazer abaixo dos sete véus. Luxúria, meu bem!