quarta-feira, 27 de maio de 2009

Votação - Amor

O tema é amor e a votação está aberta até o dia 30 de maio, sábado. 

Vota, participe e escolha qual foi o melhor texto. 

terça-feira, 26 de maio de 2009

O Rei do Rock

A música era famosa no timbre de Sinatra, mas a voz inconfundível de Elvis se difundia pelo recinto. Ela, que sempre gostara daquela canção, ficava nítidamente abalada com a sonoridade da mais marcante das frases. “I did it myyyyy wayyyy”. “Antes de Elvis não havia nada”, disse certa vez um famoso compositor. Rei do rock pra cá. Rei do rock pra lá. Ela não suportava a dor de ouvir tamanha sandice por todos os cantos. Sequer lembravam do nome de uma única música daquele homem para o qual ela dedicou todos os anos de sua vida.

O bar estava praticamente cheio, mas ainda havia espaço para algumas pessoas em mesas distantes do palco. Não teve escolha, sentou-se em uma delas e pediu uma dose de gim. Não precisou nem esperar que a música acabasse para ouvir de todos os cantos. Rei do Rock. Elvis. Rock. Elvis. Rock. Todos só tinham ouvidos para ele. Nem mesmo o fato de ele estar cantando uma música de Frank Sinatra era suficiente para que toda aquela plateia deixasse de se deliciar com a voz e o estilo do topetudo Elvis.

Ela ouvia tudo, quieta. Não esboçava sequer um traço de desgosto no olhar, enquanto o garçom trazia sua bebida. A música ambiente foi diminuindo de volume até que um garoto moreno subiu no palco. Com os cabelos lambidos e roupa toda branca, anunciou a banda que se apresentaria com ele nos vocais.

- Hoje, vamos fazer um tributo ao Rei do Rock... Elvis Presley!!!!!! Vamos tocar algumas músicas de outros artistas, mas a noite é do Rei!

O público aplaudia efusivamente. Ela cerrava os olhos e pensava: Impossível! A banda começava as primeiras notas de Love me tender e o gim no pequeno copo sobre a mesa 57 já tinha sido completamente sorvido pela mulher que o pedira, minutos atrás.

- Amigo! Por favor, traga mais uma dose. E por que não pede para que toque algo de bom nessa geringonça?

O jovem garçom olhou assustado, mas atendeu prontamente o pedido da bebida. Imaginou que a mulher não gostasse de rock e não sabia o que oferecer a ela. O cardápio musical da noite era só rock.

- Aqui está seu gim, senhora. Hoje a noite é somente com rock. Peço mil desculpas se a senhora não aprecia, mas não podemos pedir para a banda tocar outro estilo musical hoje. Lamento muito.
Em algum momento pedi para mudar o estilo? Só quero que toquem música boa!

O rapaz não entendia mais nada. Como pode alguém querer bom rock e pedir para pararem de tocar Elvis? Aquele pedido era como uma heresia e ele esperava que não fosse repetido. Por sorte, não foi. Mas a vontade da cliente não havia sido atendida e, em poucos minutos, ela estava subindo no palco. Ao som de A little less convesation a banda tentou contê-la, mas não adiantou muito. Ela pegou o microfone e ordenou que parassem.

- Parem com essa porcaria!

Os olhos de todos a fitavam incrédulos.

- Vocês dizem que vão fazer um tributo ao Rei do Rock e tocam isso?

Alguns fãs de Elvis abriram um sorriso, imaginando que ela pediria músicas mais desconhecidas do ídolo.

- Desde quando Elvis é o Rei do Rock? Cadê meu Ch...

Nesse momento, as vaias já começavam a ser ouvidas fora do bar. Antes que ela terminasse sua fala, os seguranças do local a retiraram à força do palco, levando-a para sua mesa. A banda continuou seu Be-bop-a-Lulla e a paz voltou a reinar.

Verdadeiro amor

Ela amou incondicionalmente durante toda sua vida. Amou e se entregou, sem precisar pensar, apenas sentir. E sentia aquele amor preenchê-la em todos os momentos de seus dias. Não pedia nada em troca, não racionalizava e mensurava, pois o verdadeiro amor nada disso pede. Apenas amava, e sabia que também era amada. Não esperava por provas ou declarações. Ela sabia, e isso era o bastante.

Ela não saberia dizer quando havia começado. Era mais fácil admitir que não houvera um momento em especial. Desde o início ele estava lá. Mas, durante os tempos de tenra infância e deleite inconsciente, era mais uma companhia divertida, um companheiro ocasional como outro qualquer. Porém, o tempo passou, e ela não se deixou embarcar na inconsequente irresponsabilidade da adolescência. Quando todos começavam a olhar para os lados e enxergar algo mais nos antigos parceiros de brincadeiras, ele já estava sedimentado em seu coração. Ela seria apenas sua, de corpo e de alma, para toda a eternidade.

Bons momentos, maus momentos. Treva e luz, apogeu e decadência. Mas nunca frio. Nunca solidão. Em todos os momentos, calor, alento e apoio. Se ela estivesse sozinha, não sabia se suportaria as agruras que a vida lhe apresentava. Mas, amando, não tinha como perder a determinação. De nada importavam as privações. Não precisava pesar prós e contras, racionalizar o sentimento, porque o amor não era um meio: era o seu próprio fim. Se havia um mundo além daquele, ela o ignorava, e jamais se questionaria. Não precisava e não queria atravessar o cálido domo de suave proteção.

E assim foi sua vida. Com um sorriso de amor, do abrir ao fechar das cortinas. No crepúsculo de uma existência permeada pela emoção, a certeza de que aquele amor não se exauria com o tempo. Ficava apenas mais forte, e cada vez mais forte, conforme aumentava a necessidade por abrigo e ternura. Ter a certeza de que caminhava os últimos passos em sua presença, que ele estaria ao seu lado no leito e acompanharia seus derradeiros suspiros, era o que bastava para atingir o zênite em paz.

Não se pode dizer o que aconteceria se ela conhecesse a verdade. Talvez tenha tido um lampejo da traição em algum derradeiro segundo, quando soltava os últimos dedos dos penhascos da consciência, escorregando para o oceano de eterno oblívio. Rápido demais para ser interpretado ou permitir qualquer reação. No momento em que ela teria a chance de perceber que ele não estaria esperando-a do outro lado, sua mente não mais existia, e era tarde demais para se arrepender.

Ame, sofra, viva.

Tem gente que diz que só os relacionamentos doces valem a pena. Outros, que só se consegue sentir o amargo. Eu prefiro dizer que todos os relacionamentos valem a pena. Por mais doces ou amargos que eles sejam.

Não importam sofrimentos, de nada vale temer o futuro. O flutuar é agora. O desmontar com um sorriso, também. Temer o futuro pra quê? Se por mais que você se segure, você sabe que uma hora vai cair? Você pode cair logo nos primeiros dias, braços abertos e vento no rosto, ou pode se segurar, espernear e dizer que não quer se apaixonar. Mas uma hora você vai escorregar e cair do mesmo jeito. A única decisão é como você pretende apreciar a queda.

A queda sempre é queda. É você quem escolhe aproveitar os segundos de queda-livre ou tentar prever a dor. Amar sem medo ou sofrer por antecipação. Se for para sofrer, sofra. Você vai sofrer de qualquer jeito, esteja certo disso. Todo relacionamento traz sofrimentos consigo. Seja pelo medo de se entregar, seja por se entregar demais. Quem não sofre, não ama.

Quando o momento de sofrer chegar, você vai sorrir. Amarelo, tímido, infeliz. Mas se você realmente tiver vivido o momento de tirar os pés do chão, você vai sorrir.

Você pode passar anos sofrendo para no final ficar feliz. Ou você pode ficar feliz por anos, e no final sofrer. Tanto faz. É certo que você vai sofrer. E também é certo que você vai ser feliz. A felicidade precisa do sofrimento para existir, ou então você não saberia que ela é felicidade. Então aproveite e sofra. Afinal, você vai ser muito feliz.

Aproveite cada beijo como se fosse o último, sinta cada abraço como se fosse só o começo e sorria por um sorriso. Sinta o agridoce da vida oscilando na sua boca e no seu peito. Se você fizer isso, não importa o quanto foi amado, ou por quanto tempo. O que importa é que você se entregou, se apaixonou, flutuou. O que importa é que você se entregou. E não há sensação no mundo melhor do que a de se entregar a uma paixão.

Você sempre pode escolher entre fugir e se entregar. Não seja covarde. Se entregue a cada nova possibilidade. Fique cego, surdo. Voe, esqueça o chão. Perca o juízo, a fome, o sono. Perca a consciência. Se perca. Se perca pra se encontrar.

Se encontre.



(escrito em parceria com Marina Melz em março de 2009)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Certezas

Você acredita em amor?
Como é que é?
Acredita ou não acredita?
Por que a pergunta?
Não quer responder, é?
Tem certeza que quer ter essa conversa agora?
Por que não?
Não tá se divertindo?
O que uma coisa tem a ver com a outra?
A gente não pode simplesmente deixar as coisas seguirem o seu rumo?
E que rumo que elas estão seguindo?
Você não tá feliz?
Sabe o que falam da gente?
Desde quando você se importa com o que falam da gente?
Você não acha que a gente tá pronto pra um passo a mais?
Como assim?
Você não tem idéia mesmo?
Você quer dizer... casar?
Por que a surpresa? Você não pensa no futuro?
A gente não pode mesmo pensar no presente?
Isso te assusta muito, né?
E não é pra assustar?
Você me ama?
Desde quando uma coisa impede a outra?
Isso que dizer que sim ou que não?
E se for?
Qual dos dois?
Faz diferença?
Quando chegar a hora, você vai estar pronto pra escolher?
Entre os dois?
Quando tiver que escolher, o que vai ser? Vai encarar esse seu medo besta ou vai jogar fora tudo que a gente construiu?
O que a gente construiu?
Você nunca tem certeza de nada?
Você nunca fica na dúvida?
Quer saber do que eu duvido realmente?
Do que?
De que eu ainda ame você.

Clichê

Câmera em movimento. Das frestas de madeira da janela, alguns poucos raios de sol conseguem passar. Sem música com piano. Só se houve uma respiração tranqüila. A câmera passeia pelas roupas no chão. Chega à cama. Close nos quatro pés que estão juntos. No centro do colchão, pose clássica: ela deitada no peito dele, com a camisa amassada. Os primeiros botões estão abertos. Ela acorda e, com os olhos pequenos e inchados, olha pra ele com ternura. Acomoda-se e volta a dormir. Fecha.

Tela escura. 

- Parece que estou dentro de um livro teu.
- Inevitavelmente você será personagem.
- Todas são?
- Quase. 
- Como quase?
- Escolho.
- São muitas?
- Algumas.
- Escolhes como?
- As que são poesia.
- Sou poesia?
- Prosa.
- Como?
- Não sei, não se explica. Só é.
- Então não entro para o rol das heroínas. Não serei título.
- Não. Essas foram as paixões.
- Não foram amor?
- Não existe amor.
- Como não existe amor?
- Assim. Não existe. 
- E os livros? E as palavras?
- São paixão.
- E amor?  
- O amor é mentira mais sincera, de todas as mentiras que eu digo. 

Fecha. No escuro. Não aparece fim. Créditos. 

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Tema da rodada

Salve, amiguinhos e amiguinhas. Vamos a mais um temível tema feliciano.

Um desafio meta-literário baseado na forma? Nah...

Uma proposta ambientada em algum espaço oou tempo bizarro? Humm...

Uma palavra estranha, obscura, sinistra, desconhecida? Talvez...

"Tripas"? "Escatologia"? "Desmembramento"?...

Ok, o tema da rodada é:

Amor.

Divirtam-se e postam até dia 26.

domingo, 17 de maio de 2009

Votação

Votação aberta!

A partir de agora você pode votar no seu conto favorito de 10 mil caracteres. 

Até o dia 20 de maio a votação está aberta.

sábado, 16 de maio de 2009

Meu amigo

Antes de qualquer coisa, me dou o direito de não usar letra maiúscula, nem chamá-lo de senhor. Essa idolatria toda só te afasta das pessoas. Amigo é amigo. E eu espero que você seja um dos meus.
Já faz tempo que eu penso em te escrever. Não sei nem como entregar esses pedaços de papéis já amarelados. Tão romântico isso de ver a tinta rasgando as folhas que até tinha esquecido como era emocionante. Esses dias me disseram que podias me ler, ler meus pensamentos. Mas nada pode ser menos divino do que esta minha loucura. Talvez pensar nas frases facilite as coisas pra mim e pra você.
Claro: sou desses hipócritas que chegam ao final da vida e só então lembrar que você existe. Tenho pedidos, embora devesse só agradecer. Mas os humanos são assim mesmo, meu amigo: nunca se agradece pela companhia, pelo conselho, pela verdade: pede-se mais. Malditos insatisfeitos, todos nós.
Estou morrendo e o que fiz a minha vida inteira foi escrever. Não poderia me meter a fazer qualquer outra coisa para chamar a tua atenção. Minha juntas doem: como doem esses ossinhos. Se chocam e me provocam dores quase alucinantes. É quase como seu eu estivesse pagando pelo que fiz nessa vida. Vivendo o inferno no final de uma vida inteira no limbo.
Não sou sujeito que se preste. Acho que foi por isso que meus livros venderam tanto. Recebi cartas dizendo que eu escrevia com maestria. É bem simples: as pessoas liam meu livro e se sentiam boas. Elas só não sabiam que meus Pedros, minhas Helenas, meus Caios e minhas Paolas eram, na verdade, todos eu. Alguns jornalistas metidos a besta desconfiavam e queriam me fazer confessar. Ia ser o escândalo do ano. Eu preferia morrer no anonimato a admitir a minha completa falta de tato com a vida e com as pessoas.
Vou explicar. Lá pelos vinte e poucos, eu era um sujeito normal. E escrevia. Esse foi meu principal pecado. Eu sei, eu sei. Mas já que a vida inteira foi assim, não se há porque mudar agora. Pois bem: escrevi um livro pra vender. Uma editora me contratou, eu ganhei dinheiro. Eu ganhava dinheiro para escrever sobre a podridão do universo. Era perfeito. Eu tinha mulheres, cigarros, uísques. Já tinha vivido o lado bom da vida. Eu queria era ser famoso. E consegui.
No começo, ah, era um tesão – desculpe, mas não achei outro termo. Passava o dia entre filmes, livros, passeios ao sol. Bem rápido consegui uma casa. Tinha algumas amantes. Sempre fui bom com as mulheres. Cedo aprendi que uma mulher bem comida sempre volta. E eu mantinha alguns relacionamentos. Algumas até amigas. Era divertido. Amava todas elas, ao mesmo tempo que poderia viver sem nenhuma.
Eu sofria, apesar de tudo. Aí me apareceu Ceci. E eu cheguei ao fundo do poço. Mas nem vou me incomodar e te contar tudo em detalhes. Homem apaixonado fica burro e depois sofre. Qualquer um poderia escrever sobre isso. Foi meu auge profissional. As pessoas começaram a dizer que eu era genial porque escrevia sobre o sofrimento. Filhos-de-uma-mãe-velha. Eles não entendiam que eu sofria: e eu só conseguia escrever porque sofria e eles não podiam respeitar isso.
Aí passaram a me encontrar na rua e pedir autógrafos. E eu me perguntava porquê. Eles não sofrem? Passei a pedir autógrafos para eles também. Quem sobrevive a tristeza deve mesmo merecer a fama.
Até que não agüentei mais. Passei quase dois anos sem escrever. Todos me esqueceram. As mulheres, os fornecedores de uísque. Eu pude sofrer sozinho. Ah, eu senti a verdadeira felicidade. Sofrer sozinho. Sem escrever. Sem colocar em palavras os sentimentos se esvaem mais fácil. Aí a comida acabou. E eu tive que voltar.
Eu vendi a minha felicidade. Eu vendi as minhas verdades e me sentia na obrigação de mentir mais e melhor. Meus livros foram um sucesso.
Aí eu fui ficando velho. E achei uma mulher que me quisesse de verdade. Nunca esqueci Ceci – ou Amanda, ou Amélia, ou Cibele, nas páginas dos meus livros. Mas entendi que o amor, essa coisa besta que inventaram por aí, não leva a nada. Encontrei uma mulher que quisesse cuidar de mim. Que dançasse a mesma música, que agüentasse as minhas viagens para o lado de dentro, que nem eu mesmo conseguia entender. Jamais me atrevi a dizer que não a amo. E a amo. Mas amor não existe. Então, digo que a amo e ela sorri.
Tivemos um filho. E eu cheguei abaixo do fundo do posso. Colocar uma pessoa no mundo! Absurdo. Eu me senti uma criança inconseqüente, que colocou mais um sofredor nessa vida. Um brinquedinho pra ver se quando eu me visse multiplicado minha dor acabaria. E eu disse isso pra ela. Sou um perfeito imbecil. Nosso filho morreu, aos dois anos. Ela diz que não, mas eu sei que me culpa pela culpa.
Enquanto meus livros vendiam, eu tinha que responder a todo tipo de gente porque escrevia, como era meu processo de criação. Uma coisa ridícula demais. Escrevia porque sim. Criava porque sim. Não se pergunta essas coisas, malditos.
E assim foi minha vida inteira, que você deve ter visto em um canal alternativo, daqueles que ninguém vê. Uma merda de vida. Que agora está acabando.
Quando dizem pra gente que a vida acaba, passa tanta coisa aqui dentro que dá até medo do que vem. Eu sempre detestei essa minha vida, mas nunca quis que ela acabasse. Um masoquismo existencial. Parece que quanto mais se apanha, mas se quer viver pra apanhar mais. A vida, então, deve ser esse eterno tapa na cara.
Então eu resolvi pedir perdão. Perdão a você. E por conseqüência a todo mundo.
Perdão pelo quanto menti. Perdão as mulheres, aos leitores, aos críticos. Perdão àqueles que depositaram em mim qualquer tipo de fé.
Eu quis tanto ser Bukowski, que esqueci que pra amar a todas elas eu precisava amar a mim. Eu quis tanto ser Sartre, que esqueci que para teorizar a tristeza e a solidão eu precisava viver a alegria e a sociedade. Eu quis tanto ser os outros, que esqueci, meu amigo, quem eu era. E no final passei a vida inteira não sendo nada.
Também tenho que pedir perdão a Ceci, aquela mulher que disse que amei. Não cheguei a citar, mas só não fomos felizes por causa da maldita cruz da escrita. Ela me lançava um olhar bonito, e eu escrevia páginas inteiras. E ela se apavorou. Eu podia ter vivido o melhor amor do mundo. E acabei transformando a nossa vida num inferno.
Não sei onde ela anda, mas, meu amigo, transmite meu perdão a ela. Faz ela lembrar de mim só por um minuto com piedade. Ela era um anjo. Sei que me perdoaria.
Claro, na minha lista de perdões está com estrelinhas minha esposa. Ela que me amou tão incondicionalmente, e que recebeu em troca os meus medos todos. Ela me carregou nas costas. E quando as pessoas diziam que eu amava outra, que meus personagens não eram ela, ela respondia a um por um que não se importava: era ela quem estava comigo.
Que um dia ela, que não sabe que merece meus pedidos de perdão, consiga sentir meus apelos.
E o meu maior pedido de perdão é a meu filho, que morreu pela minha falta de amor ao mundo. Que ele saiba que eu o amei. E por isso não pude soltar uma lágrima quando ele foi embora desse absurdo todo.
Enfim, parceiro. Sou um fracasso. E o pior é que as pessoas me tratam como sucesso. Escrevo versos idiotas, invento verdades e todos acreditam.
Então, vou pedir. Meu amigo, parceiro, quase comparsa: me deixa morrer sozinho. Eu e meus personagens. Eu e minhas mentiras. Eu, que sempre fui mais verdade do que qualquer um conseguiria.

Sobre o tempo

Aos 74 anos, já não se tem muita pressa. Mário, ou vô Mário, como gostava tanto de ser chamado pelos netos e crianças que corriam descalças pelas redondezas, acordava todos os dias antes do sol nascer. Mas não porque o trabalho, os filhos ou a vida lhe exigiam. Simplesmente porque era assim que acontecia todos os dias. Seu corpo despertava sempre alguns minutos antes do dia amanhecer.

Os olhos se abriam lentos e, inconscientemente, procuravam por Helena ao seu lado na cama. Mas ela já não estava mais lá. Sentava-se dia após dia na mesma ponta da cama e dava um suspiro discreto, quanse imperceptível, enquanto procurava, tateando com os pés as pantufas azul-desbotadas que estavam o esperando embaixo do colchão manchado. Levantava e estalava as costas. Primeiro, alongando a coluna, cada vez para um lado, com a mão apoiando-se na cintura. Depois, com as mãos unidas na metade das costas, empurrava as costelas para frente. Sentia um prazer indescritível com a sensação relaxante do ato, mesmo sabendo que isso fazia mal para suas costas, já doloridas pelos anos que se passavam depressa. O médico já cansara de lhe dizer, mas mesmo assim, ele continuava insistindo. Depois, era a vez do pescoço. Com a mão por cima da cabeça, esticava com força até sentir o estalo alto. Só então acendia a luz.

Caminhava até o banheiro, que ficava na parte de fora da casa, obrigando-o a passar por um corredor de vento gelado que arrepiava os pelos que lhe cobriam a canela. Tirava a calça de moletom velho e a camiseta promocional de político ou supermercado que serviam de pijama, e ligava o chuveiro no quente. Escovava os dentes, nu, enquanto o banheiro se enchia de vapor. Escrevia sempre algo com o dedo indicador no espelho do banheiro, quando ele ficava embaçado pelo calor. Podia ser uma frase de alguma música que ouvia nos tempos de juventude e dos amores platônicos de colégio, algum lembrete de algo que não podia se esquecer de fazer durante aquele dia, ou simplesmente o nome de Helena.

Deixava a frase ali, para ser apagada pelo próprio vapor que fez com que ela pudesse ser escrita. Dia após dia, os nomes se sobrepondo, invisíveis e esquecidos. O banho era sempre da mesma forma. Quente, terrivelmente quente. A pele avermelhava-se com o contato da água escaldante, enquanto Mário deixava a cabeça baixa pender para frente, embaixo das gotas grossas que explodiam em contato com sua nuca.

O banho era demorado, muito demorado. A água lhe escorria por cada pedaço de pele, corria pelas articulações, pelos músculos frágeis e pelos cabelos grisalhos. Cobria e aquecia seu corpo nu. Um corpo feio, velho, magro e enrugado. Mário olhava para os dedos apáticos e uma lágrima salgada se misturava com as gotas que já lhe escorriam pela face. Lembrava-se das mãos fortes e calejadas que ergueram casas, consertaram carros, plantaram fumo, empunharam armas. Lembrava-se de escaladas, corridas, cavalgadas, pescarias. Do mar, do pôr do sol, das gaivotas, das pipas coloridas, do camargo matinal, bebido ainda dentro do rancho.

Se lembrava de toda uma vida que se passou. Vivida ou não, bem aproveitada ou não, se passou. Seu corpo já não tinha a mesma força, as pernas, destruídas pelo cigarro, já não conseguiam mais levá-lo tão rápido quanto gostaria. Os olhos estavam fracos, míopes e borrados. As costas estavam arquejadas, os ouvidos danificados. O rosto, abandonado. O pulmão, negro como seu futuro, já o alertava que não iria muito longe, em breve, simplesmente deixaria de funcionar. E vô Mário nunca iria poder esquiar, seu sonho de infância, de um garoto que nunca viu sequer a neve. E não veria seu neto caçula se formar. Nem poderia dançar no casamento da neta, a alegria maior de uma época tão bonita e que infelizmente já se foi.

Mário desligava o chuveiro lentamente, e se arrastava já cansado para fora do box. Secava-se e vestia-se ainda coberto pelo vapor que tomava o ambiente e enchia-lhe as narinas. Quando saía do banheiro, via o sol nascer. Sempre no mesmo horário. A claridade surgia por detrás das colinas que delimitavam o vale, jogando os raios amarelos, quase laranjas, para o alto. A luz forte atingia os olhos com força, quando a primeira parte do astro rei se mostrava visível. Mais ou menos nessa hora, é que Mário percebia que estava de pé, no frio do quintal de casa, olhando o sol nascer.

Entrava apressado na casa, se achando meio tolo, e essa sensação o tomava todos os dias. Parecia um jovem sonhador, um bobo apaixonado. Entrava na cozinha de azulejos brancos e azuis e preparava um café. Eram duas colheres de pó, exatamente duas colheres de pó colocadas na chaleira de moccha, quantia que aprendeu nem lembrava como. Enchia de água e colocava no fogo baixo, em cima do fogão.

Esse era o pior momento do seu dia. O momento da água fervendo o café. Ele nunca sabia ao certo o que fazer com as mãos. Esfregava-as compulsivamente, estalava os dedos irritantemente, mas não tinha ninguém lá para ver ou se irritar. Ele as colocava nos bolsos da calça, unia-as em frente à boca e soprava o ar quente dos pulmões venenosos, juntava-as no meio das pernas.

Era um tempo livre que o assustava. O que era estranho até, ao se pensar que todo o seu tempo era livre. Ele não tinha mais nenhuma ocupação, passava o dia inteiro dentro de casa, fazia o que bem quisesse. Comia a hora que tivesse fome, dormia a hora que tivesse sono, chorava a hora que a tristeza lhe esmagasse o peito.

Mas àquela hora, ali, em frente à água fervente, esperando o café transbordar seu aroma matinal, ele não sabia o que fazer. Não era um período de tempo longo o suficiente para ligar a televisão, molhar as plantas ou ir buscar o jornal diário, que esta hora devia estar repousando sobre as rosas de Helena. Ao mesmo tempo, não era algo instantâneo, ele precisava esperar. Esperar e pensar, pois pensar era automático, uma ação condicional ao ato do ser sozinho. E ele esperava, os olhos focados no azul da chama dançarina. E ele pensava, os olhos focados no mesmo azul.

Nunca percebeu que aumentou a quantia de café que bebia todos os dias. Agora, ele bebia o café em dobro. Preparava, todas as manhãs a quantia exata para o seu café e o de Helena. E há dois anos, bebia os dois cafés sozinho, um seguido do outro. O café nunca foi tão amargo, o sol nunca demorou tanto para se erguer no horizonte, a água nunca foi tão preguiçosa para começar a ferver. O mundo nunca girou tão depressa, os dias nunca se arrastaram tão lentamente. O tempo nunca teve tão pouco significado. O tempo nunca teve tanto significado.

Sorvia os goles fumegantes e, inevitavelmente, queimava a língua. O tempo lhe pregava peças. Um gole o queimava, o outro gelava a língua, e quando reparava, já era noite. A tardes, passava cuidando do jardim, das roseiras de Helena que as formigas insistiam em atacar. Ou então dentro do velho galpão de madeira, onde guardava as ferramentas que foram sua principal fonte de renda durante boa parte da vida. Tudo que estava lá dentro era uma preciosidade para o vô Mário. Cada lâmina, cada parafuso, cada foice, cada torno, cada pedaço de cano amarelado pelo tempo. Tudo tinha significado, tudo tinha história. Há quanto tempo guardava tudo isso, já não lembrava mais. Mas o tempo já não era mais o mesmo. As lembranças se confundiam, se apagavam, se estranhavam umas com as outras.

Ele afiava cada uma das lâminas e limpava cada uma das ferramentas, mesmo sabendo que era bem provável que não mais as utilizaria. Seriam deixadas para o filho mais velho, empilhadas em um depósito qualquer, cobertas de poeira e esquecimento. E quando pensava nisso – nas ferramentas cobertas pelo temido pó do esquecimento – sentia a vontade impossível de se agüentar, que lhe acompanhou durante toda a vida. Que lhe perseguiu, enfraqueceu e fez sofrer. Sentia a vontade de um cigarro para encher-lhe de fumaça e dor. O maldito cigarro que lhe tirou a vida, tanto a sua quanto a de Helena.

Helena nunca fumou. Ela não tinha a mínima vontade de provar o gosto do veneno que Mário carregava eternamente pendurado no canto esquerdo da boca de lábios finos. Desde os oito anos de idade, ele era seu fiel companheiro, o mais fiel e presente companheiro que já teve. E que ironia vã fez o destino levar sua Helena antes dele? Sua Helena, passional e passiva, que tragava no ar, a contragosto, a fumaça de Mário, o assassino.

Mas agora, isso já não importava mais. Nada mais importava. O tempo que se passou, as causas dos sofrimentos, os causadores de toda a dor que se fazia presente na vida do velho e esquecido homem. O que importava era que Helena se fora, e Mario não. Ele continuava ali, com seu tempo de sobra, mais tempo para sentir saudades e sofrer calado e abandonado pelos erros que o passado insistia em lhe revelar todos os dias. O que importava era apenas o dia trazendo o sol e a noite o levando embora. Os almoços solitários no bar sujo e vazio da esquina de casa, os cafés quentes e frios. Seus cafés, por mais quentes que fossem, sempre tinham o gosto frio do café solitário. Os programas sobre a vida da natureza selvagem que a televisão mostrava durante as longas horas da tarde afundado no sofá, a liberdade dos animais selvagens, a falta de razão no viver daqueles seres. A falta de razão no viver.

Nada mais fazia muito sentido para ele, por mais que tentasse encontrar um significado para os fatos cotidianos da vida. Não iria se matar, isso era certo. Não havia o menor sentido em causar um alvoroço tão grade por uma coisa que já nem importava mais. Se já ia morrer em breve, para que trazer tanto sofrimento para os que ficariam? Então ele continuava, quieto e silencioso, contando os dias que se passavam e o aproximavam da morte. Contando o tempo, que às vezes não se fazia mais passar. E ele lembrava do jovem atlético que jogava bola na praia, da bela garota que lia sob o sol forte, dos passeios de mãos dadas nas manhãs de inverno, do crescimento da cidade ao seu redor, da pressa dos homens de gravata, do tempo.

Do tempo que passou tão depressa. Do tempo que insistia em não passar.

O Grande Encontro

Joselito estava no auge dos seus 33 anos quando recebeu um telefonema de seu irmão caçula, há muito esquecido. Pedro Paulo não era lá muito parecido com Joselito no quesito personalidade, mas o biótipo da família era inegável em ambos. Pedro. Não se falavam desde uma vez que Pedrinho ligou desesperado por ter tomado um fora de um travesti ninfomaníaco. Percebia-se por aí que as semelhanças entre Joselito e seu irmão paravam na parte física mesmo. O mais velho sempre foi o tipo mulherengo incorrigível desde a pré-adolescência. Forte e com 1,85m já aos quatorze anos, era o cara mais popular da escola, do bairro, e, não fosse pelo Rivanildo, até da cidade. Pedro já era mais gordinho e isso sempre foi um fator preponderante na sua timidez. Aliado ao fato de viver sempre às sombras da popularidade do irmão, os traços da personalidade do caçula foram marcados pelo seu insucesso sexual desde os primeiros anos da adolescência.

Mas o que importa é que Pedrinho resolveu ligar mais uma vez para seu irmão mais velho. Só não sabia muito bem o motivo da ligação e deixou que o instinto fraternal guiasse a conversa.

- Lito. To indo passar uns dias aí na tua terra porque a empresa resolveu fazer uns cursos pro pessoal do telemarketing. Eles vão pagar o hotel, mas a gente podia passar num bar pra botar o papo em dia, né?

Aquilo soava um tanto quanto estranho para Joselito.

- Tu não bebe, não fuma e não fode. Mal e mal joga sinuca. O que vais fazer num BAR? Pelo menos dominó já aprendesse a jogar?

- Não, mas queria conversar contigo. Acho que preciso de umas dicas de como ir atrás das mulheres.

- Pô. Por que demorou tanto pra falar? Veio atrás do cara certo. Sabes que sempre fui o preferido da mulherada.

- Sim, eu sei. Não precisa me lembrar disso que eu não me canso de lembrar das tuas peripécias juvenis.

- Ta bom. Chegas quando?

- Já to aqui no Bar Celona. Falando do orelhão, e minhas fichas vão acabar.

Não deu outra. O telefone ficou mudo de repente. Joselito pegou as chaves do fuscão e saiu calmamente rumo ao bar do seu amigo Gil, parceiro de tantos desafios de sinuca, dominó, caxeta e esportes importantes como estes. Ovacionado por seus amigos logo na entrada do bar, entrou desfilando toda sua imponência, no auge de seus quase 120 quilos. Sentado em frente ao balcão com uma garrafa de gasosão de framboesa, seu irmão, Pedro Paulo. Curvado no banco giratório, com a bermuda na altura do umbigo, Pedro Paulo parecia desolado, como sempre, mas demonstrou alegria ao ver o irmão entrando no bar. Levantou e foi abraçá-lo.

- Me poupe dessas frescuras. Vamos logo ao assunto. – E virando-se para o rapaz atrás do balcão – Gil. Desce duas doses de Tonturinha pra nós.

- Mas eu não bebo. Você sabe disso. – Lamuriou o caçula.

- Viu. Começou errado já. Quer se dar bem com as mulheres como, sendo fresco desse jeito. Toma essa porcaria e não chia.

Pedro Paulo colocou um pouco de gasosão dentro do copo de cachaça e virou num gole só, como se tomasse um remédio de gosto horrível. Em poucos segundos já estava tonto e bêbado a ponto de falar qualquer coisa que lhe fosse perguntada. Restava ver se aquilo lhe proporcionava coragem para encarar o grande desafio de tomar a iniciativa com uma mulher. Tudo bem que o Bar Celona não era o lugar ideal para encontrar alguém para ele, mas o papo que seguiria já era o suficiente pra testar um possível desempenho dele em situações mais favoráveis.

- Agora quero mais uma.

- Começou errado e continua errado. Tu não tem jeito, né, desgraçado? Ta de porre já e quer mais uma? Como vais fazer alguma coisa com uma mulher passando desse estado?

Dava pra entender porque os dois não se falavam há tanto tempo.

- Ó, aí, Gil. Não falei que tinha um irmão mais frouxo que cueca sem elástico? Esse é o Pedrinho, meu irmão caçula.

- Deixa o cara, Lito. Ninguém tem que ser igual não. Mas qual o problema dele?

Pedro Paulo ainda tentava se recuperar do gole de Tonturinha enquanto Gil e Joselito conversavam.

- É um frouxo. Não bebe, não fuma, não fode, não joga cartas, sinuca, futebol. Não faz nada o traste. Só se mata na frente daquela televisão e conversando com um cacto de estimação. É uma vergonha.

Semi-recuperado, o alvo das críticas retoma a palavra.

- A culpa disso tudo é tua, que sempre ficou me subestimando, ignorando e intimidando.

- Cala a boca. Tu que sempre foi um frouxo, desde moleque nessa merda de dizer que é tímido e acaba não fazendo nada que presta.

- Pra mim chega. To voltando pro hotel. Amanhã passo lá pra ver meus sobrinhos.

- Nem precisa passar, melhor eles nem verem esse mau exemplo.

Pedro Paulo paga seu gasosão e vai embora, deixando a conta da cachaça para seu irmão. Segue a pé até o hotel, enquanto Joselito continua no bar.

- Vai um sinuquinha aí, Marcel? Quem perder paga uma dose.

Jogando sinuca, Joselito nem lembra que seu irmão passou por ali, mas a recíproca não é nem um pouco verdadeira. Sem conseguir esconder a tristeza, Pedro Paulo entra em um prostíbulo ou, como preferem chamar, casa de tolerância. As cortinas vermelhas e as músicas do ambiente deixam Pedro Paulo constrangido, mas ele precisaria enfrentar aquilo se quisesse provar para seu irmão de que era um cara bom. Ele sabia que seria um tio legal para os pequenos Fotolito e Linotipo, mas precisava primeiro ser razoável com ele mesmo. Depois de uma cachaça, as coisas começam a mudar de figura, mas mesmo assim ele não conseguia se desinibir. Sentou-se numa das cadeiras em frente ao palco e decidiu esperar o efeito do álcool. Cochilou. Dormiu pesado.

- Não é o irmão do Joselito? Vamos lá. Botar o cara pra fazer festa também.

Após horas de sono na cadeira do prostíbulo, foi acordado com surpreendentes abraços masculinos. Eram os seres com mais cheiro de cachaça que ele já tinha visto. Marcel e Gil. Freqüentador e dono do Bar Celona, respectivamente. Juntos, bêbados e prontos para uma noite de esbórnia como qualquer outra.

- Marinês, esse aqui é irmão do Joselito. Parece que ele é meio tímido e não tem muita experiência na coisa. Apresenta a Jucelaine pra ele.

Marinês era a cafetina desde que seu irmão, Rubens, morreu num acidente de moto. Rubens era um dos melhores amigos de Joselito, e Marinês sempre teve “um carinho especial” por esse amigo em específico. Em épocas um pouco mais distantes, antes de casar com Maria das Dores, Joselito até se atreveu a encontrar a irmã do amigo às escondidas. Mas pulou fora quando percebeu que ela além de sexo tinha sentimentos. Mesmo assim, Marinês não tinha ressentimentos em relação à relação que nunca existiu de fato. E não custava nada pra ela oferecer um agrado ao irmão caçula daquele com quem ela sonhava ter casado.

Fez um sinal de positivo para os amigos e saiu em direção ao camarim. Após algumas horas de conversas com a mais famosa de suas garotas, saiu rumo a mesa dos rapazes.

- Os shows só vão começar daqui a uma hora, mas venham comigo que preparei algo especial pra vocês hoje. Considerem que é um presente de natal antecipado para meus clientes mais fiéis. E pra ti, irmãozinho do Lito, só vou retribuir os favores que teu irmão me fez há muito tempo.

Marcel e Gil foram com Jucelaine para um quarto reservado, enquanto Pedro Paulo foi praticamente arrastado pela própria Marinês para outro. Pensou, por um momento que pudesse ainda estar dormindo, sonhando, ou talvez bêbado demais. Em todos os casos, não acreditava se tratar da realidade. Ele? Sendo arrastado para um quarto por uma mulher? Realmente era difícil de imaginar.

Entrando no ambiente preparado para aquilo que Pedro Paulo mais queria e menos fazia na vida, ele quase delirava. Era como se seus desejos mais íntimos virassem realidade “automagicamente”. A luz, fraca no fundo do quarto, era suficiente para realçar os contornos daquela bela mulher que o conduzia pra uma dança inesperada. Pedro Paulo suspirava só de ver as curvas salientes. Marinês não era igual as outras mulheres daquele lugar. Ela apenas administrava a casa e se divertia com um ou outro cliente quando tinha vontade. Pedro Paulo deu sorte de ser imão de Joselito nessa hora. Ela o atacou vorazmente como se tivesse à sua frente o irmão pela qual era apaixonada, mas logo o deixou ir, acabado. Arrastando-se madrugada adentro, Pedro Paulo parou em um bar, comprou fichas de orelhão e ligou para seu querido e estimado irmão.

- Muito obrigado. Você é o máximo! – E desligou sem direito a resposta, partindo em direção ao hotel. Parecia o dia mais feliz da vida de Pedro Paulo, que dormiu feito um anjo na cama dura daquele hotel de quinta categoria.

No dia seguinte ele só tinha duas horas de treinamento e estava livre para fazer turismo até a hora de voltar pra casa. Como era um sábado, Fotolito não tinha aula, e ele estava curioso para conhecer seus sobrinhos. Imaginou dois meninos fortes, como o pai, e já se enchia de orgulho por fazer parte daquela família. Caminhou por horas até encontrar a casa certa, mas quando a fome começou a apertar, acertou a porta.

(Toc Toc)

- Quem é você? – Indaga um pequeno garoto ao abrir a porta.

- Pedro Paulo, irmão do Joselito. Ele ta por aí?

- Paaaaaaaaaaiiiêêêê. Tem um gordinho aqui que diz que é teu irmão.

- Deixa ele entrar. É o Pedrinho.

- Humm. Vamos ver se adivinho. Você é o Linotipo. Certo?

- Não. O Lino ta ali no berço. Eu sou o Fotolito. Fiz oito anos na segunda-feira e esses dias a mamãe me deixou sozinho em casa. Eu não podia mexer no fogão, mas fiquei com fome, daí fiz macarrão instantâneo no chuveiro mesmo. Se você é irmão do papai, quer dizer que é meu tio, não?

“Meu Deus. Enganaram meu irmão. Esse não pode ser filho dele”, pensou Pedro Paulo instantaneamente ao ver o menino franzino que se apresentava à sua frente. No meio do pensamento, Joselito apareceu sem nenhuma empolgação.

- Eu te mato seu desgraçado. Tava bêbado ainda aquela hora da madrugada? Me ligou pra quê?

- Só pra te agradecer por ter feito alguma coisa pra Marinês que eu não sei o que é. Sei que ela gostou e resolveu retribuir pra mim ontem à noite. Tens cigarro? Que tal a gente sair pra jogar um sinuquinha? Ou preferes jogar cartas?

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Além dos sonhos

Escrevo estas palavras em um dos raros momentos de vigília que ainda permeiam minha vida. Sinto o torpor possuir meus membros, enrijecendo até os menores músculos, tornando um desafio prodigioso mesmo o simples ato de deslizar a caneta sobre o papel. As pálpebras lutam a cada segundo para serem fechadas, mas eu devo resistir, pois sei que o fim está próximo. Devo buscar toda força que ainda possuo, advinda da vontade de ficar vivo e do horror do meu conhecido destino, para avisar a humanidade do que a espreita em cada noite de repouso. Pois aqueles que dormem tranqüilamente em suas camas, imaginando-se seguros no interior de cobertas, paredes e muros, não têm a consciência dos abismos morféticos de horror imaterial e incognoscível no qual estão mergulhados.

Sempre busquei nas visões oníricas da noite a satisfação para as desilusões contínuas da vida mundana, que já não ouso mais chamar simplesmente de real. Os mundos mágicos e inacreditáveis por onde vagava no sono mascaravam minha incompetência nos assuntos da vida, como estudo, trabalho e relações humanas. Porém, como ocorre em todas as pessoas, minhas madrugadas foram ficando mais estéreis de sonhos etéreos conforme os anos passavam. Mesmo me esforçando para retornar aos universos fantásticos de outrora, as noites eram vazias e obscuras, sempre terminando em um decepcionante despertar para o mundo frio, tedioso e insípido da realidade.

De alguns anos para cá, essa aridez se tornou mais pronunciada do que nunca. Apenas alguns pensamentos fugazes e repentinos relampejavam em minha mente durante o sono. Comparado aos devaneios da tenra infância, não passavam de pobres impressões, tão distantes das aventuras oníricas de antes como o homem o está da compreensão total do universo. Ao mesmo tempo, e de modo assustadoramente rápido, eu me tornava progressivamente mais sonolento e caía dormindo sem aviso, às vezes mais de uma vez por dia, não importando qual atividade realizava no momento.

Os médicos diziam que eu sofria da rara doença da narcolepsia, na qual a vítima cochila em qualquer hora e incontrolavelmente. Diziam também ser comum a vítima sonhar durante esses cochilos, coisa que nunca me aconteceu. A ausência de sonhos e o aspecto progressivo da moléstia atraíram certa atenção de especialistas, vendo ali uma variante incomum e a chance de acrescentar mais um artigo científico aos seus currículos. Porém, desde aqueles tempos não me convenci com a inocência dos médicos diante da complexidade incompreendida do multiverso. Mesmo desconfiado de que as origens do meu mal estavam além do seu determinismo especulativo, tomei toda sorte de estimulantes e anfetaminas que me receitavam para manter-me desperto. Rapidamente estes se tornaram um vício, por fui dominado por um desconforto mórbido em relação ao repouso. Todo o momento em que dormia por longos períodos, meu último pensamento era o de que talvez minha consciência não voltasse a emergir daquele reino de escuridão e vácuo.

O que a princípio não passava de uma pequena intranqüilidade se tornou um horror incontrolável. Os poucos a quem ousei confessar meus medos me disseram que era só minha mente imaginativa que criava tais fantasias, que meu problema era pouco conhecido, mas possível de ser tratado. Realmente, se minha imaginação fosse fraca e comum, como a de quase toda humanidade, talvez eu tivesse me deixado ir há muito, em relativa paz.

Mas eu sou um daqueles seres com raros dons perceptivos, capazes de romper o véu da mediocridade e enxergar por trás do espesso manto de ignorância que resguarda o homem da loucura total. E por esse dom eu paguei caro. O tormento constante acabou por minar aos poucos minha sanidade, me levando a certas conclusões que hoje tremo só de lembrar. Eu começava a raciocinar que, se durante a inconsciência o mundo era um éter congelado de negrume morto, e nenhuma preocupação ou sentimento de perda me atacava, o sono era a melhor fuga para a dor. Bastava vencer o pavor fóbico da imersão no ignoto. Meu próprio problema era a solução!

A mente alquebrada me fez largar os remédios, junto com qualquer círculo social ou familiar ao qual ainda me ligava, e passei a viver isolado de tudo e de todos numa cabana distante da civilização. Lá ninguém tentaria me convencer a voltar ao tratamento ou continuar lutando.

Agora que tenho maior compreensão dos fatos, as implicações daquelas ações se tornaram mais grotescas e terríveis do que a simples degeneração cerebral. Ah, como eu adoraria ainda crer apenas na insanidade! Mas a sonolência está novamente me atacando, não posso me dar ao luxo de divagar muito.

Em uma manhã qualquer, após passar doze horas desde o anoitecer anterior dormindo, senti uma nova onda de embriaguez imediatamente após abrir os olhos. Jamais antes o sono viera tão cedo após a noite, sendo mais forte do que nunca. Não resisti muito àquela altura, me entregando novamente ao abraço de Hipnos. Subitamente, em meio às trevas, me senti novamente vivo, como se os sonhos estivessem voltando. Mas era apenas eu em um vazio infinito e apagado. Algo, que não ouso nem tentar chamar de alguém, parecia próximo a mim, me vigiando, me cercando, observando camuflado o humano solitário. Eu me sentia em um estado de consciência diferenciado, como se pudesse romper o vácuo, como se o nada fosse alguma coisa, e com a ação certa eu conseguisse ver através dele. Comecei a captar algumas impressões vindas do infinito, e apurei sentidos recém-descobertos para captá-las. Subitamente, aquilo me tocou. O tecido da escuridão ondulou, dobrou-se e se rasgou, abrindo-se para uma torrente de informações jorrar em minha mente completamente aberta, me mostrando o quão inocentes foram até as minhas piores suspeitas e medos.

Pois fiquei sabendo que o mundo material e único que os homens normais conhecem é apenas um dentre tantos interpostos no multiverso. Essa plenitude à qual eu chamo multiverso possui tantas dimensões quanto o número de seus planos, simplesmente o infinito. Os planos se cruzam com outros, que se cruzam com outros, formando uma cadeia de interconexões, portais e sobreposições, incompreensível até para mentes muito superiores à humana. Cada universo possui sua cota de entidades, suas formas de vida, embora nenhum conceito humano de vida possua a amplitude necessária para abarcar a incomensurável diversidade de aberrações a rastejar em uma miríade de paisagens bizarras.

Uma das ligações nossas com um outro plano ocorre nos momentos em que perdemos a consciência, mais comumente durante o sono. Cada forma de vida de nosso plano é ligada a uma entidade deste outro, que curiosamente só adquire consciência quando a nossa se vai. A tendência a nos mantermos despertos é uma luta inconsciente contra essas entidades, que lutam para tomar nossas consciências para sempre e assim alcançar a sua vigília plena. Os mais fracos costumam se render em uma única e súbita vez, caindo naquele estado que relacionamos a diversas causas e chamamos de morte. Outros resistem até o último segundo, permanecendo em coma por meses ou anos, antes de se irem. Ou, em raros casos, voltarem triunfantes da batalha, sem nada lembrarem e conseguindo apenas mais um breve período de paz. Os mais fortes, ou mais sensíveis a essas verdades, lutam alternando períodos de consciência com inconsciência, assim como eu. Cada vez é necessário um estupendo esforço de vontade para voltar.

E eu vi e senti mais: os sonhos, os adoráveis sonhos, são uma defesa que nossas mentes tem contra esse ataque, nos isolando em semiplanos frágeis e fugazes de nossa própria criação, de modo que as malignas entidades não usufruam sua vida parasita. Mas às vezes elas conseguem encontrar e penetrar nos refúgios, e destroem nosso mundo onírico ou o pervertem em forma de pesadelos. Progressivamente, esse mundo vai sendo dilacerado, e a mente sonhadora da criança vai se transformando na aridez estática do adulto, sem que ninguém perceba que aquilo nada mais é do que o início da morte.

Porém, a mais terrível das certezas foi a de que, enquanto nós nada sabemos sobre a verdade, seguindo nosso caminho de modo desapercebido e estúpido, as entidades (jamais ousarei chamá-las de seres ou criaturas) possuem o conhecimento completo, sabendo que por trás de toda a placidez da ignorância jaz uma guerra entre universos. O que gera em minha entorpecida consciência toda sorte de perturbadoras implicações. Teriam essas assombrosas entidades a capacidade de interagir diretamente com o nosso plano? Seriam elas as causadoras de toda essa assustadora onda de racionalidade que assola nosso mundo, sepultando os sonhos nos mais profundos recônditos da mente, em detrimento de uma vida voltada aos pífios prazeres materiais? E as outras formas de vida que povoam nosso limitado universo, como reagiriam a isto? Ou elas já têm essa sabedoria e lutam contra a ameaça? Seriam essas entidades as causadoras diretas de todo tipo de morte que assola as criaturas deste plano?

Diante dessa aterradora questão, senti uma repulsa imediata da coisa que se aproximava. Foi com uma incrível força de vontade que tentei me desenvencilhar daquela monstruosa terra de visões e verdades. Senti as garras viscosas do esquecimento me agarrando e me arrastando em direção ao oblívio, tentando iludir minha mente com a falsa promessa de tranqüilidade que o fim apresenta. Cada fibra do corpo relaxava e se entregava, enquanto apenas um fiapo de consciência resistia, como o último soldado espartano de pé ante as Termópilas. Era uma luta quase física entre minha consciência e a vil entidade que tentava, por todos os deuses, o termo é exatamente este: me matar! A guerra ocorreu durante milênios, eras completas, tempo que já foram e ainda serão, em lugares e planos infinitamente distantes e outros assustadoramente familiares. Por fim, senti os tentáculos se soltarem relutantemente, como se dissessem: "na próxima, você será meu!".

Abri os olhos, enxergando o teto úmido e bolorento da isolada cabana em que passei os últimos meses. Sabia que deveria registrar imediatamente tudo o que havia sentido, pois, como nos sonhos, as lembranças começavam logo a se apagar. O esforço sobre-humano para me livrar do abraço ímpio da entidade quase me exauriu, tornando-me mais vulnerável ainda a um novo torpor. Com cada membro pesando toneladas, tombei da cama, rastejando de modo dolorosamente lento ao criado-mudo, onde um frasco quase esquecido de estimulantes repousava. Ingeri os comprimidos em uma virada só, sentindo as drogas penetrarem na corrente sanguínea e estimularem os músculos e nervos entorpecidos. Conseguindo apenas me mover com dificuldade, quando qualquer humano normal teria convulsionado por overdose, comecei a redigir este relato, determinado a avisar a humanidade do terror que a assola. Meu maior medo, porém, é o de que estas palavras sejam consideradas apenas delírios de um louco e caiam no esquecimento, o que quase certamente ocorrerá. As pessoas sempre preferem continuar chafurdando em uma ilusão que lhes traga uma paz momentânea do que enfrentar os demônios de uma existência difícil, com apenas uma vaga esperança de triunfar.

Já não posso resistir muito. Mesmo tendo tomado todas os estimulantes que ainda guardava, sinto a dormência se espalhando pelos membros, embotando meu raciocínio, borrando minha visão... A próxima vez em que fechar os olhos, certamente será a última. Cada piscadela é uma guerra inteira travada entre planos do multiverso, meu corpo em frangalhos já não agüenta mais. Cada partícula do meu ser deseja desistir e se render a esse destino nefasto, buscando o lúgubre descanso final. Mas minha mente ainda luta! Eu ainda tenho força! Mostrarei a essa entidade maldita o que a força de vontade de um homem é capaz! Resistirei até o último instan

Relato em azul

Percorreu a última letra com menos pressa. A bola metálica da esferográfica rolando sobre o papel com um ruído inaudível, deixando para trás um rastro azul, uma letra e, finalmente, um ponto. Embainhou com calma a caneta no porta-canetas inox. Releu com atenção a página. Amassou a folha até que se tornasse uma bola compacta de celulose e alguma tinta desperdiçada. Atirou-a, pela janela aberta, contra o fim de tarde mal cheiroso que o vento trazia do rio. No contraluz, silhuetas de hotéis luxuosos e centros empresariais milionários se erguiam do amontoado de casebres rotos e baixos espalhados ao redor. Ali, a distância entre a miséria e a riqueza se media em andares. Se se esforçasse, poderia ver um daiquiri sendo mexido no ofurô de uma das sacadas distantes. Muito mais abaixo, no rés do chão, uma poça servia de refresco para uma criança barriguda ou um cachorro magro. É tudo lixo, tudo é podre.

Já tinha atirado mais páginas pelas janelas do que colocado na rasa pilha sobre a mesa, quando um ruído abaixo da janela dispersou-lhe os pensamentos. Debruçado no parapeito pôde ver, dois andares abaixo, duas crianças, pouco menos que adolescentes, a revirar o seu lixo. A primeira estava abrindo as folhas, transformando as bolas de papel novamente em folhas mais ou menos planas. A outra as empilhava umas sobre as outras. Pôde jurar que um resto de sol tinha brilhado sobre os meninos, numa luz muito fraca para ser percebida por alguém além dele. Um dos garotos olhou para cima e, ao vê-lo, assustou-se. Juntou as folhas e partiu correndo, no que foi seguido imediatamente pelo outro.

Ele ficou observando até os garotos sumirem por entre os casebres escurecidos pela hora. Demorou-se na janela, ruminando algo que lhe nascia junto com a noite. Retornou à mesa, tomou mais uma folha em branco, desembainhou a caneta e fez a esfera metálica na ponta do artefato correr veloz pelo papel, cuspindo letras, palavras, personagens, amarrados por um fio azul que seguia a bola prateada de uma nova história. Escreveu três páginas de um conto breve de aventuras ribeirinhas juvenis. Amassou as folhas em uma bola frouxa de papel e tornou a abri-las. Apoiando-as sobre a mesa, passou-lhes a mão por cima duas vezes, para suavizar os vincos. Desceu com o conto nas mãos, entrou no beco ao lado do prédio e, bem abaixo de sua janela, pousou as folhas abertas sobre um caixote de madeira, calçando com uma carcaça quebrada de celular descartado. Subiu ao apartamento e escreveu mais algumas páginas. Desta vez, colocadas sobre a pilha de folhas escritas em sua mesa. Jantou satisfeito olhando pela janela a cidade escura onde, em algum lugar, havia alguém para quem escrever.

O cheiro do rio chegando pela janela denunciava o horário. Foi ao beiral e ficou espiando ao canto, escondido. Os dois vultos jovens não tardaram a aparecer, esgueirando-se rentes ao prédio. Um dos garotos começou a remexer o lixo quando o outro lhe chamou a atenção. Tomou as folhas, percorrendo rapidamente de cima a baixo, os olhos saltando rapidamente pelas linhas preenchidas à caneta. Os garotos se olharam com um início de sorriso trocado e logo olharam para cima, de repente. Da janela ele não pôde perceber se eles o haviam visto. Mas viu-os partirem correndo em seguida, com risos trocados e, se ele não se confundira, um pequeno e discreto saltitar de alegria. Respirou fundo o ar úmido de aroma duvidoso e retornou à escrita, colocando a esfera metálica na ponta da caneta para trabalhar novamente.

Mais um conto breve, de quatro páginas. Uma continuação do anterior, repetindo personagens em novas aventuras. Numa vida ribeirinha e difícil, mas cheia de esperança, descobrindo um caminho para além das dificuldades. Dessa vez não amassou as folhas. Desceu novamente à viela ao lado do prédio e pousou-as de novo sobre o mesmo caixote. Cobriu-as com a mesma carcaça de celular abandonado. A alvura das laudas perfeitas com as letras de azul vivo destoava do lixo triste, mas ele achava que isso já não assustaria os seus novos leitores.

Subiu devagar os degraus até o seu quarto, imaginando em que condições aqueles textos estariam sendo lidos. Surpreendeu-se com a mente percorrendo as vielas à procura de um abrigo onde folhas amassadas de uma história juvenil entretinham um par de crianças que ainda se permitiam sonhar além daquela planície, do rio, dos casebres e das torres luxuosas dos hotéis inacessíveis.

Entrou no quarto e debruçou-se novamente na janela aberta, olhando aquele marrom acumulado de madeira descartada e zinco velho que forma uma massa de casas e vidas e papelão empilhado. Do meio daquele emaranhado de vidas amontoadas, cresciam resplandecentes as paredes envidraçadas dos hotéis. Como se os primeiros fossem o adubo que, enterrado, alimentava o crescimento dos segundos. Nas paredes envidraçadas, o reflexo da podridão. Como a lembrar-lhes de quem eram. A esfregar-lhes nas fuças o cheiro que tinham. Enquanto, lá no alto da torre espelhada, as janelas eram só reflexo de sol, céu e nuvens.
Da sua janela olhava a planície com aquele cenário com o qual se acostumara, como tinha se acostumado ao cheiro forte do rio nos fins de tarde quentes. Baixou os olhos para o lixo na viela ao lado do prédio, onde viu as páginas do conto contrastarem brancas contra os rejeitos. E percebeu-se no segundo andar.

Foi como se uma lufada forte do vento fedido o tivesse golpeado. Desequilibrou-se levemente, a cabeça tonteou como quem se levanta rápido demais. Agarrou-se ao batente até recuperar a estabilidade. Levantou o olhar de novo para planície. Viu os casebres tristes e encontrou, refletido nos vidros de um dos grandes hotéis, o seu prédio. Na parede refletida cravejada de janelas, em uma delas, muito distante, pequena demais, um homem olhava-o de volta. Àquela distância, sem feições. Mas irremediavelmente familiar. Travou uma guerra com o homem refletido, que o fitava severo, como uma aparição que insiste em assombrar o assombrado. Encarou o antagonista distante por vários minutos, na esperança que ele desistisse ou se cansasse. Mas era irredutível, o homem reflexo. Não pôde suportar o confronto por muito tempo. Acabou por baixar o olhar às casas podres, às cercanias, à viela ao lado do seu prédio e, finalmente, ao lixo onde repousavam as folhas alvas marcadas de tinta azul.

Deu as costas à janela num movimento brusco, sentou-se à mesa de madeira e, com um acenar violento do braço, limpou-a de tudo que a cobria. Tomou o bloco de folhas brancas, resgatou a caneta que havia caído no chão, já fora do porta-canetas, arrancou a tampa com os dentes e a cuspiu longe. Baixou a cabeça sobre a primeira lauda, pousou a ponta da caneta na primeira linha e, com um leve impulso, pôs a esfera metálica em movimento, deixando para trás um rastro de azul pastoso. A esfera acelerou sozinha e foi ganhando velocidade. Deixando para trás letras, palavras, parágrafos. Personagens e histórias e críticas e idéias e sonhos impossíveis. Deixando para trás uma pasta azulada de pedaços de autor esmagados por uma minúscula esfera metálica que não cessava de rodar. Não percebeu o cheiro ribeirinho que vinha se esgueirando pelo ar, escalando as paredes do prédio e espiando pela janela aberta. Não percebeu a escuridão que o acompanhava ao encalço, esticando os dedos por sobre a planície, cobrindo os casebres, esgueirando-se pelas paredes, apartamento a dentro. Deu, instintivamente, um tapa no botão da luminária que havia se equilibrado na ponta da mesa, elevando uma redoma de luz que impediu a entrada da noite nas páginas que iam se preenchendo rapidamente. Não viu quando a noite recuou da sua janela para englobar o resto do mundo. Nem reparou nas poucas estrelas refletidas nas torres espelhadas e nas águas dos ofurôs das sacadas distantes. O tubo azul dentro da caneta ia diminuindo de tamanho enquanto as folhas se empilhavam ao lado, prenhas de algum gozo azulado que vertera o autor. Prenhas de um gozo estéril.

Não notou a luz amarelada que se ergueu do rio e escalou suas margens, se esgueirando por entre os casebres e se refletindo, já azulada, nas fachadas de vidros acordando. Não pensou se a viela ao lado do prédio havia recebido a visita de duas crianças na noite anterior, como não pensou se a luz acordara o homem refletido na janela distante na parede de vidro. Apenas olhava a folha branca se maquiando de azul e a mão dormente seguindo os movimentos constantes da caneta que obedecia às vontades de uma bola de metal rolando sobre o papel, a tinta e a luz já desnecessária da lâmpada fluorescente sobre a mesa.

De repente a esfera parou. A caneta estancou. A mão relaxou. Os olhos cansados acompanharam a última folha ser levada até o topo da pilha. Largou a caneta, desligou a luminária e, finalmente, levantou a cabeça para ver um dia amanhecendo pela janela aberta. Arrastou-se até a cama e deixou-se cair sobre as cobertas e num sono raso de sonhos vacilantes.

Acordou ao fim da tarde. Retornou à sala e ficou, da porta, admirando a pilha de folhas sobre a mesa. Preparou um café e deixou que o cheiro da bebida tomasse o apartamento, antes que o cheiro do rio o fizesse. Xícara em mãos, ficou de pé ao lado da mesa. Alternando o olhar entre as folhas escritas e a janela aberta. Pousou a xícara na mesa, abriu uma das gavetas e tomou um barbante com o qual envolveu as folhas amarrando-as em um fardo. Foi à janela, olhou para baixo e viu apenas lixo, com a carcaça de celular inútil diretamente sobre o caixote de madeira. Conferiu as horas, calçou um par de sapatos velhos e terminou o café. Pegou o fardo de folhas, saiu pela porta do apartamento e deu duas voltas na chave pelo lado de fora. Desceu as escadas até o térreo, saiu pela porta principal e entrou na viela lateral. Deixou o fardo sobre o caixote com o resto de celular em cima. Deixou a viela, atravessou a rua, afastou-se mais alguns metros e pôs-se a esperar, encostado em um muro forrado de cartazes sujos com imagens serigrafadas de jogadores de futebol.

Decidira deixar a torre de marfim. Não seria digno escrever, lá de cima, sobre ali embaixo. Era preciso estar lá. Onde a história era feita, onde a história era lida, onde os personagens se encontravam com os leitores. O cheiro do rio chegou lembrando-lhe das horas. O sol era agora só um reflexo alaranjado nas fachadas de vidro do alto dos prédios. Ali embaixo, a noite já chegava aos poucos. Não tardou, o cheiro do rio trouxe o que prenunciava. Os dois garotos entraram na viela correndo, agitados. Àquela distância poderia supor, felizes. Uns dois minutos passaram até que eles saíram, ainda mais agitados, com o volumoso fardo nas mãos e com sorrisos desenhados nos dentes protuberantes. Saíram saltitando, lépidos, com o mais recente volume de suas histórias. Muito maior que os anteriores.

Mantendo uma distância segura para não ser percebido, seguiu os dois jovens, disfarçando o melhor que podia sem perder os dois de vista. Percorreu ruas feias e estreitas, desviou dos olhares desconfiados, até que viu, de longe, os garotos se esgueirarem por uma portinhola estreita para dentro de um barraco muito pequeno para ser considerado mesmo um casebre. Passou vários minutos ponderando se deveria intervir, se deveria ter com os leitores antes da leitura. Se deveria esperar para retornar mais tarde para conversar só depois que a história tivesse sido lida. E se eles não gostassem da história? Talvez nem tivessem entendido as histórias desde o começo. Talvez pedissem para os pais lerem para os pôr a dormir. Talvez, ao contrário, tinham de ler escondidos, escapando à vista dos pais. Que diria, ao chegar? Não sabia como se apresentar. “Olá, eu sou fulano, sou eu que escrevi essa história. Vocês gostaram?”. “Como vai? Boa noite, gostaram da história? Eu tenho mais algumas, posso trazer”. Sem tomar decisão alguma, como se os minutos o empurrassem, como nos fazem os minutos fez por outra, a nos levar de cá para lá e a dirigir-nos assim como fôssemos pontas de canetas sobre papel, deu por si frente à porta de madeira emendada. Bateu duas vezes na porta, mas a segunda pancada não chegou a acertar a madeira. Ao primeiro golpe a porta se abriu devagar, revelando um interior humilde de um cômodo pequeno.

Numa parede lateral, uma portinhola coberta por uma cortina de tecido velho apenas, provavelmente um banheiro ou um quartinho. Na parede dos fundos, um pedaço de cartaz de jogador de futebol colado à madeira um tanto furada. Na outra lateral, três tábuas horizontais encostadas à parede faziam às vezes de bancos e camas. No centro um fogãozinho improvisado com tijolos, com o braseiro aceso e água borbulhando espumante numa panela de ferro enegrecido. Ao redor dela, além dos dois garotos, uma menina bastante mais jovem, com uma boneca manca nos braços, e outra, um pouco mais velha que todos. Essa, com o fardo de folhas numa mão enquanto, com a outra, arrancava as páginas colocando-as na sopa borbulhante. Um dos garotos, com uma colher, mantinha a infusão em movimento. O outro mastigava uma pasta esbranquiçada e úmida. A pequena mandíbula cessou o movimento ao surgir do visitante. As quatro crianças se refugiaram, abraçadas, junto às camas. Olhos temerosos, corpos tremendo, um chorar baixinho e assustado da mais jovem. Do lado da panela ao fogo, uma boneca manca caída e um fardo de papel prenhe de um gozo estéril.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Tema da rodada

Vamos a um novo tema para uma nova rodada.

E dessa vez vai ser moleza.

O tema é livre! Escrevam sobre o que bem entenderem, da forma como quiserem...

... maaass, nem tudo é alegria: os textos devem ter, no mínimo, 10 mil caracteres, incluindo espaços (isso dá cerca de duas páginas e meia do Word).

O marcador padronizado fica como "10 mil caracteres".

Vamos criar!

ps: essa já era minha próxima idéia de tema bem antes de escrever o matacão da rodada anterior. ;)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Votação - Ópera

Votação aberta até domingo, 10 de maio.

Leia, participe, vote.

Traje social

Na zona sul da cidade, um espelho refletia as curvas dela, acentuadas por um tecido leve. O vestido era longo. Uma fenda mostrava quase toda a perna torneada. O decote era discreto, mas não havia como esconder os fartos seios. Maquiava-se. Os cabelos estavam soltos e atingiam a metade das costas dela. Por trás deles e do tecido lustroso do vestido, uma tatuagem. As cifras de uma peça de Chopin. 

Nele, era no braço que as notas estavam marcadas. A camisa e o paletó escondiam a obra de Chopin que os pais ouviam quando decidiram qual seria seu nome. No bairro da zona norte, ele se apressava, procurando as chaves do carro que insistiam em sumir. Queria chegar na mesma hora de sempre, queria que ela estivesse na fila para que pudesse a enxergar de verdade, sem a meia luz que precedia o espetáculo ou o quase escuro que inebriava o ambiente quanto o piano invadia os ouvidos e alma dos presentes.

Há meses, os dois se encontravam todas as noites. A temporada de uma peça no teatro Municipal estava acontecendo. Nunca sentaram ao lado um do outro. Ele tentou trocar, sem que ela soubesse, o bilhete com um senhor que tinha o número seguinte da cadeira dela. Era quase automático buscá-la em meio às trezentas e cinqüenta cadeiras. Quando a encontrava, via os olhos negros sempre em sua direção. 

Chegaram a porta do teatro. Não estavam atrasados, nem adiantados demais. Os corredores ecoavam seus passos, de frente para o trinco, num olhar de consentimento, resolveram entrar. Na platéia, cadeiras vazias. As cortinas do palco abertas. Um homem só, lá, onde deveriam estar todos os tenores com seus fraques. Com uma vassoura na mão, ele anunciou que a temporada tinha terminado.

Em silêncio, foram até a escadaria do teatro. Olharam-se. Ela virou as costas e se foi. Assim como a arte, a temporada da paixão também chegou ao fim. E ela sabia que para ser lembrada como música, nada poderia quebrar o silêncio da partida. Mesmo que na pele dos dois, estivessem fadados à mesma peça. Pra sempre. Sem saber. 

Rusalka

N.A.: esse texto é longo pacas. Leia em um momento mais calmo.


Era mais uma noite de espetáculo no Teatro Rilke. O público era razoavelmente bom, ainda mais para uma noite fria na Cidade Nova de Praga. O teatro também não era dos maiores, mas possuía sua tradição e púbico fiel. Vantagens obtidas por ser um teatro de família, nunca tendo caído na mão de donos descompromissados desde sua fundação.

Franz Dvořák Rilke era quem atualmente a tudo dirigia. Os membros mais velhos da família, reais proprietários do estabelecimento, não tinham o menor receio em deixá-lo a cargo de Franz. A tradição familiar dizia que ele provinha de uma cepa bastarda do próprio grande compositor romântico e, assim, seu pai havia adicionado o nome do meio no batismo. Deste modo, a arte corria em seu sangue, embora seu talento fosse limitado a uma razoável habilidade no piano. Franz gastava seu tempo principalmente como um enérgico organizador, e confiava em Shaprov, seu auxiliar de confiança, para a seleção de apresentações de qualidade.

Naquela noite, o teatro homenageava seu ilustre ancestral, com sua mais conhecida ópera. Além de freqüentadores costumeiros e alguns rostos novos, Franz viu alguns turistas em meio à platéia, ansiosos pela experiência de assistir à "Rusalka" de Antonín Dvořák executada em sua terra de origem. A obra era famosa, mas o próprio diretor estava curioso para ver como se saíam os intérpretes, ainda desconhecidos para ele. Havia cumprimentado os artistas rapidamente, reparando por um instante na soprano que interpretaria a protagonista, uma garota de sorriso tímido e aparência comum, que dificilmente poderia ser classificada como diva. Mas dizia Shaprov que ele teria uma bela surpresa. Esperava que fosse positiva, é claro.

Após correr de um lado para o outro ajustando os últimos detalhes, Franz pôde relaxar ao lado do palco, esperando o espetáculo começar. O apresentador subiu e discursou sobre o artista e a obra, dando um rápido histórico de Dvořák e sua produção artística, mais conhecida pelos concertos e sinfonias, e a composição daquela ópera em especial, já no zênite de sua vida, na virada do século XIX para o XX. Franz não era um ardoroso fã de ópera, mas já conhecia a história de cor, e estava com os olhos mais atentos nos pequenos detalhes e defeitos que só seus olhos experientes poderiam perceber. Nada que o público notasse, mas sempre coisas a se melhorar da próxima vez: a postura do apresentador, sua saída do palco, a abertura das cortinas, o posicionamento dos músicos, o direcionamento das luzes para aqueles que dava as primeiras notas e cantavam os primeiros versos...

Isso só até o momento em que a luz central se acendeu, e dela veio uma melodia de incrível beleza, se espalhando em ondas lânguidas por todo o salão. Atingiu Franz diretamente na espinha, espalhando um estremecimento de prazer pelo corpo todo. Conforme o som era assimilado pelos espectadores, o silêncio absoluto os atingia, estarrecidos e boquiabertos pelo que estavam ouvindo. Um cantar cristalino de simultânea doçura e imponência, etéreo e poderoso. A menina de aparência comum não mais existia: a combinação de luz, canto e atmosfera fazia-os acreditar, mesmo contra toda lógica e racionalidade, que era a própria Rusalka que lá estava, o jovem espírito das águas, enfeitiçando a todos em um palco além do mundo real.

Durante o restante da apresentação, o público assistiu hipnotizado ao drama da ninfa das águas, trocando sua natureza mística pela paixão por um príncipe humano, posteriormente enganada e traída, e caindo em desgraça, tornando-se um maligno espírito da morte a habitar as profundezas de um lago. Mesmo no melancólico final, com a morte redentora do príncipe e o destino eterno de Rusalka como demônio das águas, só poderia haver uma palavra na boca de todos os espectadores: beleza. O que foi traduzido em uma salva vigorosa de palmas, que ressoou como se fosse nos imensos salões do Teatro Nacional.

Franz, entretanto, não se ergueu. Ainda em êxtase, não conseguia tirar os olhos da soprano, agora com um largo sorriso de felicidade, alívio e agradecimento emoldurando os lábios. Apenas quando ela desceu seus olhos sobre os dele, o homem conseguiu levantar-se vagarosamente e aplaudir, sem desviar o olhar, o que só deixou o seu sorriso mais largo. Ele disse a Shaprov, ao seu lado, que gostaria de saber tudo sobre aquela pequena notável. Mesmo antes de saber que ela era de origem romena, que tinha chegado à cidade há poucos meses, estudava canto em uma universidade local, e vivia sozinha, ele já tinha uma certeza: a jovem Caterina Ionescu acabava de garantir mais uma apresentação.

* * *

Era a quarta apresentação de "Rusalka" em menos de quatro meses no Teatro Rilke. A cada apresentação, mais espectadores surgiam para conferir os comentários de amigos e críticos sobre o desempenho da soprano Ionescu. E, novamente, na primeira fila sentava Franz, aguardando ansiosamente pela apresentação, com Shaprov ao seu lado. Este comentou:

- Sabe, há pouco tempo atrás, vocês estaria correndo de um lado para o outro antes de uma apresentação tão cheia.

- A vantagem de repetir espetáculos é que cada nova apresentação possui menos coisas com os quais se preocupar. E, além disso, não quero perder um instante.

Shaprov riu.

- Ópera nunca foi seu tipo de música favorito, mas você virou fã de uma hora para a outra, com essa menina.

- Eu não sou fã de ópera. Sou fá de Caterina.

- Percebe-se. Nunca alguém se apresentou tantas vezes aqui em tão pouco tempo. Sabe os comentários que esse tipo de adoração geram, não é?

- Sim, eu já ouvi algumas fofocas por aí - mostrou-se um pouco irritado - Eu sou casado, e a menina tem idade para ser minha filha.

- O que nunca impediu ninguém de fazer nada.

- Cale-se, Shaprov. Os boateiros são idiotas por natureza, mas você me conhece - sua expressão suavizou quando mudou de assunto - Chegou a ver algum ensaio da próxima ópera?

- Sim. "O Diabo e Kate" é uma boa obra, mas menos popular que "Rusalka", você sabe.

- Sei sim. Mas Caterina adora Dvořák - diante do olhar do outro, foi rápido em emendar - Ademais, ainda é uma obra conhecida, e seria uma estratégia interessante um teatro com sangue Dvořák se focar em obras do mestre.

- Concordo com essa lógica. Pode ser um bom marketing.

O apresentador já subia ao palco e iniciava sua ladainha. Franz abaixou o tom de voz:

- E a menina interpreta essas obras de um modo magnífico. Ela como Kate será um grande sucesso também, o que é bom para todos nós. Sabia que ela se machucou em um dos ensaios?

- Ah, é?

- Uma peça de decoração cedeu e abriu um corte em sua perna. Ela não se abateu e falou que eu devia ter ficado feliz por aquilo. "Nos Cárpatos romenos se diz que um artista fica eternamente preso a um palco que bebeu seu sangue", ela falou.

- Isso é meio mórbido...

- Ela falou como brincadeira. Significa que ela gosta muito de estar aqui também, e pelo menos por enquanto está satisfeita em permanecer conosco.

- Interessante. Não somos um dos teatros mais importantes da cidade. Algum motivo especial para essa falta de ambição?

- Contenha sua malícia. Parece que ela apenas que dar um passo de cada vez.

A cortina se abriu. As primeiras notas soaram. O silêncio caiu sobre a platéia.

A decoração do palco estava bem mais elaborada nesta apresentação. O sucesso da apresentação tinha permitido tais extravagâncias. Mas nem era preciso ter uma única folha de celofane, pois todos os olhos e ouvidos se voltavam para Caterina quando ela iniciava seu canto. Franz gostava de ver como os olhos daqueles que ouviam pela primeira vez se arregalavam ao confirmar os comentários dos outros. Não restava dúvida de que ali havia uma artista diferenciada. A timidez da primeira vez estava gradualmente sendo substituída por confiança, o que apenas realçava o virtuosismo da cantora. Franz se ajeitou na poltrona e se preparou para escutar tudo novamente, sem sentir um segundo de tédio.

Ainda na metade do primeiro ato, Caterina se voltou para o público, entoando uma longa, suave e aguda nota. Ele adorava quando ela fazia aquilo, olhando nos olhos do público, fazendo cada um sentado ali sentir-se parte do acontecimento. O som parecia cortar os limites do corpo material e tocar diretamente na alma, acariciando-a e fazendo lágrimas brotar nos olhos mais sensíveis.

Mas, no meio daquele momento sublime, ao fitar um setor específico do salão, a voz foi subitamente cortada.

Um confuso sobressalto se passou pela platéia enquanto a cantora silenciava. Foi apenas um segundo, e a orquestra tentou manter o ritmo, sem desandar. Caterina tentou entrar de novo no compasso, mas sua voz veio vacilante, trêmula, sem nenhum resquício da magia anterior. Alguns olhares de estranhamento foram trocados entre os que já conheciam a garota. Franz, sentado na frente e com olhar atento, percebeu que ela estava pálida, as pernas tremiam. Temeu que ela fosse desmaiar. Mas, antes que isso pudesse acontecer, Caterina se retirou do palco com passos vacilantes.

O homem se ergueu junto com o murmúrio da multidão. Ele caminhou rapidamente para os bastidores, acompanhado por Shaprov. Em segundos estavam diante da porta da pequena saleta onde a soprano se arrumava. Porta trancada.

- Caterina? - Franz falou.

Sem resposta. Mas ele pôde ouvir movimentos nervosos do outro lado.

- Caterina, abra a porta. O que aconteceu?

Ela tentou falar algo, mas as poucas palavras saíram desconexas. Sua garganta estava travada de nervosismo. Franz sussurrou para o companheiro:

- Vá para o palco e diga que Caterina está mal e não poderá continuar a apresentação. Diga que ela estava doente e tentou fazer o possível, mas não poderia concluir o espetáculo. Devolva o valor dos ingressos de todos e peça mil desculpas.

Shaprov anuiu e se retirou. Era ruim para o teatro, mas eram contingências que sempre podiam ocorrer. Franz bateu de forma leve na porta, falando em tom suave.

- Caterina, por favor, me responda... Só quero saber se você está bem... E outra hora podemos conversar a respeito, se você preferir...

Após alguns segundos de hesitação do outro lado, a chave girou na fechadura. Franz entrou no camarim e voltou a trancar a porta. Caterina estava sentada em uma poltrona, tentando acalmar a respiração, algumas lágrimas borrando a maquiagem. O homem puxou a cadeira em frente ao espelho e se sentou, apenas esperando em silêncio.

Depois de alguns minutos, as expirações da jovem desaceleraram. Ela conseguiu murmurar:

- M... me desculpe...

O homem balançou a cabeça paternalmente. Conheciam-se há menos de três meses, mas já havia uma grande intimidade entre os dois.

- Esqueça, querida. Consegue me dizer agora o que aconteceu?

- Eu o vi... Ele estava lá, me olhando...

- Na platéia? Quem?

- Eu nunca achei que ele me encontraria tão rápido...

- Encontraria... você? Quem estava lá, Caterina?

Ela suspirou profundamente. Fitou Franz, talvez pensando se poderia confiar naquele homem que conhecera recentemente. Por fim, soltou a respiração, bufando, decidida a descarregar toda a angústia.

- Nunca lhe disse por que saí da Romênia, não é?

- Não exatamente. Tudo o que sei é que você não tinha muitos laços a prendê-la lá. É natural uma menina com dons artísticos vir desenvolver suas habilidades em Praga.

- Eu adoro cantar, e talvez viesse para cá em algum momento por esse motivo. Mas eu saí de lá por um motivo maior, e nem remotamente tão bom quanto aquele...

* * *

"Nunca conheci meu pai, mas minha mãe é casada com um homem que me respeitava e supria minhas necessidades materiais. Eu estudava música na Carpátia e já fazia algumas apresentações, para treinar e levantar um dinheiro próprio. Assim que eu tivesse uma boa quantia guardada, poderia pensar em sair e cursar uma universidade de grande porte. Mas então eu conheci Ilie Danescu."

"Ele era o diretor do teatro da cidade. Você sabe, uma cidade pequena não possui muitos espaços desse tipo... Então, quem tem ambições artísticas inevitavelmente passa por lá. Não é como numa capital cultural como a sua..."

Ela acrescentou:

- Tampouco os diretos são tão gentis...

Franz apenas deu um sorriso.

"Comecei a cantar lá há cerca de três anos. No começo, eu mal via Ilie. Ele era funcionário público, e não daqueles que gostam de ficar lidando com gente pequena. Ele também não tinha nenhum interesse pela arte, não sei quem deve ter ofendido para ser colocado naquela posição. Mas, não fazendo nada de bom, ao menos não fazia nada de mal, pois tinha outros negócios com o qual se preocupar. E a vida artística seguia morna como sempre na cidade."

"Depois de mais ou menos um ano, Ilie resolveu assistir uma peça que estávamos apresentando. Acho que ele estava querendo impressionar alguma acompanhante ou algo do tipo, dando aquela demonstração de 'culturalidade'. Mas, no momento em que comecei a cantar, senti seus olhos caírem em mim. E não desgrudaram até o final da apresentação. Ele foi um dos que aplaudiu com maior entusiasmo, pouco ligando para a sua acompanhante. Depois daquele momento, eu passei a vê-lo em todas as peças onde eu estava."

"Ao mesmo tempo, ele passou a se interessar muito, aparentemente, pela minha carreira. Falou que eu tinha um futuro brilhante. Que seria a nova diva da ópera. Recomendou que os melhores professores dessem atenção especial para mim. Suspeito até que mexeu os pauzinhos para que eu sempre tivesse um destaque maior do que deveria, o que causou um pouco de inveja em algumas colegas."

"No começo, eu gostei, é claro. Qual a menina que não gosta de ser lisonjeada por suas habilidades naquilo que gosta de fazer? E sempre é bom ter amigos em um nível superior, abre muitas portas..."

Ela teve que parar nesse ponto, engolindo em seco.

- Mas... - incentivou Franz.

"Mas... Logo percebi que o interesse de Ilie não era apenas em minha música... Ele parecia estar querendo avançar algum sinal, mas sempre se continha o bastante para não me assustar. Não posso dizer que ele tenha sido perverso, no começo. Mas esse tipo de... desejo... cresce de modo assustador caso fique latejando, sem nunca ser sanado... Eu não me sentia mais confortável em qualquer situação em que me encontrasse sozinha com ele."

"Conforme o tempo passava, a situação ficava mais constrangedora. Comecei a ouvir rumores, gente falando besteira, e alguns sugerindo que ele estava ficando obcecado por mim... De desconfortável, passei a temerosa. Comecei a ter medo dele, mas, ao mesmo tempo, não podia largar aquele mundo, que era tão importante para mim."

Nova pausa. Agora os olhos começavam a ficar marejados.

- Caterina... Eu sei que é difícil... Mas eu preciso saber... O que aconteceu?

- Uma noite teria que acontecer... e aconteceu... há cerca de dez meses...

Ela olhou para o teto, fungando. Apertou as mãos uma conta a outra.

- Não há muito o que falar... Era uma noite em que eu fiquei ensaiando até tarde. Ele deu um jeito de dispensar os outros e deixar o teatro vazio. E então foi ao meu encontro... e...

Franz colocou os ombros na mão da menina, que tremia.

- Caterina... o que ele fez com você?

- Nada... Felizmente... Quero dizer... Ele me atacou, mas eu consegui escapar a tempo, não sem antes ele me machucar... Mas ele não conseguiu nada... a mais...

Franz assentiu, aliviado.

"Mas não tinha como eu permanecer no teatro. Nunca mais botei os pés lá, tentando desaparecer da vista dele. Entretanto, ele não desistiu. Ficou louco e começou a me procurar em todos os lugares, até em casa ele esteve um dia, e meu padrasto não o expulsou porque nada sabia. Contei o ocorrido apenas para minha mãe, que ficou muito preocupada e disse para contarmos à polícia, o que fizemos. Mas ele é um homem importante, com dinheiro e influência política. Em uma cidade pequena, a lei pesa menos do que a influência pessoal..."

"Eu decidi então que não tinha mais porque permanecer ali. Não podia estudar o que amava, e não podia me sentir segura. Era o momento de dar um passo adiante. Juntei o que tinha de dinheiro guardado, peguei o que mais minha mãe conseguiu juntar, e parti. Fiquei por algum tempo em Bucareste, mas fiquei sabendo pela minha mãe que Ilie enlouquecera completamente e quisera saber de todas as maneiras para onde sua 'menina-prodígio' havia ido. Felizmente meu padrasto não sabia onde eu estava, e tratou de escorraça-lo de casa quando forçou a barra com minha mãe."

"Eu não podia me sentir segura ali, então decidi ir para mais longe. E onde melhor do que a capital cultural de Praga para uma aspirante a cantora? Deste modo, eu colocava dois países de distância entre eu e Ilie. E, em muito pouco tempo, pude começar a ser feliz aqui..."

- Até... hoje...

E parou de vez, lágrimas correndo pelo rosto.

O silêncio permaneceu pesado na sala, enquanto Franz digeria a história que acabara de escutar. Não imaginava que, por trás daquela garota sorridente, houvesse uma história dessas, tão recente. Ficou fascinado pela força de Caterina, para tomar decisões corajosas e enfrentar situações que fariam muitas moças do interior apenas chorar impotentemente.

Naquele momento, porém, era o que ela fazia.

Ele deslizou a mão pela face da menina, secando as lágrimas. Um outro pensamento insidioso acometeu-lhe, de repente. Não estava ele seguindo o mesmo caminho de Ilie? Não ficara fascinado pela moça e seu cantar na primeira audição? Estremeceu levemente ao lembrar como fora arrebatado pela voz da menina, de modo instantâneo e quase sobrenatural. Não poderia ele seguir o mesmo caminho do outro?

Tentou esquecer isso e aliviar o clima:

- Pelo menos aqui em Praga você viu que nem todos os diretores de teatro são malucos, não?

Ela deu uma risada nervosa.

- Sim, pelo menos... Muito pelo contrário, na verdade. Tive a sorte de encontrar um em quem posso confiar, e que me acolheu como se eu fosse sua própria filha...

"Sim", pensou Franz. "Um quarentão sem filhos e uma menina que nunca teve pai. Não é inesperado o carinho que sentimos um pelo o outro. Essa é a diferença entre eu e Ilie. Não pode ser outra coisa... certo?"

- Sim, Caterina. Eu já lhe considero como se fosse parte da minha família.

E os dois se aproximaram em um longo e apertado abraço. O homem sentiu certo desconforto pela sua reação ao toque, mas ela pareceu não ter notado. Ele encerrou o abraço antes de pensar em mais qualquer coisa.

- E agora, vamos fazer o seguinte, querida... Eu lhe levarei e buscarei em casa todos os dias em que você precisar vir ao teatro. De resto, apenas fique muito atenta. Praga é muito maior que sua pequena cidade, não será fácil ele encontrá-la por aqui. Você tem um retrato daquele homem?

- Devo ter, em alguma foto com o pessoal do teatro.

- Me passe ele que mandarei o pessoal daqui ficar atento na próxima apresentação, mas não mencionarei que é um problema com você. Se ele der as caras de novo, vamos chutá-lo para fora daqui para nunca mais voltar. E, se ele insistir, iremos à polícia. Aqui ele não terá a mínima influência.

Ela anuiu, mais calma. Só pôde abraçar novamente ao homem, murmurando:

- E Franz... Muito obrigado...

* * *

A nova apresentação não demorou a chegar. Como a última "Rusalka" fora suspensa no início por um problema de saúde da protagonista, o Teatro Rilke marcou uma nova data, duas semanas depois. O público manteve-se bom, pois muitos dos recém-admiradores estavam curiosos para saber o que havia acontecido e se a sua soprano favorita voltaria a apresentar-se com o mesmo vigor.

Franz e Shaprov assumiram seu lugar costumeiro, discutindo em voz baixa a possível situação a ocorrer na noite. O auxiliar era o único que sabia quase toda a história, apenas sem os detalhes.

- Poderíamos dar-lhe uma surra fenomenal e jogar o corpo no Vlatva.

- Shaprov! Não somos esse tipo de gente. E, ademais, se uma simples intimidação não o afastar, a polícia certamente o fará.

- Cuidado. Se a história que ela contou é verdadeira, estamos lidando com um psicopata, não um simples maluco.

- Ele já foi longe demais vindo até aqui. Não lhe daremos muitas chances de ultrapassar limites, pode deixar. Mas não podemos fazer nenhum escândalo hoje e estragar mais uma apresentação de Caterina.

Um dos ajudantes chegou ao lado de Franz e sussurrou-lhe algo ao ouvido. Ele imediatamente se levantou.

- E ainda bem que o encontramos antes da peça começar.

Os dois homens foram até o lugar indicado pelo ajudante, acompanhados por dois seguranças internos. Estes permaneceram à distância, no fim do corredor, enquanto os outros se dirigiam à poltrona.

O homem sentado estava impecavelmente vestido. Sua aparência era de elegância e completa sobriedade. Porém, o olhar que dirigiu aos homens de pé foi disfarçadamente tenso. Franz falou de modo neutro:

- Senhor, queira acompanhar-nos, por favor.

Danescu titubeou, mas respondeu com um sorriso amarelo:

- Algum problema?

- Sim, senhor. Queira acompanhar-nos à recepção, por favor.

O homem ainda hesitava, indeciso entre obedecer ou não. As pessoas ao redor estavam se entreolhando, curiosas. Com a demora, Franz olhou para os seguranças, que deram os primeiros passos. O romeno percebeu e imediatamente se levantou, evitando chamar mais atenção indesejada.

- Como queiram, cavalheiros...

Foram juntos à portaria e, chegando lá, Danescu apressou o passo, indo direto para a saída. A um aviso de Shaprov, o segurança da portaria interveio, bloqueando a passagem. O homem agora dava sinais claros de nervosismo:

- O que é isso, eu poderia saber? Se não posso assistir, deixe-me sair!

O círculo se fechou mais sobre o homem. Franz checou rapidamente a portaria, para garantir que nenhum espectador curioso estivesse à vista. Falou, agora com uma voz ameaçadora:

- Escute aqui, seu filho da puta. Não finja que não sabe o que está acontecendo. Sei muito bem quem é você.

- Se sabe quem sou eu, então imagina o que pode acontecer se eu...

- Eu sei que você é alguma coisa numa cidadezinha de nada em um outro país. Aqui você não é merda nenhuma e ninguém vai dar a mínima para o que lhe acontecer. Só sei que não quero ver sua cara nunca mais no meu teatro e na minha cidade, então volte para sua toca e não saia mais de lá. Senão, lhe daremos uma surra e jogaremos sua carcaça para apodrecer no fundo do Vlatva!

Shaprov estava levemente surpreendido, e sorria. Poucas vezes ele ouvira o patrão falar daquele jeito, mesmo com os mais desastrados ou preguiçosos funcionários. Ele podia sentir a raiva por baixo de sua pele e pensava "o que uma mulher não faz com um homem...". O romeno sabia que não havia argumentação ali, deu as costas, preparando-se para sair.

Então Franz deixou o controle de lado e agarrou a camisa de Danescu, puxando-o pelo colarinho.

- E se você se atrever a sequer se aproximar de Caterina... Então eu vou atrás de você, não importa onde você esteja, e você vai pagar por tudo o que fez com a menina!

A expressão do romeno, nesse momento, passou de pavor a uma certa ironia entristecida.

- Sim, eu sei o que é isso... É o que eu sinto agora... A vadia é uma bruxa... E vai enfeitiçá-lo também...

Franz bufava e tremia de raiva agora, mas o outro não parava.

- Livre-se dela enquanto puder... E a devolva para mim... Eu a levo de volta para casa... e cuido bem dela, pode deixar...

O punho do diretor fez uma rápida viagem à boca que sibilava, arrancando sangue de ambos. Agora era demais: Shaprov separou-os e mandou os seguranças jogarem o romeno ferido para a rua.

- Que droga foi aquela, Franz? Não era só para intimidar o homem?

- Ele não deveria falar daquele jeito da menina...

- Relaxe e se acalme! Sou quase capaz de acreditar que a menina lhe enfeitiçou mesmo...

O olhar do outro fez Shaprov mudar de rumo.

- Certo, certo, desculpe. Resolvemos nosso problema maior. Agora se recomponha e vamos lá aproveitar o espetáculo, hein?

"Sim, vamos aproveitar o espetáculo. Terá Caterina notado alguma coisa do que aconteceu?"

Tivesse ou não notado, não demonstrava nenhum sinal. A ópera já tinha começado, e Caterina estava cantando normalmente. O diretor imediatamente sentiu-se tranquilizado, novamente admirando a força da garota. Mesmo com a tensão que permeava a noite, ela se superava e mostrava seu melhor desempenho até agora. E novamente conquistando corações.

* * *

Nunca mais ouviram falar de Ilie Danescu, fosse por realmente ter se intimidado e ido embora, ou qualquer outro motivo ("Será que ele foi nadar no Vlatva?' brincava Shaprov). Caterina pôde continuar sua vida tranqüilamente junto ao Teatro Rilke. "O Diabo e Kate" estreou com uma boa aceitação. A garota já tinha uma certa fama local e começava a aprecia-la, agora que não temia ser encontrada. Sabia que tinha um protetor dedicado, o real pai que nunca teve, pronto para dar-lhe apoio naquilo que precisasse. Perguntada sobre seu desejo de apresentações em palcos maiores e, quem sabe, outros países, ela apenas respondia que por enquanto ainda queria ficar com a "família".

O Teatro que não poderia reclamar. As apresentações de Caterina tinham atraído um novo público ao estabelecimento e aproveitavam para freqüentar outros tipos de apresentação. Novos artistas surgiam para oferecer seus espetáculos. Cogitou-se inclusive mudar o nome Para Teatro Rilke-Dvořák, tornando-o uma referência ainda maior nas obras do mestre, mas os idosos proprietários ainda resistiam a mexer nas tradições. A proposta de Franz de alterá-lo para Dvořák-Ionescu foi recebida com incredulidade, e declinaram veementemente dizendo que era ridículo considerar tão cedo a garota parte da história do teatro.

Inabalado, Franz seguia em uma felicidade praticamente constante. Era excelente ver o teatro evoluindo, novos artistas aparecendo, os investimentos na decoração e melhorias se tornando possíveis. Se fosse mantido aquele ritmo, em breve poderiam fazer uma grande reforma no estabelecimento, como não era feito há mais de três décadas, ampliando sua capacidade e modernizando-o, mas sem tirar a atmosfera clássica que era um de seus atrativos.

Sua empolgação com o teatro era tanta que pouca atenção ele dava aos boatos maldosos sobre sua relação com a garota. Estava claro, ele sabia, que sua relação era paternal e tutorial. Mas sempre havia os faladores de plantão, que acabavam por influenciar até sua mulher. Esta dizia que ele passava tempo demais com a menina, ao qual ele respondia que era uma forma de acompanhar e incentivar o nascimento de uma estrela, como ele faria se fosse sua filha. "Por que você nunca quis ter filhos comigo, então?", ao passo que ele ria e desconversava, "Bem, eu não tive que acordar de madrugada para trocar as fraldas dela, tive?".

* * *

Seis meses haviam se passado desde o incidente com Ilie. Caterina estava no palco, encerrando um ensaio para "O Diabo e Kate", com a orquestra ajustando alguns defeitos menores percebidos na última apresentação, quando Franz foi encontrá-la no palco.

- Tudo em cima para a próxima apresentação, Cate?

Ele usava este apelido agora, e ambos concordavam que era um trocadilho divertido com o nome da última ópera.

- Acredito que sim, Franz. Os músicos e outros cantores estão muito bem afinados agora.

- Muito bom. Escute, agora que vocês encerraram, eu gostaria de lhe mostrar uma coisa especial.

Já era noite e os outros instrumentistas se retiraram, deixando apenas os dois acompanhados do piano e um salão vazio.

- Daqui a dois meses você estará completando um ano de apresentações conosco, e, para celebrar isso, pensei que poderíamos acrescentar um pequeno número à apresentação que será feita naquele período.

- Ah, é? Parece uma idéia legal. O que temos?

- Fiz uma adaptação de um trecho do "Concerto para Violoncelo em Lá Menor", na versão original acompanhada por piano. Pensei que ficaria interessante se tocado apenas com piano e a voz, cantando uma letra e fazendo a linha melódica do violoncelo.

Caterina arregalou os olhos, encantada.

- Você escreveu essa adaptação... e essa letra... apenas para mim?

Ele respondeu com um sorriso e um dar de ombros.

- Que lindo, Franz... Deve ter dado muito trabalho...

- Ah, gastei algumas noites em cima disso, mas acredito que valeu a pena.

- E as partes do piano?

- Eu mesmo farei, seremos apenas os dois no palco. Quer tentar?

- É claro!

Franz deu à garota a partitura com as linhas vocais e a letra, e tomou seu lugar no piano. Começaram de modo vacilante, mas logo encontrando uma sincronia musical que poucas duplas conseguiriam alcançar, mesmo após anos de treinamento.

Franz fazia as notas soarem do piano, as melodias sempre sagazes e características de Dvořák, enquanto a voz de Caterine mostrava um alcance e timbre de fazer inveja até a um legítimo Stradivarius. A música fluía dos dedos do homem e dos pulmões da mulher, derramando-se pelo ar do salão e enchendo-o de beleza quase mágica. As próprias paredes e poltronas, se pudessem fazê-lo, teriam chorado e aplaudido àquelas horas em que os dois repetiam e repetiam a obra, cada vez mais próximos da perfeição, como se estivessem ensaiando há anos, décadas, séculos de companheirismo e intimidade, aquela que apenas almas gêmeas podem alcançar, em comunhão espiritual pelo divino meio da música.

Quando se deram por encerrados, já era alta noite, e ambos permaneciam em suave êxtase pelo encanto do momento, que a tudo permeava. Caterine foi quem falou, quase às lágrimas:

- Franz... eu queria realmente agradecer... por esta canção... pelo espaço em seu coração... por tudo... você é muito importante para mim.

- Sim, Cate. E você o é para mim. Sabe o que eu sinto por você...

- Sim, eu sei.. pai...

- ... filha...

Se abraçaram no palco, um abraço firme, carinhoso, apertado e demorado, do tipo que quebra as barreiras do tempo e fazem os segundos se esticarem até o tamanho de horas.

E então Franz tentou beijá-la.

Ela se afastou ao sentir o contato dos lábios dele. Abriu os braços e se desenvencilhou.

Um instante de quietude quase sepulcral.

- Franz... O que... foi... isso?...

O homem estava atordoado.

- E-eu não sei... desculpe, eu...

Não sabia o que dizer. "Eu fiz o que sempre deveria ter feito!", sua mente berrou, em uma revelação para si próprio. Ele tentou encontrar as palavras, que lhe fugiam em meio à vergonha.

- Há muito tempo que... eu... percebi que...

- Percebeu o que, Franz? - a voz dela também vacilava, mas escondia alguma mescla de emoções que ele não conseguia decifrar. Decepção... receio... desprezo... ironia...?

- Eu achei... que você também...

Balbuciou alguma coisa ininteligível e se calou. Sentia a garganta tremer.

- Não posso... - ela murmurou

- O que você disse?

- Eu não posso... - falou mais alto.

- Não pode o que, Cate?

Ela balançou a cabeça, erguendo as sobrancelhas, como que se desculpando.

- Eu não posso mais ficar aqui.

- Como assim?! - foi a pergunta desesperada. Mas ela já se voltava para sair.

- Aconteceu de novo, Franz. Eu não posso mais ficar aqui.

- Cate!

Ele avançou e segurou-a pelo braço.

- Deixe-me ir, Franz! Chegou a hora de ir...

- Não!

Sua resposta foi furiosa. Ele apertou o braço.

- Você não vai ir embora... Não agora... Não depois de tudo... Diabos, Caterina, eu te amo!

- Não, Franz! Você não me ama... Você ama a minha voz!

Ele congelou por um instante. Mas não largou o braço dela.

- Cate... É claro que não... Eu... eu... eu amo você!

A jovem fitou-o com um olhar raivoso:

- Era o que ele também dizia... mas daquela vez eu acreditei... até perceber a verdade...

- Ele? Ele quem, mulher?

- ILIE!!

O assombro e a raiva cresceram na alma do homem. Ele apertou com força e chacoalhou-a enquanto gritava.

- Ilie?... ele... e você... por que você não me contou? Por que mentiu para mim?

- Franz, você está me machucando!

- Você... você fez comigo... o mesmo que fez com ele! Sua... sua...

- Me largue agora!

Ele respondeu ao comando sem ao menos perceber. Ela aproveitou para se soltar e tentar fugir. Ele teve a impressão de ouvir uma leve aragem em seu ouvido, como o sussurro de um homem morto, dizendo-lhe "não a deixe escapar desta vez". Gritando, agarrou-a pelas costas e derrubou-a no chão, apertando seu pescoço.

- Sua bruxa! Você me enfeitiçou também! Me deixou cego para todo o resto, como um idiota!

Ela tentava arranhá-lo para se soltar, com a respiração presa, tentando articular algumas palavras:

- M... mme... ssol...

- Cale a boca!

E socou-a com força no rosto. O nariz espirrou em vermelho, manchando a madeira do palco. Ele bateu duas, três, cinco vezes, cada vez com maior força. Quando ela parou completamente de se mexer, ele a largou, sangue no rosto dela, nas suas roupas, pelo chão. Só então sua consciência emergiu da névoa rubra da violência.

- Oh, Deus...

"O que eu fiz?"

- Oh, meu Deus, Cate...

Caiu em cima de seu corpo, chorando com as mãos ensangüentadas. Como ele fora capaz de fazer aquilo? Ainda mais com a mulher que amava? Que tipo de monstro ele havia se tornado?

Mas não tinha muito tempo para chorar. Não era apenas com arrependimento que ele teria que lidar. Ele não era assassino, não sabia como agir. O que uma pessoa normal faria? Ele fez a única coisa que poderia. Pegou o celular e morosamente teclou o número do único que poderia ajudá-lo neste momento.

- Shaprov... Desculpe ligar a essa hora... Mas aconteceu uma coisa... Pode vir para o teatro agora... por favor...

O ajudante chegou e quase enlouqueceu com o que viu. Mas, vendo o estado do amigo, não pôde deixar de se condoer. Sabia que ele, em condições normais, naturais, jamais teria feito aquilo com pessoa alguma. Esperava que agora pudesse renascer um Franz Dvořák Rilke que ele tinha visto desaparecer há dez meses atrás.

Tomando a iniciativa e auxiliado por um companheiro em estupor, Shaprov arrumou a situação do melhor modo possível. Também não era nenhum assassino, mas ao menos assistia a filmes policiais. Limparam o palco com todos os produtos de limpeza que puderam encontrar. Embrulharam o corpo de Caterina em um velho pano de decoração e colocaram-no no porta-malas do carro. Enquanto dirigia, Shaprov, mesmo ainda desconcertado, não conseguia tirar da cabeça a ironia suprema da situação.

Uma vez que, após se afastarem uma longa distância da cidade, chegaram a uma ponte e, finalmente, um corpo encontrou o Vlatva.

* * *

O desaparecimento da jovem soprano foi recebido com certa comoção no meio artístico de Praga. Shaprov corroborou a versão de que havia se encontrado com Franz e Caterine na saída do ensaio daquele dia e ido com o amigo tomar um drinque, enquanto a garota voltava sozinha para casa, o que fazia ocasionalmente desde que Ilie se fora. Com o depoimento dos seguranças, foi fácil colocar o romeno como principal suspeito pelo desaparecimento. Ninguém poderia duvidar da situação arrasada de Franz pela perda de sua protegida, é claro, mas ele também foi colocado sob suspeita. Porém, a garota era uma estrangeira sem amigos nem família próxima e há pouco tempo no país. Não seria uma busca especialmente enérgica, nem um inquérito particularmente dedicado.

Franz, entretanto, não conseguiu se recuperar totalmente do acontecimento. Todos achavam natural o seu abatimento nas semanas que se seguiram, já que, fosse como filha ou algo mais, era inegável a conexão entre os dois. Só Shaprov sabia que o caso era bem mais complexo. Mas nem ele tinha noção do quanto o espírito do homem havia se esfacelado. Amar nunca é fácil. Matar, menos ainda. E para quem mata a pessoa amada...

* * *

Em uma noite qualquer, o homem cambaleava pelo teatro à noite, acompanhado apenas de uma garrafa de Becherovka pura, quase vazia. Caminhando tropegamente por entre fileiras de poltronas, ele tropeçava, caía e se erguia. Sentou-se na sua poltrona costumeira, na primeira fileira, de onde havia assistido tantos espetáculos em sua vida. Quantas apresentações dela ele havia visto mesmo? Oito? Dez? Tinha certeza de que não foram mais do que uma dúzia, mas, na sua cabeça, pareciam centenas. E ele poderia assistir a mais milhares.

Ergueu-se com dificuldade, escalando de modo sofrível o palco. Arrastou-se sobre a madeira, tentando chegar até o antigo piano, que raramente era retirado aos bastidores. Conseguiu sentar na banqueta. Ao colocar a garrafa sobre o instrumento, esta tombou, derramando o licor pela superfície imaculada. Ele murmurou alguma imprecação e deixou a cabeça cair sobre o tampo.

Entorpecido e letárgico, quase como num sonho, seus dedos começaram a apertar algumas teclas. Sons descoordenados vibraram nas cordas, mas logo tomaram forma e adquiriam um padrão. Ele não conseguia parar de pensar nas ironias de toda aquela história, se era uma tragédia ou comédia, então por que não adicionar mais uma e tocar a canção que apenas os dois haviam dividido, em uma noite deslocada do tempo e do espaço, transitando entre os reinos da magia e da morte? Ele sorria e, enquanto sorria, seus olhos marejavam, era quase como se conseguisse ouvir a sua voz lhe acompanhando...

E ele não ouvia sua voz lhe acompanhando?

Era como uma leve aragem agitando seus tímpanos, um sopro de musa no limite da audição. Conforme ele tentava escutar, o som parecia lhe escapar da percepção, fugindo hesitante à sua aproximação. Mas, conforme a música avançava, ele se tornava mais forte.

Sim, era a voz dela, não havia como negar.

Ele jamais poderia confundir aquele doce trinado de sereia, que agora voltava a lhe inundar os ouvidos. Mas havia um toque diferente no que ele escutava agora. Era uma profunda nota de melancolia e tristeza, que descompassou da música conforme se avolumava. Ele parou de tocar o piano e ergueu a cabeça, não sabendo se eram os olhos embaçados pelo álcool que lhe faziam ver aquela nebulosidade espectral que preenchia o palco, uma luz desprovida de cor e origem, mas que permeava o ar ao seu redor. Mais do que isso, ela parecia tomar formas, contornos que só uma mente insana ou drogada poderia interpretar. E, conforme surgiam as formas, surgiam novas vozes a acompanhar o cantar de sua Rusalka perdida. As vozes se ergueram num coro diáfano, em uma melodia que agora ele podia reconhecer. Era o "Réquiem" de Dvořák, preenchido por uma tristeza capaz de atravessar era e fazer deuses e demônios prantearem. Sob o centro do palco, uma das formas ondulava sobre uma mancha no palco, uma mácula que ele sabia que produto algum poderia limpar. Então ele colocou as mãos no rosto e chorou copiosamente, invadido pelo lamento da música e sua própria danação.

Pois, assim como ela estava presa àquele chão para todo o sempre, ele sabia que sua alma também estaria acorrentado ao seu sangue, e de lá não haveria de se erguer - nunca mais...