segunda-feira, 27 de abril de 2009

VOTAÇÃO - CONTINUAÇÃO DE UM CONTO

Leia, vote, participe.

* Esta votação vai até o dia 30/04/09.

INVISÍVEL II

Algum tempo se passou desde a última vez que Mica foi visitar o seu tatuador predileto. Ela já não era mais uma menininha e nem tampouco imaculada. Mas ainda tinha a mesma pele alva e sem manchas de anos anteriores. Embora gostasse mesmo de sentir as agulhas cravadas em sua derme, criando e recriando imagens visíveis apenas por alguns instantes em meio ao sangue que vertia do seu próprio corpo, agora ela sentia necessidade da tinta.

Seria uma quebra de seus próprios paradigmas e não queria que fosse algo pequeno. Ouvia comentários de tatuados com a expressão “fechar as costas” e, por um momento, pensou que esse fosse o caminho. Uma mulher com a pele macia, clara e sem uma mancha sequer, mas com um segredo a revelar tão logo fosse despida. A ideia não foi levada adiante, pois se as costas estivessem todas tomadas pela tinta, não poderia usar roupas que deixassem os ombros à mostra, e ela sabia que isso era algo que não poderia abrir mão.

Ligou para Denis marcando o horário. Em meio a sua agenda repleta de compromissos profissionais não havia mais aquela folga toda após as aulas, como na época em que ainda era uma jovem estudante. Mas ela ainda lembrava o caminho para sua diversão predileta de anos atrás.

- Oi, Mica. Quanto tempo, hein?!
- Pois é. O tempo hoje em dia está cada vez mais escasso.
- Já tem algo em mente pra hoje?
- Sim, hoje vou querer com tinta.

Denis parecia perturbado. Aquele desejo súbito por marcar a pela com tinta era algo que não esperava de sua cliente. Não daquela cliente, pelo menos. Mas, mesmo visivelmente desapontado, foi preparar os materiais.

- Sabe de uma coisa, Denis. Vamos fazer do jeito de sempre. Mas hoje quero fechar as costas.

Denis tornou a sorrir.

Invisível

Quando ela saiu, ele arrumou os apetrechos deixados sobre a mesa. Limpou a máquina, retirou a agulha e recolheu os pedaços de gaze ainda úmidos de sangue. Foi até a porta de vidro e trancou-a, fechando as cortinas por detrás, sem esperar por mais clientes durante a tarde. De volta ao estúdio, Denis pegou a máquina fotográfica, discretamente apoiada ao lado do grande espelho. Deixava suas mãos tremerem visivelmente agora: fazia muito tempo...

Apagou a luz e foi para trás da cortina, onde apenas a tela de um laptop brilhava sobre uma mesinha. Encaixou os fios e deixou os dados fluírem entre as máquinas. Sentado no escuro, ele aguardava, enquanto encostava as gazes no rosto e aspirava o aroma do sangue coagulado. Tendo baixado o que queria, deixou o vídeo rodar várias vezes. Ali estava ele, acariciando suas coxas disfarçadamente enquanto trabalhava, observando sua deliciosa beleza juvenil enquanto ela se contorcia para enxergar seu trabalho. Ele tentava trabalhar o mais próximo possível, mas sem constranger a garota. Mesmo sob a máscara, sentia o cheiro forte de sua fertilidade, tão próxima, tão ao alcance... Ah, se não fosse pelas malditas luvas...

Masturbou-se violentamente, várias vezes, enquanto observava o vídeo. Ela tentava fitar o espelho e, quando o fazia, era quase como se estivesse olhando nos olhos da câmera. Olhos que, naquele momento, eram os seus. Sim, ele a teria... Em algum momento ela seria sua... Ele não sabia quando, nem como, mas em alguma de suas visitas ele fecharia as cortinas da porta de vidro e aquela alva pele seria o palco para outras artes.

Talvez ela se oferecesse abertamente, pois não era seu pêlo que se eriçava quando era tocada? Não percebia ele a rigidez dos bicos de seus seios por baixo das roupas? Mas Denis poderia obter o que queria por outros meios. Se ela fazia desenhos invisíveis, era porque os pais eram rígidos, e ele poderia fazer chantagem... Ou talvez tivesse que usar a força?.. Ele tentava espantar esses pensamentos perversos, mas tremia de pavor e excitação ao fantasiar a cena. Ainda tinha muito medo das conseqüências, mas uma hora ele mandaria tudo ao inferno. E então a teria... Ah, sim! Ele tornaria seu desejo visível e a teria, toda só para si...

domingo, 26 de abril de 2009

Eterna

- Tem certeza?
- Sim, já pensei bastante nisso.
- Mesmo?
- Mesmo.
- Mas por que a mudança?
- É hora de mudar. É hora de ser eterno.
- E se você se arrepender?
- Daí eu vou sempre olhar para ele e relembrar. E crescer.
-Acho estranho, você era diferente.
- Só por que não usava tintas? Era apenas mais uma que você tatuava.
- Mas era diferente, você era especial.
- E continuarei sendo. Mas agora serei especial de outra forma.
- E para outra pessoa.
- E para outra pessoa.

Foram as últimas palavras que trocaram antes do motor começar a vibrar as agulhas no ar. Na nuca da menina, um coração com as letras iniciais de seu nome e do nome do namorado. Uma tatuagem comum, normal. Mas para ele, aquela foi a tatuagem mais difícil de se fazer.

sábado, 25 de abril de 2009

Alegria, alegria

E ele acariciou a nuca dela, sem saber que a ponta dos seus dedos deslizava sobre a tristeza. Conseguia tocá-la.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Invisíveis

Estacionou a minivan francesa sob uma árvore em frente à boutique de roupas da moda. Conferiu a maquiagem no retrovisor interno. O batom cor de pêssego delineando os lábios, a sombra discreta num tom acobreado-esfumaçado, os olhos contornados pela delgada linha negra donde partiam os cílios alongados à rímel. Acionou o alarme sem olhar para trás enquanto os scarpins cor de areia iam pisando o branco e preto da calçada arborizada. Cruzou a rua no final da quadra e entrou no terreno de gramado bem cortado. A porta de vidro embaixo do letreiro em preto e prata do estúdio refletia os cabelos alourados em salão, o tailleur sobreposto a uma camisete branca, o pescoço envolto por duas voltas de ouro branco, a saia pouco acima dos joelhos revelando as pernas recém depiladas que terminavam nos calçados que já pisavam o capacho. A porta se abriu fazendo soar uma campainha eletrônica. Não demorou muito o homem saiu de trás da cortina, tirou a máscara do rosto para revelar um sorriso e disse:

— Bem no horário, Amanda. Só uns cinco minutos e já atendo você, tá?

Ela sorriu de volta em consentimento, cruzou devagar as pernas e pegou uma revista de tatuagens para folhear. A agulha se fez ruidosa do outro lado da cortina sobre a pele de algum desconhecido. Em pouco tempo silenciou. Mais uns minutos depois e o tatuador saiu de trás da cortina com um rapaz jovem de alargador na orelha e o pulso inchado por uma recém terminada tatuagem. O tatuador acompanhou o rapaz à porta, despediu-se e tornou a fechar a porta. Conferiu o relógio na parede e falou:

— Prontinho. Você é o último horário da manhã, o próximo cliente é só lá pelo meio-dia. Agora eu sou todo seu.

Ela sorriu sincera e se levantou, deixando a revista sobre a cadeira. Ele a acompanhou ao outro lado da cortina, logo depois de lançar um último olhar à porta.

Do outro lado da cortina, mais quadros na parede branca, com corpos coloridos em molduras minimalistas. A parede do fundo era de um tom berinjela, as laterais brancas e o piso preto brilhante como o da recepção. Um cabide aguardava num canto próximo à maca e um grande espelho ocupava parte da parede ao lado da mesma. A mulher pendurou o tailleur no cabide, ao que o espelho refletiu um decote revelador na camisete. Pelo reflexo ela pôde ver os braços decorados a envolverem e o rosto sorridente aparecer, por trás, ao lado do seu. Ela sorriu para si mesma. Virou-se e, num movimento rápido, foi colocada sentada sobre a maca. Sentiu a mão habilidosa subir-lhe pelas pernas lisas e pelas ânsias comprimidas no peito. Um punho agarrou-lhe a lingerie por entre as pernas e puxou-a junto com repreensões arraigadas, e entulhos de expectativas não cumpridas. Sentiu a saia subir-lhe ao ventre carente e ofereceu o peito aberto, amplo e leve a outro peito livre. Sentiu um coração bater contra o outro, como dois corações deveriam bater, deixou-se penetrar além da carne. Sentiu a agulha entrar e sair seguindo seu traçado, deixou-se possuir pela arte, pelo artista, por ela mesma. Lançou o corpo para trás e, com as costas sobre a maca, pode ver-se no espelho, de ponta cabeça, os cabelos louros pendurados e o corpo seguro por braços de um colorido bonito. Viu-se sorrir um sorriso pêssego.

Fechou o botão aberto da camisete ajeitando a corrente de ouro branco. Conferiu a aparência no espelho e observou as marcas que ninguém via. Invisíveis, mas mais coloridas que os corpos na parede, mais brilhantes, mais vistosas. Olhou para o homem que retornava do banheiro, sorriu menina e fez um tchauzinho com a mão, depois de assoprar um beijo. Saiu pela porta de vidro pelas calçadas branquepretas sem olhar para trás.

O homem conferiu o relógio. Em meia hora arrumou o estúdio, higienizou todo o lugar, conferiu a agenda. Logo a menina estranha chegaria. Ele gostava dela. Garota bacana. Michaela – 12h15. Ouviu a porta abrindo e saiu de trás da cortina.

— Oi, Mica! Quanto tempo! Bem no horário.
— Oi, Denis. Ainda lembra de mim?

A única menina que ele conheceu ou ouvir falar que fazia tatuagens sem tinta. Assim, a sessão não demorou. Em duas horas a cliente olhava-se no espelho, com a saia levemente levantada. A menina pagou o tatuador, despediu-se com um beijo no rosto, e saiu feliz com a saia balançando pela calçada e os cabelos achocolatados vivos sob o sol. Percorreu as quadras até o prédio onde morava, cumprimentou o porteiro simpático e entrou no elevador no térreo. Apertou o botão do décimo primeiro andar e o aparelho se pôs em movimento. No display escuro apareceu em vermelho a sigla “G1”. A porta se abriu e a garota ruborizou-se à visão da mãe. A mulher hesitou por um instante e logo entrou no elevador.

— Oi, fofinha. Como foi lá na Renata?
— Tudo bem — Respondeu a menina com um sorriso franco.

As duas olharam para a frente e viram, no espelho do elevador, dois sorrisos largos refletidos. Um vestido de saia de pregas e uniforme escolar; outro de tailleur, ouro branco e lábios de pêssego.

No espelho do estúdio, o homem se perguntava que tatuador que se preza teria as duas clientes mais fiéis sem uma marca sequer no corpo. “Tatuador de bosta”, pensou divertido rindo pra si mesmo.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Tema da Rodada

O tema da rodada será "Continuação de um conto". Para tanto os duelistas terão, até o dia 26, que criar uma continuação (tomem a palavra como lhes convier) do conto vencedor da última rodada. Neste caso, o conto "Invisível".

Bola pra frente.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Votação

Está aberta a votação para os textos com o tema Tatuagem.

Coloque sua opinião neste tópico até o dia 20 de abril, segunda-feira.

Cicatriz

Em um impetuoso movimento, ele desenhou seu nome no corpo. Muito mais do que cinco letras gravadas em tinta, era uma declaração de amor e união. Mostrou-lhe, e ela soltou um riso nervoso. Desconversou quando ele perguntou se ela não acharia romântico fazer o mesmo. Duas semanas depois, ela pedia para dar um tempo. Falou que não podia continuar enganando-o, fingindo que sentia um amor tão intenso quanto o dele. Ele se desesperou, chorou, seu mundo seguro e confortável ruiu. Tinha esquecido que, ao contrário de tatuagens gravadas na pele, as paixões nunca duram para sempre.

Sozinho e perdido, ele demorou a se adaptar à nova realidade. Tentou sobreviver em um mundo que lhe parecia pálido e cinzento, desprovido de sua tépida companhia. Buscou apoio nos amigos, mas sua companhia lhe parecia vazia e distante. Procurou o calor de outras mulheres, mas elas lhe pareciam geladas e banais. A presença dela estava em tudo, nos lençóis que outrora compartilhavam e nos versos das músicas que ouviam juntos. Ele tentou se livrar de tudo aquilo, mas não conseguiu atirar fora as lembranças. Tinha sentido que, assim como uma droga inebriante e pesada, as memórias só precisavam de um pequeno estopim para uma recaída.

Pois havia a tatuagem. As letras de seu nome lhe saltavam aos olhos todo dia no espelho. Ele passou a evitar fitá-la, mas não adiantou. Sua presença era sentida, como se queimasse na pele e na mente. O nome, e, trazida à tona pelo nome, a imagem. Não, ele não poderia conviver com aquilo. Sua libertação dependia do fim daquela marca. Então, em uma noite de desespero, ele virou uma garrafa de vodca e pegou uma navalha. Encostou-a na pele e pendeu a respiração. A lâmina deslizou, afundando com facilidade nas camadas mais profundas da pele, e ele quase trincou os dentes com a força que os cerrava. Com cada corte, lágrimas jorravam, lágrimas de dor, na pele e na alma. Cada pedaço de seu corpo lacerado era um pedaço de seu coração arrancado. Resistiu apenas até terminar o serviço, desmaiando e esperando o esquecimento definitivo.

Porém, este não veio, e ele acordou no dia seguinte. Fraco pela hemorragia e com a ferida infeccionada, mas ainda vivo. Aquilo lhe mostrou que, se o corpo poderia sobreviver a uma injúria daquelas, o espírito poderia continuar, mesmo alquebrado. Tentou seguir com sua vida em paz, escondendo de todos o local mutilado. Não precisava mais olhar para nenhuma reminiscência de tempos idos, e, com o passar do tempo, as lembranças dela foram lentamente se esvaindo. Mas seu coração jamais conseguiu bater novamente do mesmo modo. Ele tinha se livrado de tudo o que podia lhe lembrar dela, mas não conseguiu evitar a mácula em sua alma. Tinha percebido que, assim como uma tatuagem extirpada à força, deixando exposta uma marca que jamais se cura, nenhum amor verdadeiro abandonava o coração sem deixar uma eterna cicatriz.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Eternos

Olhava o casal apaixonado. Trocavam olhares, toques, sorrisos. Era um grande passo para eles, um dos mais importantes que já haviam tomado juntos. A menina, nervosa, mordia as pontas dos dedos enquanto esperava sua vez, olhando o rosto do namorado em busca de qualquer anúncio de dor. Ele disfarçava as fisgadas da agulha na pele, fingindo não sentir nada, para tranqüilizá-la.

Na hora de pintar a pele, puxou o traço do L bastante para a esquerda. Deixou a ponta elevada, renovando o formato do desenho. O U no final do nome recebeu um traço longo contínuo, que lembrava uma cauda de dragão que se enrascava pela batata da perna.

Nela, a mesma técnica. O acento no A ficou num ângulo que poderia ser perfeitamente utilizado para ser substituído por uma estrela no futuro. O F trazia um espiral que lembrava as tribais da moda, que com um pouco de cor poderia abrigar borboletas, fadas, o que quer que ela precisasse para superar o sofrimento do fim.

Eles eram só amores, só beijos, só carinhos. Ele se fazia de forte para tranquilizá-la, segurava sua mão sem apertar. Ela era só sorrisos, só rubores.

Mas ele já tinha visto essa mesma cena centenas de vezes. Já havia tatuado todos os nomes imagináveis. Amandas, Anas, Nathalias, Larissas, Alices, Marinas. Andrews, Marcelos, Brunos, Thiagos. Todos eles, relacionamentos eternos. “Eternos como uma tatuagem”, cada casal repetia, acreditando ser criativos e românticos.

Mal sabiam que ele, mais do que tatuar nomes, era um especialista em transformar Amandas em índias, Thiagos em borboletas, Anas em dragões, Marcelos em fadas, Marinas em magos medievais, Brunos em anjos. Assim como os romances são eternos como as tatuagens, eles podem ser pintados por cima, renovados, atualizados, trocados. Substituídos. Assim como as tatuagens.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Alegre

- Tristeza.
- Tristeza?
- Tristeza.
- Posso perguntar?
- Se eu não precisar responder.
- Pra que tatuar tristeza?
- ...
- A alegria não é bem mais bonita?
- ...
- Olha, moça, não acho legal ter pro resto da tua vida a tristeza marcada na pele.
- Não quer a grana? Posso atravessar a rua.
- Tá certo. Onde?

(...)

- O que significa?
- O que você acha?
- Ah, deve ser uma coisa importante pra você.
- Certamente.
- Alegria? Força? Coragem?
- Tudo isso.
- Num só símbolo?
- Tu vê, né. 

Representação

Ricardo folheava revistas. “Qual é o signo que me define como pessoa?”, questionava-se. Não encontrava nada até que botou os olhos no tradicional yin-yang. Ainda não era aquilo tudo, mas a ideia podia ser boa, afinal, era do equilíbrio daquela figura que surgiam as mutações. Ele definitivamente gostava do conceito de equilíbrio e não abriria mão de ter uma representação disso em seu próprio corpo. “Todo mundo tem tatuagem hoje em dia, por que não posso ter uma?”

O problema todo era definir o que seria tatuado e em qual parte do corpo. Jamais tatuaria o nome da namorada, como fez um velho amigo, ou dragões, lagartos, índios, como a maioria dos homens que conhecia. Resolveu criar um símbolo próprio. Seria marca registrada dele. A representação dele por ele mesmo. Esboçou vários desenhos abstratos até que se lembrou do yin-yang. “As mutações! Posso ter uma própria”. Rabiscou muito até chegar ao ponto que queria.

“É isso. Simplicidade, estética, significado”. Saiu correndo com o papel em mãos. Parou em frente à Casa do Tatuador, mas ainda não sabia qual seria a parte do corpo mais indicada. Bíceps? Antebraço? Costas? Áreas mais escondidas? Pensou muito até definir que faria a tatuagem no pulso. Seria seu mais novo relógio, para o resto da vida. Mostrou o desenho ao tatuador, sentou-se na cadeira e esperou o momento. “Malditas agulhas”, pensou em voz alta.

E fugiu...

terça-feira, 14 de abril de 2009

Invisível

O celular a acordou tocando uma música japonesa numa versão americana teen. Abriu os olhos levemente puxados de um castanho profundo e sonolento para ver, sobre a penteadeira, o uniforme passado e dobrado que a aguardava. A saia escura de pregas até os joelhos, a camisa branca de botões, as meias brancas acompanhando as sapatilhas pretas. Despiu o pijama e observou a pele alva e sem manchas no espelho. Quase imaculada, não fosse por uma minúscula espinha na testa, prontamente coberta com pomada. Vestiu-se olhando pela janela do décimo primeiro andar do edifício cor marfim a cidade abaixo dela, há muito acordada. Escovou os cabelos lisos cor de chocolate-quatro-ponto-sete-sete cortados à altura dos ombros e de franja impecável. Olhou-se novamente no espelho com um meio sorriso de contentamento, vendo a imagem do que a mãe categorizaria como “fofa”. Juntou os cadernos dentro da pasta a tiracolo e encontrou os pais para o café da manhã na cozinha branco-minimalista, com o sol filtrado pelo para-sol das janelas. Enquanto o pai lia o jornal do dia e a mãe via as notícias na tevê suspensa, comeu o mamão papaia descascado, tomou o iogurte com o cereal de marca e comeu meia fatia de pão de iogurte com manteiga light e geléia belga, terminando com o suco de laranja. Desceu os onze andares pelo elevador iluminado e sentou-se ao lado do pai no SUV alemão prateado. No rádio, as notícias relidas por um locutor traziam mais do mesmo outra vez. Despediu-se do pai com um beijo no rosto, saltou do carro parado em fila dupla na porta do colégio e entrou pelos portões alaranjados para as aulas do dia.

Sentou-se no mesmo lugar de sempre. Ouviu a mesma professora de toda segunda-feira. Naquela segunda, novamente, depois de já bastante tempo, olhava mais para o relógio do que para a professora. Os ponteiros dos segundos com dificuldade empurravam o dos minutos contra o irresoluto ponteiro menor. A perna saltitava num levantar-e-abaixar na ponta do pé. Rabiscava e desenhava na borda com caderno, com cuidado para não manchar a mão com tinta. Hoje queria a pele alva livre de qualquer mancha. No intervalo ligou do celular para a mãe, avisando que iria almoçar na casa da Renata. Não avisou Renata. Abriu a agenda e viu marcado o apontamento em caneta colorida: Denis - 12h15. Retornou à sala de aula para ver os ponteiros girarem sem saírem do lugar. E os professores, falando, fazerem o mesmo. Desfrutou do friozinho na barriga que não sentia há muito tempo. Não sentia, de fato, há muito tempo. Mas logo, assim que o relógio terminasse a última volta, mudaria isso de novo. O sinal soou avisando o fim das aulas e o início da correria do meio-dia. Os portões alaranjados vomitando infantes corredores nas calçadas, ruas, sinais, entre os carros parados em fila dupla de mães esperando os filhos que estavam recebendo alguma educação.

Saiu a passos rápidos. Seguiu pelas calçadas arborizadas com os cabelos achocolatados ao vento, a pele clara esquentando ao sol. Chegou ao estúdio às 12h13 e entrou rapidamente pela porta de vidro sob o letreiro preto e prata. As paredes brancas decoradas com certificados e fotos de corpos tatuados. Por trás de uma cortina saiu o homem sorridente em camisa sem manga e braços decorados.

— Oi, Mica! Quanto tempo! Bem no horário.
— Oi, Denis. Ainda lembra de mim? — perguntou sorrindo.
— Faz um tempo mas, dos meus clientes todos, de você eu não ia esquecer. —respondeu dividindo uma risada com ela.
— Ah, Denis, se todo mundo fosse igual não ia ter graça.
— O mesmo de sempre, então?
— Isso aí. Pode ser aqui na coxa, do lado de fora. — Ela disse, sentando na maca e levantando a saia que escondia a pela clara da perna jovem.
— Trouxe algum desenho de referência?
— Não, não. Hoje você pode ficar à vontade. Vou deixar o artista criar.

O tatuador ajustou as agulhas esterilizadas, já de luvas brancas, a máscara cobrindo a boca. Mesmo assim, pôde vê-lo sorrir com olhos quando disse “tem certeza que dessa vez não vai querer mesmo que eu use as tintas?” Ela sorriu de volta:

— Pode pôr esses potinhos pra lá! Você devia ficar feliz, ao menos economiza no material. Devia me fazer um desconto, isso sim!

Ele deu uma gargalhada e o zumbido da agulha soou metálico no estúdio. Ela franziu a testa aguardando a primeira estocada, prevendo a dor à qual nunca se acostumava.

A agulha se aproximou da pele macia. Se fosse possível observar de perto, seria possível ver o aço brilhante e delgado se aproximando veloz. Antes do toque, os mínimos pelos da coxa se eriçando, levantando guarda contra a lança tatuadora. Um arrepio percorreria a perna, galgando as costas, até erguer os cabelos da nuca. Só então a agulha tocaria a pele, que se curvaria para dentro oferecendo uma breve resistência que, logo após, cederia, rompendo-se e dando acesso à carne tenra escondida pela brancura. A agulha retornaria pelo mesmo caminho, batendo em retirada do orifício criado, deixando escapar em seu encalce um gota vermelha. Única tinta que mancharia a pela clara. Só aí um impulso percorreria a coxa que se contrairia, o sangue irrigando rápido, sob a pele, os vasos da região enquanto a agulha voltava a cargas por vezes e vezes seguidas, guiadas pelas mãos hábeis do tatuador. Tudo muito rápido. Valiosas frações de segundo.

O artista parava volta e meia para limpar uma área ou outra que estivesse sangrando, para deixar a cliente tomar um ar ou uma água, ou para fazer uma piadinha qualquer. Ela apreciava o momento. Observava de perto o trabalho quando conseguia, admirava o trocar de tom da perna. Via o desenho brotar-lhe pelos poros. Mordia o lábio quando a agulha tocava alguma área mais sensível, se segurava contorcendo-se de riso e dor. Xingou o tatuador duas vezes. Durante todo o trabalho tinha um espelho grande ao lado da maca para poder acompanhar o procedimento. Sem o uso de tintas, o trabalho foi rápido. Em duas horas havia terminado.

Levantou-se segurando a saia e olhou-se no espelho. Havia surgido algo sobre a pele imaculada, alva e sem manchas. Ainda um pouco inchado e manchado pelo pouco de sangue, mas bonito ainda assim. Sim, bonito. E ela sentira cada pequeno ponto. Cada linha, cada nuance. Em breve, invisível para os demais. Depois de um tempo, invisível mesmo para ela. Mas quando desaparecesse por completo dos olhos, ela sempre poderia retornar mais uma vez ao estúdio, se quisesse. Ela sentiria quando a hora chegasse outra vez.

domingo, 12 de abril de 2009

Tema

Vamos, então, a mais uma rodada.

O tema do texto é tatuagem. Sem contextos, formatos, visões. Confio na criatividade de vocês.

Textos postados até 16 de abril.

(Desculpem o atraso!)

terça-feira, 7 de abril de 2009

Votação - Conto do futuro

Está aberta a temporada de votos. Opa! Aqui não é espaço pra fazer graça.

Então está certo. Declaro aberta a votação para o tema conto do futuro.
Escolha o melhor texto e indique nos comentários deste tópico. Afinal, aqui o seu voto decide quem vai levar a rodada.

Grande abraço a todos.

Um breve relato histórico

Hoje nasce o primeiro filho de um de meus netos. Sou extremamente reticente em crer que serei bisavô, então fica difícil chamá-lo de bisneto. Parece que foi ontem que conheci a mãe dos meus filhos, mas na verdade já se passam exatos cinquenta anos. Naquela época ainda se fazia parto por cesariana. Aliás, geralmente optava por essa modalidade quem tinha dinheiro, o que dava uma boa vantagem a quem não tinha dinheiro pelo menos na hora de nascer. Eu estava falando de crianças. Elas são sempre muito engraçadas por sua curiosidade.

Certa vez, estava eu na casa de uma tia quando meu primo caçula pegou um disco de vinil e perguntou: “Mãe, o que é esse CD gigante?!”. Quem esperaria que hoje o CD não existe mais e ouvimos música em vinil novamente? Para muitos era impossível imaginar isso. Mais recentemente um de meus netos chegou em minha casa, olhou para a televisão e perguntou: “O que é essa corda atrás da TV, vô?” Ele se referia ao cabo de energia, que já deve ter virado peça de museu há cerca de vinte anos. Mas estas questões tecnológicas não são o mais importante. O mundo mudou mesmo é nas relações.

Há cinquenta anos as tendências de comportamento já davam demonstrações de que teríamos uma nova era pela frente. A banalização do divórcio foi só o começo. Em pouco tempo a estrutura familiar já nem lembrava aquela que conhecemos no final do século XX. Hoje temos as instituições completamente enfraquecidas a não ser pelo estado, que deu uma reviravolta surpreendente após o colapso econômico de 2008. Família? Religião? Como eles eram fortes naquela época. Agora, pouco se ouve falar.

Mas e as relações interpessoais? As relações de trabalho? E o sexo? Nada se manteve inalterado. Afinal, com todo o avanço da ciência, cinquenta anos são uma eternidade. As pessoas hoje, juro, estão mais amáveis do que naquela época. Algo que minha mente idosa ainda não conseguiu compreender, mas agradece. As relações de trabalho realmente se alteraram de tal forma após as seguidas crises econômicas que, em determinado momento, parecia que os papeis se inverteriam, dando grande força ao proletariado. Doce ilusão. Neste aspecto tudo é muito parecido com o início dos anos 2000, a não ser pela obrigatoriedade de parar de trabalhar após a aposentadoria, que agora é levada a sério.

O sexo? A banalização foi crescente e intensa no período entre as décadas de 20 e 30, com grande estímulo da mídia para situações puramente sexuais sem a mínima sensualidade. Aos poucos, pequenos grupos começaram a tentar resgatar a sensualidade sem ser puritanos. Ninguém estava ali para negar o sexo, apenas torná-lo ainda mais prazeroso e intenso. Foi assim que o mundo ocidental começou a dar valor aos antigos ensinamentos orientais, incorporando técnicas milenares que sofriam enorme preconceito até 2035.

João Pedro Cândido de Pangloss
06 de abril de 2059

Amoral

Félix e Louise entraram no hospital, irradiando sorrisos. Há pouco tempo haviam descoberto que seus planos tinham se concretizado e, em breve, um novo alguém ia intrometer-se entre dois. Aquilo era motivo de muita alegria, mas naquele dia havia uma pequena ponta de tensão. Era o dia em que veriam os resultados dos exames preliminares de viabilidade, o que nunca deixava de ser um certo motivo de preocupação para futuros pais, mesmo que as chances de que algo estivesse errado fossem sempre muito remotas.

Uma hora depois, os dois saíam das portas com uma sombra no rosto.

No veículo, a caminho de casa, ficaram algum tempo em silêncio. Foi Louise quem falou primeiro.

- Fale...

- O que, querida?

- O que você está sentindo.

Ele parou por um instante para pensar. Era maravilhoso que pudessem saber dessas coisas tão cedo, é claro, antes que as coisas ficassem mais difíceis. Mas nem por isso se tornava motivo de puro alívio.

- Bem... É decepcionante, não?

- Sim.

- O que você está sentindo? Deve ser pior para você...

- Um pouco. Sabe, acho que a mulher sente mais essas coisas... Afinal, ele está dentro de mim...

- E então?

Foi a vez dela fazer uma pausa. Mas respondeu:

- Devemos fazer, é claro.

- Eu acho que sim. É o melhor caminho.

- Eu também penso. Mas não é comigo que eu me preocupo mais...

- Sim, eu sei. Eu não deveria ter contado para ela antes.

- Vai ser difícil, Félix.

Sua expressão ficou dura. Era um momento de conflito que ele antecipava há tempo...

- ... mas é algo que eu devo enfrentar - completou o pensamento voz alta.

* * *

Era o Dia das Nações e ele estava sozinho no trem que se dirigia para a casa da família, no sudoeste da União Européia. Os tempos mudavam, e junto com ele os feriados, mas não a mania das pessoas de juntar os parentes nessas ocasiões. Ele ainda não tinha contado nada e teria que continuar omitindo os fatos. Dizer antes só teria quebrado a harmonia da reunião, então ele preferia deixar para o dia seguinte. Mas não teria como escapar das perguntas, todos já deveria estar sabendo.

Desceu na estação litorânea, observando o plácido tapete azul do Mediterrâneo ao final da tarde. Um alienígena que pousasse na terra jamais imaginaria que aquela beleza na verdade representasse um abismo que cada vez mais se afundava. Do outro lado, um mundo assustador para o europeu comum. Lá, as fronteiras inexistiam não por mútuo acordo, mas por incessantes guerras civis e ascensão de líderes fanáticos. Não haviam progredido um único centímetro no último século, os coitados. Félix se lembrou de sua infância, nos anos 20, e de como o mundo todo se regozijou com a cura para o, na época temível, HIV. Poucos teriam antecipado as conseqüências que um tratamento barato e eficiente contra a doença traria ao continente africano... Apenas os poucos iluminados que desde o século XX profetizavam os efeitos nefastos do crescimento populacional.

Ele alugou uma bicicleta na estação e se afastou do centro urbano, adentrando em uma das regiões mais bucólicas da moderna União. Começou a subir as colinas como o auxílio do pequeno gerador elétrico, que transformava toda a pressão de seus pés nos pedais em impulso. Ali, naqueles montes costeiros, sua família ainda mantinha a antiga propriedade herdada há gerações. Não havia mais muito espaço no país para grandes propriedades, mas, no quesito produção, seus pais não eram tradicionalistas. Isso permitia a eles manter um bom pedaço de chão com a produção maximizada pela moderna tecnologia agrícola. Ele se lembrava de como as terras haviam mudado nos últimos tempos, e seu velho pai garantia que era ainda muito menos eficiente em sua época de jovem.

"Se eles tivessem a cabeça aberta para outras coisas além de técnicas de plantio, eu não precisaria estar tão preocupado agora".

Quando chegou, uma boa quantidade de primos, tios e sobrinhos já infestava a casa. Família tradicionalista, família imensa, era a conseqüência. Ao estacionar a bicicleta e se aproximar, viu como todos o olharam de um modo diferente, com sorrisos abertos, e pensou: "ok, lá vamos nós...".

Abraços, beijos e apertos de mão. E as frases. Sim, as frases clássicas. "Ah, querido, parabéns! Que, lindo!" (tias e primas), "finalmente, o mais novo pai da família!" (tios sóbrios), "como anda Louise? Bem como sempre, não é? Aproveite agora que daqui a pouco a barriga começa a aparecer!" (tios bêbados e os primos), "vai virar papai, tio?" (até os sobrinhos!). E ele, todo sorrisos amarelos e respostas curtas. Como era bom não ter mais tanta intimidade, nessas horas... Era mais fácil disfarçar.

Até que apareceu sua mãe.

- Meu amor, seja bem vindo à sua casa! Que saudades de um abraço de filho!

Ela sempre colocava ênfase no "sua", como se não fosse há vinte anos que ele tivesse se mudado.

- Oi, mãe, muito bom te ver também...

Ela percebeu imediatamente. Parou o abraço e olhou-o nos olhos.

- O que foi, filho?

"Maldita mulher perceptiva", ele resmungou mentalmente.

- Não é nada, mãe. Só estou cansado da viagem.

- É alguma coisa com a Louise?

Não conseguiu responder imediatamente. Aos olhos de sua mãe, era quase como se ele tivesse gritado "sim!".

- O que foi, querido, você pode me dizer...

- Mãe, por favor, vamos conversar sobre isso depois? É um dia de festa e eu quero apenas aproveitar com o pessoal, tudo bem?

- Meu filho, é algo tão ruim assim? Vocês brigaram? Deve estar passando um monte de coisas na cabeça de vocês desde que souberam...

- Mãe, depois, ok?

Ela silenciou. Ele viu que ela estava queimando por dentro para saber, mas também não ia estragar a festa. Afastaram-se e ele foi cumprimentar seu pai, que o recebeu de forma efusivamente embriagada. Depois pegou uma cerveja e foi cumprimentar os primos que fumavam cigarro misto do lado de fora da casa. Pelo menos eles iriam falar algumas besteiras e depois mudar para outros assuntos, em vez de ficar batendo na tecla da gravidez.

Durante o resto da festa ele tentou ficar descontraído, conseguindo até (como a ajuda de alguns tragos do cigarro misto). Mas toda vez que cruzava os olhos com a mãe, via sua expressão preocupada, e isso lhe irritava. Em vez de tentar relaxar também, ela estava enchendo sua cabeça de possibilidades e especulações. E ele sabia que era a mãe que lhe preocupava, não o que havia acontecido. Ela havia esperado tanto tempo por algo que tanto queria... Aceitaria agora o que estava por vir?

A reunião familiar adentrou a noite. Conforme as horas avançavam, os parentes que moravam perto foram se retirando, os que moravam longe subindo para os quartos de hóspedes. E ele ficou com os primos até tarde, mesmo cansado, esperando propositalmente a mãe dormir antes de se retirar.

Mas, no outro dia, não teve como escapar.

Ela veio no seu quarto enquanto ele ainda dormia, lhe chamando delicadamente com beijos e abraços. Ele sorriu de volta, preguiçoso, e foi lentamente acordando. Ela perguntou como andavam as coisas no trabalho, na cidade. Ele respondeu que tudo bem, contou algumas novidades. Ficaram um tempo numa espécie de impasse: ambos falando banalidades, a mãe querendo tocar no assunto, ele relutante em abordá-lo. Até que ela falou sem maiores delongas.

- Então, filho, como está a Louise nesse começo de gravidez?

- Ah, mãe, é algo meio esquisito, sabe? Vou te dizer que nós dois estávamos realmente querendo isso agora, mas não deixa de ser um pouco estranho...

- Sempre é assim, querido. Um filho é algo que muda toda a nossa visão do mundo.

- Nem fale...

Ele se calou. Ela esperou ele falar algo.

- E tudo bem por aqui na terrinha?

"Droga, estou fugindo de novo. Por que as mães ainda conseguem intimidar os filhos, mesmo depois de quase quarenta anos?".

- Tudo bem... A vidinha de sempre, mas uma vidinha boa.

- Que bom!

Nova pausa.

- E vocês, filho, como estão um com o outro?

"Dane-se".

- Mãe, não tem nada a ver com a Louise, se é isso que você está pensando.

- Então me diga, filho! Eu consigo saber direitinho que há alguma coisa te incomodando muito. E não imagino nada além de alguma coisa com Louise para te deixar assim...

- É com a gravidez.

Momento de tensão.

- Qual o problema?

- Os exames preliminares... Os de viabilidade. Nós fizemos.

Inconscientemente, a mãe levou a mão ao pequeno amuleto no pescoço. Ele olhou de relance para o crucifixo, antes de declarar.

- Os resultados mostraram que ele é defeituoso.

A face da mãe se transformou. Sua tensão virou uma expressão de pura e profunda tristeza, carregada de pena e com uma ponta de decepção. Sim, ele conseguia ler sua mãe tão bem quanto ela o lia. E logo após o primeiro impacto, a consciência do que estava por vir começou a ficar evidente.

- Não tem possibilidade dos exames estarem errados?

- Por favor, né, mãe? Nós não os fizemos em alguma clínica da América do Sul.

- Que tipo de problema é?

- É defeito em alguns genes. Os exames detectaram produção inadequada de algumas proteínas. O prognóstico é de significativos defeitos mentais.

- Defeitos mentais... Mas ele é... viável, não?

Agora estavam chegando ao ponto delicado.

- Viável em que sentido, mãe?

- Ele pode nascer... crescer... viver, como toda pessoa, não é?

- Mãe, eu sei o que você está pensando. Mas nós não vamos fazer isso.

- Como?

- Eu e Louise temos isso muito claro. Essa gravidez não pode continuar.

- Como não? O que você está pensando, Félix?

Ela havia aumentado o tom de voz e usado seu nome. A sua desconfiança havia se tornado certeza. Incrível como ele podia prever essas reações, mas ainda assim não conseguia entender. Era algo tão pequeno diante de um mundo tão grande... Claro, ninguém torcia para acontecer. Mas vários amigos já tinham passado pela situação, que era cada vez mais rara com o passar do tempo. Era algo que podia ser resolvido, por que não se preocupar com coisas mais complicadas?

Mas ele sabia. Sua mãe ainda se prendia a códigos de ética ultrapassados. Uma minoria na União, mas que ainda fervilhava em algumas regiões do mundo. Aos seus ouvidos, era como se ele tivesse dito que estava planejando matar alguém.

- Mãe, nós já discutimos sobre isso... Eu nunca pensei que fosse acontecer comigo, mas é a vida. E você sabe muito bem a minha opinião. Louise pensa do mesmo modo.

- Vocês já pensaram que é uma vida que está crescendo na barriga daquela mulher?! E que nenhuma vida deve ser eliminada sem razão?!

- Mãe, se acalme... Não é uma coisa de outro mundo, as pessoas fazem isso sempre. É só por isso que esses casos são cada vez mais raros...

- Não me interessa o que os outros fazem! Se todos fazem errado, isso não justifica que você faça também!

Ela estava falando cada ver mais alto. E aquilo começava a enervá-lo.

- Não estamos fazendo nada proibido, nem prejudicando a ninguém...

- Como não? Vocês estão matando uma pessoa!

- Aquilo não é uma pessoa!

Pronto, ele havia ficado nervoso. Não agüentara a mãe gritando e falando para ele as mesmas coisas que já haviam discutido inúmeras vezes.

Ele suspirou e tentou retomar o tom sereno.

- Mãe, eu sei que você pensa diferente, mas eu sei, e todo mundo sabe, que não existe espaço para um defeituoso no mundo em que vivemos. Nunca teve, só que na sua época as coisas ainda não pareciam ser tão difíceis quanto são hoje. Eu sei que você estava louca por um neto, mas não é esse o filho que eu quero ter.

- Não é você quem escolhe o filho que vai ter... - ela estava lamentando, quase chorando.

- Eu sei que você pensa diferente, mas eu não vou prejudicar a minha vida pelo que você pensa. Eu sei que você sempre quis um neto, e você o terá em breve, sem dúvida... Mas não será esse tipo de neto.

Ela tentou falar em um tom mais baixo, suplicante.

- Meu filho, eu peço que você me ouça, pelo menos uma vez... Não se feche para o que eu vou falar... Eu sei que você não acredita, mas tem coisas aí que não podem ser compreendidas... Você deve senti-las... E eu te peço, meu filho... E para Louise também... Dêem uma chance para essa criança... Uma hora vocês vão sentir ela se movendo, chutando barrigas, e verão que sim, ela está viva... E que, não importa que tenha aquilo que os outros chamem de defeitos, ela será única... O produto do amor de duas pessoas... Ela é um pedaço de vocês dois, com o tempo vocês verão...

- Isso não vai acontecer, mãe.

- Por que, meu filho?

- Porque nós já interrompemos.

Houve uma longa pausa, enquanto ela absorvia aquela informação.

- ... já...?

- Sim, no dia seguinte aos exames. O médico nos deu o remédio e já foi tudo resolvido.

- Vocês... nem pensaram... a respeito?

- Para que, mãe? Não tem muito o que pensar. Para que dar continuidade a um problema, se hoje já temos como resolvê-lo tão facilmente?

- ...

As lágrimas surgiram nos olhos da mãe. Ela se ergueu, tentando ainda não perder o controle. Falou em um tom falsamente resignado.

- Tudo bem... Se vocês acham que era o melhor para vocês... O que eu posso dizer?..

E saiu do quarto.

Mas ele lia a última frase de um modo claro.

"Meu filho é um assassino".

Droga, era isso que ele queria evitar. Não tinha o menor problema com aquilo, mas sabia que sua relação com a mãe havia se alterado para sempre. Ela nunca mais o veria do mesmo modo, sabendo que ele era capaz daquilo que ela considerava uma atrocidade. Porém, não fazia sentido para ele sacrificar uma parte tão grande da sua vida por conta de outra pessoa. Ademais, quem era mais assassino? Não era pior quem tirava do mundo a vaga de alguém que poderia ter uma existência plena? Os habitantes daquela parte do mundo já haviam aprendido a lição: sacrifícios tinham que ser feitos. Em um mundo saturado, não havia espaço de sobra para sustentar a todos.

Arrumou suas coisas rapidamente e saiu sem se despedir de ninguém. Desceu as colinas, chegando na estação, onde o trem elétrico ainda estava sendo carregado para a próxima viagem. Devolveu a bicicleta, pegando sua caução de volta. Pegou um lugar na janela, observando o mar e as terras além. Não pode sentir mais do que raiva daquelas antigas morais que haviam contribuído para deixar o mundo tão caótico, e ainda proliferavam nas periferias do mundo. Um dia, talvez, eles achariam seu próprio caminho. Até lá, era melhor que ficassem lá, e ele aqui. Ilhas de riqueza e de pobreza, sem mais laços de falso altruísmo a ligá-las, assim como não existiam mais laços a ligar pais descontentes a algumas células problemáticas. Era esse o mundo que estava se formando e era o que lhe dava esperanças de um futuro melhor. Um mundo que admitia sua realidade, seu egoísmo e, assim, quem sabe, se tornava muito mais humano.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Trinta dedos enrugados

06 de abril de 2059

Estou enfraquecendo. Ontem conversei com o médico. Acabamos fazendo uma consulta por webcam. Sabe, essas tecnologias tem um sério problema: quando a câmera está na sua cara, não há como disfarçar. Ele sabe e eu sei: não vou longe. Deixei de lado o computador e peguei meu maço de cigarros. Nem o Malboro nem o café me abandonaram nesses últimos anos de solidão. 

Mais irreversível que a doença é a saudade. Todos os dias lembro meu avô. Homem bom. Fumava palheiro. Me deixava enrolar a palha quando meu pai não estava por perto. Consigo sentir o cheiro que ele deixava nas minhas mãos. Aliás, ele sempre dizia que eram parecidas com as mãos dele. Um dia eu perguntei por que as pontas dos dedos dele estavam enrugadas e ele sorriu. Me levou até uma torneira, deixamos minhas mãos de molho. Lembro de como os olhos dele brilharam quando ele disse que quando meus dedos também enrugassem, eu não me assustasse: era só água. 

Um dia ele desapareceu. Ninguém me explicou por que. Sempre que eu sentia saudades dele, ia até o banheiro, enchia a pia de água e deixava meus dedos enrugarem. 

A fumaça do cigarro é a desculpa perfeita pra um choro disfarçado. Finjo que me afogo, minha esposa – tão cuidadosa, minha Teresa – vem me acudir e eu peço um abraço. Choro como quando eu tinha seis anos e meu avô cuidava de mim. Peço um café e ela vai. 

O café é herança do meu pai, meu avô não era muito chegado, não. Mesmo com gastrite, meu pai nunca esquecia de deixar que o cheiro do café invadisse nossos quartos e nos desse bom dia. Era a certeza de que mais um dia chegaria e ele estaria ali. Um dia meu filho, neto dele, tomava café conosco e perguntou ao pé do meu ouvido porque as mãos do meu pai eram enrugadas. A cena me pareceu tão familiar e tão bonita, que eu não consegui explicar e disse que ele voltasse para o vídeo-game (na época a novidade era aqueles controles com sensor de movimento). 

Quando meu pai faleceu, há uns vinte anos, eu e meu filho paramos ao lado do caixão. Eu segurei a mão dele e o levei para o banheiro. Com as mãos enrugadas, nos despedimos do melhor homem que esse mundo já viu: meu pai. Entre lágrimas rolando no meu rosto, eu sorri. Estávamos iguais. Sempre seríamos iguais. 

Ontem meu neto veio aqui. Chegou com as mãos molhadas e enrugadas. Sentou ao meu lado e tomou café comigo, enquanto fingia fumar com uma caneta. Mudaram as coisas. Não sinto mais o cheiro dos livros, não sujo mais minhas mãos com jornal. Mas é na ponta dos meus dedos que está a prova que o tempo sempre passa e que tem coisas que não mudam. Nunca. 

Coletiva

“Ah, como começou. Acho engraçado vocês, jornalistas de hoje. Sempre com as mesmas perguntas. Não que no meu tempo tenha sido diferente, mas quando eu comecei a trabalhar nessa área sempre buscava perguntas mais difíceis, mais inteligentes. A idéia era cutucar sempre os entrevistados, sabe como é? Mas naquele tempo tudo era diferente. Existiam mais jornais na cidade. Até uns dois ou três. Além de rádios e televisões. A concorrência ainda era permitida naquela época. Mas tudo bem, vamos voltar à sua pergunta, mocinha.

Naquela época, o pessoal ainda lançava os livros só impressos. Os e-books eram vistos com maus olhos, era coisa de piratas, doía a vista pra ler. Daí a gente veio com essa coisa de projeto literário na internet. Era novidade na época. A gente morava numa cidade no interior de Santa Catarina, Blumenau. Vocês conhecem, né? Então... ninguém fazia disso lá. E a gente começou a escrever de brincadeira, só pra se exercitar. Isso ainda foi muito tempo antes dos patrocínios, dos prêmios, da cadeira na Academia. Pra você ter idéia, naquela época a gente não tinha nem layout no blog. Vê só, era tudo branco, aqueles padrões de quando se monta um site pela primeira vez, sabe? O Rodrigo sempre prometia que ia melhorar a cara do site, mas nunca fez. Só quando a gente conseguiu as verbas de patrocínio mesmo, que já montaram todo o site pra gente, sem a gente precisar fazer esforço.

Mas era assim, começou numa brincadeira entre amigos. A gente vivia querendo escrever, mas nunca tinha saco, nunca tinha tempo. Naquela época todo mundo trabalhava muito ainda. Era todo mundo ainda se estabelecendo nas carreiras. Quando a gente começou, o Félix nem tinha concluído o mestrado ainda, ainda morava no Brasil. O Rodrigo não tinha publicado nada até então. Mas ele já era meio gagá desde aquela época, sabe? Mas escrevia bem, o desgraçado. Agora não passa de um ranzinza, vivendo de direitos autorais.

É faz tempo que a gente não se fala. Todo mundo, na verdade. Sabe como é, né... a vida leva a gente pra lugares diferentes. Agora só conversamos vez ou outra pela internet mesmo. E tá todo mundo super bem, né. Ao menos eu acho. Faz tempo que não falo com o pessoal. Todo mundo publicado, premiado. O Floriano ganhou mais um prêmio esses dias, né? Vi no jornal. O dinheiro vem, né. Mas naqueles tempos, foram tempos difíceis. É uma história longa, que não dá de contar por aqui.

Mas tá vendo aquela livraria ali do outro lado da rua? Vai até e pede uma cópia do “Duelistas”. Sim, “Duelistas”, eu que escrevi. Há, faz uns 30 anos já, conta justamente essa história, de como tudo começou. Escrevi na onda da academia, né. É, quando vieram aqueles prêmios todos, eu aproveitei. Precisava da grana, sabe como é.

O pessoal não gostou, não. Até deu umas brigas por causa disso. A Marina nem olhava mais na minha cara depois de ler o livro. Mas tudo bem, ela sempre arrumava um motivo pra não olhar na minha cara de qualquer forma. Com o tempo a gente fez as pazes. Até lançamos um livro juntos. Sim, sim. Pô, podias ter feito uma pesquisa básica antes, né. É, pelo menos os nomes das obras. Ô pessoal, ajuda a mocinha ali.

Mas então, a gente veio aqui pra falar sobre o lançamento do filme, não veio? Vamos lá, então. Podem perguntar”.

domingo, 5 de abril de 2009

O texto inacabado

Manifestantes em Caracas entraram em confronto nesta semana com a polícia local, durante o Encontro Sulamericano de Nações. O motivo seria um movimento pelo fim do embargo de Washington, que já dura desde o regime chavista. A proposta apresentada nesta semana por uma sociedade civil venezuelana, propunha o fim gradual do bloqueio comercial, como feito com o bloqueio que vigorou sobre Cuba durante o primeiro regime castrista. A proposta repercutiu em todo o mundo ganhando apoio por parte da União Européia e do Mercosul. O ministro de Relações Exteriores ressaltou que o apoio à proposta é um dever de qualquer nação sul americana “Especialmente no mês em que comemoramos os cinco anos do Peso Real”, reforçou o ministro em referência à moeda única do Mercosul. Autoridades venezuelanas também buscam apoio na comunidade internacional e exigem o fim do

O som dos manifestantes e os gritos o impediram de terminar o texto. Dentro do café os clientes curiosos se amontoavam nas vitrines e na porta, assistindo de longe a ação policial. Fechou o computador, guardou-o no bolso e pediu a conta à garçonete. Uma venezuelana bonita, de rosto arredondado, olhos um pouco puxados, cabelo escuro amarrado num coque. Ela trouxe o leitor, ele passou o celular em frente ao visor e conferiu o valor debitado. Saiu sem olhar para trás, pensando em um lugar mais tranqüilo para escrever.

Ao sair pela porta viu as pequenas colunas de gás lacrimogêneo, a turba dispersa pela tropa de choque. Seguiu caminho a uma distância segura da confusão até encontrar um táxi. Um modelo meio antigo, ainda movido a gasolina, combustível ainda comum na Venezuela. Incomodou-se quando o motorista deu a partida, desacostumara-se dos motores barulhentos e do cheiro do combustível queimado. O moreno atarracado no volante, já com o carro posto em movimento, olhou pelo retrovisor e perguntou a direção. Ao ouvir a resposta olhou para trás e perguntou: “brasileiro?”.

A jovem correndo rolou por cima do capô, o ombro trincando o vidro enquanto uma placa “abaixo do bloqueio” entrou pelo para-brisas e parou no banco do carona. O motorista freou rápido com o choque e moça foi arremessada no asfalto. Quando o homem virou novamente para o banco traseiro, com olhar assustado, viu apenas a porta aberta e seu passageiro entrando por uma ruela a passos rápidos. Ao virar-se para a frente pôde ver um círculo de manifestantes ao redor da moça estirada no chão, um grupo correndo em direção ao táxi com placas e pedaços de pau e uma garrafa chamejante voando em direção ao vidro já estilhaçado do táxi amassado.