quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Primeiro tema de 2009

Rodrigo não tava conseguindo postar, entao me incubiu da missão:

"Salve, salve. Feliz ano novo e aquela coisa toda pra todo mundo.
Sem enrolação, o tema da primeira rodada de 2009 é "Xadrez".
Como de costume, até dia 6 para as postagens.
Tim-tim!"

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

VOTAÇÃO - Texto sem verbo

Vamos à última votação de 2008.
Basta comentar neste post até o dia 30/12/2009 indicando qual foi o melhor texto da rodada.

Agradecimento especial a todos aqueles que participaram do Duelo de Escritores com comentários, votos ou apenas lendo os textos ao longo do ano.

Que venha um 2009 refleto de alegrias, criatividade e paz na terra (risos).

Um abraço pro meu pai, pra minha mãe, e especialmente pra você (sem risos).

O passar dos dias

INÍCIO.TAC.TIC.TAC.TIC.BEIJO.
CALOR.TAC.TIC.TAC.TIC.DESEJO.
AMOR.TAC.TIC.TAC.TIC.DESLEIXO.
TORPOR.TAC.TIC.TAC.TIC.DESFECHO.
TIC.TAC.TIC.TAC.TIC.TAC.

OLHAR.TAC.TIC.TAC.TIC.BEIJO.
TOQUE.TAC.TIC.TAC.TIC.TAC.
DANÇA.TAC.TIC.TAC.TIC.LEITO.
TIC.TAC.TIC.TAC.TIC.TAC.

PAIXÃO.TAC.TIC.TAC.TIC.BEIJO.
FOGO.TAC.TIC.TAC.TIC.TAC.
TIC.TAC.TIC.TAC.TIC.TAC.

BEIJO.TAC.TIC.DESEJO.TIC.FOGO.
TOQUE.TAC.BEIJO.TAC.TIC.CORPO.
TIC.LEITO.BEIJO.TAC.TIC.TAC.

AMOR.TAC.TIC.TAC.TIC.LEITO.
TIC.TAC.TIC.TAC.TIC.TAC.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Verborréia (?!)

Da inocência à demência, uma dança exótica ao fim do mundo
Uma neutralidade desumana em frente ao frio humano
Do ego uma reflexão desinteressada desprovida de augúrio
À palavra jogada e ao desentendimento desesperado
Esporadicamente, um olhar de soslaio à dor e às lágrimas
O entendimento debilitado atua em sábia falsidade
Do pó ao pó, com pó nas narinas nesse meio tempo
A caminhada de nada a lugar algum de um falso começo

(pois qual o sentido de uma verborréia desverbada?)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Abafado

Tudo perdido. Tudo sob a terra, tudo embaixo do morro, agora inexistente. Casa, carro, tudo embaixo da terra. A filha de apenas três anos de idade, morta. Soterrada. Enterrada quando ainda viva. A voz abafada: “Mamãe, mamãe!”. O silêncio.
A dor, o medo, a solidão. O despreparo, a falta de fé. O cheiro da morte no ar. Em todos os lugares, em cada canto escondido e esquecido.
Famílias inteiras dilaceradas pelas águas. Separadas, divididas. Reduzidas a nada.
Amor substituído por dor. Prazer, por pesar. Alegria, por força.
“Mamãe, mamãe!”. Nada.
Hora da reconstrução.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O verbo mudo

Ping!

— Bom dia.
— Bom dia. Nono, por favor.
— Pois não.

Entre as quatro paredes de metal, eu e o ascensorista. E Ray Connif na rádio interna. Sete anos, a mesma rotina. A mesma música. Os mesmos nove andares. Mas não hoje.

— Aliás, oitavo.
— Oitavo?
— Oitavo.
— Pois não, senhor.

Ping!

— Oitavo, senhor.
— Obrigado.

Do corredor à porta de incêndio. Nas escadas, um degrau por vez. Passo a passo. Cada vez mais alto até a porta com o número nove. Novo corredor. O velho corredor. O corredor de todos os dias. Dez passos até a porta de madeira. A mesma empresa. Os mesmos rostos. Os mesmos bom dias falsos. Hoje, sem resposta. Hoje sem sorriso.

A porta de vidro transparente. A sala do chefe. Porta a dentro.

Um único verbo, silencioso, num dedo médio em riste.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Nós

Ela, coração. Ele, razão. Eles, história.
Ele, melodia. Ela, poesia. Eles, música.
Ela, doce. Ele, amargo. Eles, café.
Ele, indiferença. Ela, crença. Eles, divergência.
Ela, exclamação. Ele interrogação. Eles, reticências.

Eles, fim. Ele, razão. Ela, coração.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

votação

Votemos todos no melhor texto até o dia 20/dez/08.

Tema da Rodada

Salve, salve. Feliz ano novo e aquela coisa toda pra todo mundo.
Sem mais enrolação, o tema da primeira rodada de 2009 é "Xadrez".
Como de costume, até dia 6 para as postagens.
Tim-tim!

Tema da Rodada

Salve, salve. Feliz ano novo, aquela coisa pra todo mundo.
Sem mais enrolação, o tema da primeira rodada de 2009 é "Xadrez".
Como de costume, até dia 6 para as postagens.
Tim-tim!

Tema da Rodada

Salve, salve. Feliz ano novo, aquela coisa pra todo mundo.
Sem mais enrolação, o tema da primeira rodada de 2009 é "Xadrez".
Como de costume, até dia 6 para as postagens.
Tim-tim!

Tema da Rodada

O tema da rodada será: "TEXTO SEM VERBO".
Retomando o lado experimental, os duelistas deverão desenvolver um texto (conto, crônica, poema, qualquer coisa) sem o uso de verbos.
O prazo de postagens é até o dia 26.
Feliz Natal, a propósito ;)

Jesus e Judas

- Sim Judas, serás tu o pecador.
- Sai fora, Jesus, nem vem com esse papo não.
- Pois duvidas?
- To falando, nunca te trairia.
- Pois saibas que me negarás por três vezes.
- Vou não!
- Vai sim.
- Não.
- Eu disse que sim.
- Não!
- Viu?
- Ah, sai fora, essa não valeu, foi pegadinha.
- Judas, todo homem peca, e todo homem tem seu preço.
- Tais dizendo que vou te trair por dinheiro, Jesus?
- Sim, por dinheiro.
- Quanto?

Ele

Se Jesus tivesse nascido lá pela década de 40, teria, doidão, participado de uma comunidade alternativa nos anos sessenta. Talvez, chapado e com batas coloridas, teria feito sinal de paz e amor em meio a um mutirão jovem. Para se tornar conhecido e revolucionário, talvez ficasse pelado em frente ao Palácio do Planalto. 

Se ele tivesse nascido em 50 e poucos, seria dançado o rock de Elvis com calças boca de sino vermelhas. Se fosse brasileiro ouviria Doces Bárbaros e se curtisse rock teria descoberto o Aerosmith. Quem sabe seria conhecido por lutar pela independência de países africanos?

Se tivesse nascido lá por sessenta, em oitenta dançaria Michael Jackson e vibraria com Thriller. Estamparia capas de jornais pelo auxílio nas Diretas Já e teria votado no Collor. Teria ele criado o perdão ao virar amigo de Collor?

Como nasceu bem antes de tudo isso, virou Jesus Cristo. 

Porque Jesus não volta pra terra

- É, Jesus, tão sentindo tua falta lá.
- Pois é. Tenho visto cada coisa. Esses dias soube de um outdoor enorme com meu nome estampado. Isso que é saudade, hein.
- É, Jesus. É verdade.
- Caminho e vida também.
- Aliás, vais fazer alguma coisa no teu aniversário?
- Então. O povo me confunde. Não lembro do dia em que nasci, por motivos óbvios. Agora não tenho certeza se é 25 de dezembro ou 1º de janeiro.
-É, Jesus!
(Alguém abre a porta)
- Quem é no telefone, Chico?
- É Jesus!
- Desliga essa porcaria e pára de conversar com esses teus amigos invisíveis! Vamos Jantar.

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Conto inspirado na música homônima da banda “3 hit combo!”. Confira o primeiro álbum “The Pai Mei Education EP” na íntegra, através do Tramavirtual. Clique aqui. (http://tramavirtual.uol.com.br/artista.jsp?id=41581)

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Crise em Terra Nova

Sr. Lúcio, o senhor já pode entrar. O Dr. Javésio lhe aguarda.

***

Dr. Javésio, esse é o Sr. Lúcio da PQ&P Comunicação e Marketing.

— OBRIGADO, GABRIEL. BOM DIA ,MEU JOVEM. ENTÃO É VOCÊ QUE TEM A SOLUÇÃO PRA MINHA EMPRESA?

— Bom dia, Dr. Javésio. Eu tenho certeza que o senhor não se arrependerá de confiar sua conta à PQ&P.

— COMO MEU ASSISTENTE JÁ DEVE TER LHE FALADO, A TERRA NOVA EMPREENDIMENTOS & INCORPORAÇÕES PASSA POR ALGUNS... PERCALÇOS, DEVIDO AO CENÁRIO MACROECONÔMICO. A CRISE NOS ATINGE A TODOS, COMO SABE.

— Certamente. É justamente por isso que acredito que nossa abordagem pode ajudar a reverter o enfraquecimento de imagem da Terra Nova.

— ENFRAQUECIMENTO DE IMAGEM?

— Dr. Javésio, é notório nas pesquisas recentes que a Terra Nova Empreendimentos & Incorporações já não apresenta os números expressivos do seu período áureo.

Mas a Terra Nova ainda é líder em nosso mercado, a linha de produtos cresceu e participação de vendas entre os formadores de opinião ainda é marcante.

— De fato, Seu Gabriel. Mas é preciso encarar os fatos de frente e sem maquiagem. Se a Terra Nova não estivesse com dúvidas, não teria nos chamado. Além do que, a imagem da empresa, ainda que forte junto aos formadores de opinião e público geral, já encontra nova concorrência. Como disse o Dr. Javésio, a crise nos atingiu a todos.

— MAS NÃO É UM CRISE FINANCEIRA QUE VAI NOS TIRAR DA LIDERANÇA.

— E é para garantir isso que trago a nossa proposta. Nesses tempos duvidosos, precisamos marcar nosso território no mercado. Defender e melhorar a imagem de nossa empresa. Encontrar um representante de nossa marca.

— UMA PERSONALIDADE? COMO AQUELA PROPAGANDA DE COREGA?

— Não exatamente. Uma personalidade já carrega uma imagem própria. Nós pensamos em começar do zero. Sugerimos a criação de um personagem para representar a Terra Nova.

— UM DESENHO ANIMADO?

— Não. Precisamos de uma abordagem mais séria. Usaremos um ator, obviamente, para interpretar um personagem que consiga se comunicar como o nosso público.

— SIM... UM PERSONAGEM FORTE, PORTENTOSO, LUTADOR, QUE NÃO SE ABATE FRENTE À CRISE, À IMAGEM DA TERRA NOVA.

Café, Dr. Javésio?

— NÃO ATRAPALHE, GABRIEL. NÃO VÊ QUE ESTAMOS TENDO UMA GRANDE IDÉIA?

— Na verdade, nós sugerimos o contrário...

— O CONTRÁRIO? VOCÊS ESTÃO LOUCOS!?

— Pense bem, Dr. Javésio. Não foi o senhor mesmo que disse que esta crise financeira nos atingiu a todos? Pois então! Agora que estão todos se sentindo sós, nós vamos mostrar a eles que eles não estão sós. Nós estamos com eles.

— NA CRISE?

— Igualmente na crise. Ao invés da força, vamos usar a fraqueza, no lugar do heroísmo, o cidadão comum. Vamos dar o público não alguém distante, o lutador vitorioso e imbatível, mas vamos abraçá-los no seu fracasso, no momento de fragilidade, vamos dizer a eles que somos como eles.

— MAS NÓS SOMOS FORTES. IMBATÍVEIS! MANTIVEMOS A LIDERANÇA DE MERCADO DESDE QUE A CONQUISTAMOS.

Sim, nós somos o sucesso!

— Mas o seu público não. E é com ele que precisamos nos identificar.

— MAS NÃO É A NOSSA IMAGEM QUE QUEREMOS MELHORAR?

— E a melhor forma de fazer isso é nos tornarmos mais próximos de nossos consumidores. Falar como eles, dos assuntos deles, estar no meio deles. E um personagem que represente tudo isso, que represente eles, é a nossa melhor opção agora.

— E QUANTO TUDO ISSO CUSTARIA?

— Essa é a melhor parte. O maior custo da produção será o casting. E como temos apenas um ator, não sairá muito caro.

— VOCÊ TROUXE OS ORÇAMENTOS?

— Obviamente. Aqui estão.

— ...

— ...

— MUITO CARO.

— Mas Sr...

Doutor!

— Mas Dr. Javésio, de acordo com o nosso budget, essa verba se enquadraria perfeitamente à nossa realidade.

— LÚCIO, EU SOU O PRESIDENTE DA TERRA NOVA EMPREENDIMENTOS & INCORPORAÇÕES, RAPAZ. EU SEI O QUE SE ENQUANDRA OU NÃO À REALIDADE DA MINHA EMPRESA.

— Sim, senhor. Mas eu lhe garanto, esse personagem, esse mascote é melhor solução para melhorar a imagem da sua marca.

— POIS BEM, VAMOS FAZER O TAL MASCOTE. MAS SEM O ATOR. GABRIEL, CHAMA LÁ O MEU FILHO. ELE VAI FAZER O COMERCIAL.

— Mas Sr...

Doutor!

— Doutor! Dr. Javésio...

— SEM DESCULPAS, RAPAZ. E ANDE LOGO COM A PRODUÇÃO DESSE COMERCIAL, QUE EU QUERO ISSO NO AR EM SETE DIAS!

Nova vida

15/12/08

Sua respiração estava mais difícil, ele notou pela primeira vez. Não era mais aquela inspiração profunda e vigorosa, seguida por uma expiração suave e tranquila. Agora, os pulmões não estavam mais puxando o ar com tanta vontade, e ele podia ouvir um fraco chiado saindo da garganta na expiração. Não era tão aparente quanto as mãos enrugadas que ele encarava. Outrora as fortes mãos de um carpinteiro, agora apenas as rugas tinham permanecido. O vigor se fora.

Ergueu-se com alguma dificuldade e olhou-se no espelho. A face estava murcha, os cabelos esbranquiçados, os olhos caídos e sem brilho. Será que aquele corpo alquebrado aguentaria uma temporada no deserto? Sim, se ele confiasse no Pai, e esta confiança ele tinha acima de tudo, certo? Afinal, não tinha arrastado um peso enorme por quilômetros, em um corpo muito mais sofrido e torturado que este? Sim, ele tinha que ter esta certeza. Mas não pôde evitar um pequeno tremor de insegurança na espinha.

Não era para ser assim. Por que o Pai havia deixado sua forma carnal ficar tão decadente desta vez, em vez de mantê-la em glória por toda uma vida? Seria uma nova provação? Será que aquele era o caminho que Ele havia escolhido para seu filho desta vez? Entretanto, por que as pessoas não se condoíam diante do sofrimento de uma morte lenta? Seria mesmo necessária uma morte violenta, no auge, para que todos o reconhecessem novamente? Porém, ele não sabia como iria reagir agora, diante de uma morte dolorosa... Quer dizer, ele deveria fazer o que o Pai lhe exigisse, pois seu amor era infinito, certo? Um novo calafrio percorreu o corpo, ao imaginar um chicote violento e as costas idosas cobertas de sangue...

A porta do quarto de abriu. Ela fez uma pequena reverência e falou com doçura:

- Inri, está na hora do culto.

Ele sorriu com benevolência e respondeu que já estava indo. Bem, desta vez o Pai escolhera outro caminho para ele. Uma vida longa, saudável e cercado por jovens discípulas. Não era de se reclamar. Afinal, ele sabia o que era uma morte na cruz e não a desejaria para mais ninguém. Muito menos para si mesmo.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Tema da rodada

Então, amiguinhos, vamos a mais uma rodada. Desta vez o tema será mais fácil, no clássico estilo de uma palavra.

E, como estamos em fim de ano, nada melhor que homenagear o nosso aniversariante de 2012 anos!

O tema da rodada é JESUS CRISTO.

Boa sorte a todos!

domingo, 7 de dezembro de 2008

Votação

Está valendo!

Até o dia 10 de dezembro você pode votar comentando esta postagem.

Participe.

Sobre a fome

Ele acabara de chegar ao continente de gelo. Mal conhecia o lugar e já estava faminto. Esqueceu de estocar comida. Esqueceu que ia demorar até alguém aparecer àquele lugar para trazer mantimentos. Não tinha experiência em caça, afinal, sempre a condenou. Sempre foi ligado às questões ambientais, mas dessa vez não haveria jeito. Sem árvores frutíferas ou qualquer tipo de vida vegetal, tudo que lhe restava eram os animais. A solução era matar ou morrer.

Pegou uma pá e saiu em busca de comida. Avistou um leão-marinho, mas percebeu que seria muito difícil golpeá-lo com aquela arma improvisada. Talvez conseguisse uma foca. Caminhou procurando qualquer coisa que pudesse servir ao propósito de alimentá-lo. Era uma tarefa difícil. Foram longas horas de caminhada até avistar um grupo de pingüins andando desordenadamente, empurrando uns aos outros. Aproximou-se e sentiu o vento cortar-lhe a espinha. O lugar era frio por natureza, mas a idéia de matar pingüins para saciar a fome era ainda mais gélida.

Pensou por alguns instantes. Se perdesse aquele grupo talvez não encontrasse mais nenhum sinal de vida nos próximos meses. Suas ponderações ecológicas foram completamente esquecidas e, como se tivesse possuído por uma cólera súbita, começou a desferir golpes certeiros nas cabeças daquelas pequenas criaturas alvinegras. Um a um, os pingüins sucumbiam à força da fome de um predador voraz. E ele teria comida suficiente (e de sobra) para alguns meses de isolamento.

Micro-conto picante

- Droga, nunca mais almoço no mexicano!

Caçada

06/12/08

Logan caminhava pesadamente pelo deserto branco da península de Labrador. Tinha acabado de deixar o barco e uma nova temporada de trabalho estava para começar. A primavera havia iniciado há pouco e o gelo, naquele ano, parecia melhor que nos anteriores. "Curioso", pensava Logan, "como as atividades daqueles que condenam minha profissão atingem tanto a região quanto as minhas". Nos últimos anos, várias focas haviam perecido por conta do descongelamento das geleiras, segundo aqueles mesmos ativistas que o demonizavam.

Mas Logan tentava não se abater pelo aumento nas dificuldades. A caça estava complicada, a venda mais ainda. Muitos países já não aceitavam a alva e macia pelagem dos filhotes, então ele se contentava em tirar a maior parte de seu sustento das adultas ("e por que então eles aceitam destas?", se perguntava). Nesse momento, caminhava em direção às costas de gelo, onde algumas focas deveriam estar caçando na água e cuidando de seus filhotes recém-paridos. Pelo menos o céu agora estava limpo.

Nas noites anteriores, o barco do seu grupo havia sido surpreendido por uma tempestade fora de época ("esse mundo está todo louco mesmo..."). Decidiram ancorar em uma aldeia Inuit e esperar o tempo melhorar. Como o usual, os esquimós os receberam de modo desconfiado. Afinal, eram eles que vinham das latitudes inferiores do Canadá para caçar as focas, que eram uma importante parte tanto do sustento alimentar quanto econômico dos nativos. Entretanto, após algumas rodadas pagas no bar, o clima ficou tranquilo e amigável. Cordialmente, os caçadores ouviram dos nativos pela vigésima vez as histórias de espíritos naturais e deuses, da benevolente deusa humana Sedna à terrível orca Akhlut. Logan conheceu pela primeira vez a misteriosa deusa-foca, Nainut, que dorme congelada no fundo do oceano. Os espíritos são caprichosos, diziam os esquimós, e o homem deve ser cauteloso ao lidar com a natureza. E então todos explodiram em risadas, nativos e forasteiros, entornaram mais uma dose e foram dormir aquecidos.

Quando os "caprichosos espíritos" resolveram encerrar a tempestade, Logan e seus companheiros seguiram para seu usual ponto de caça. Chegando lá, testaram a comunicação pelos rádios e dividiram-se em duplas. Logan e Etahn iniciaram a caminhada ao local que sabiam ser o melhor da região. Lá, sem dificuldade completariam sua cota, dividida igualmente entre os membros do grupo, segundo os limites legais. Ethan falou que esperava que os outros fossem tão rápidos quanto e logo pudessem estar em suas quentes casas com suas não-menos-quentes esposas. Os homens compartilharam uma risada e prosseguiram silenciosamente.

Ao chegar no ponto determinado pelo aparelho de GPS, tiraram as mochilas e deixaram-nas para marcar o ponto de encontro. Nenhum deles gostava de usar espingardas, pois achavam que danificava demais o pêlo. Assim, cada um pegou seus porretes e saíram separadamente em busca de seus negros alvos, facilmente visíveis sobre o gelo branco.

Não demorou muito para Logan localizar sua primeira vítima. A uma certa distância, viu o escuro animal sair da água para o gelo, provavelmente após uma boa refeição à base de arenque. Era uma fêmea, então esperou um pouco. Se fosse uma solitária, apenas se deitaria ali antes de seguir para mais uma caçada. Se não, se arrastaria desajeitadamente para alguma fresta escondida entre o gelo, mais para o interior. Dito e feito, lá se foi ela. Logan sorriu, estava com sorte.

Seguindo-a cuidadosamente, logo a viu parar ao lado de uma pequena bancada de gelo. E ali estava o grande prêmio de Logan: uma pequena bolota de neve que passou a se agitar alegremente pela volta da mãe. Sim, vários países não mais compravam suas peles, mas os que ainda compravam pagavam bem. Muito bem.

A fêmea deitou-se de lado e o filhote passou a mamar vigorosamente. Aproveitando a distração de ambos, Logan pôde aproximar-se. Há uma distância razoável, entretanto, a fêmea manifestou alguma agitação. Ergueu a cabeça e vasculhou os arredores. Sim, ela o havia percebido. Iria agora tentar fugir para o mar, sua negrura chamando a atenção do predador enquanto o filhote confiava na camuflagem para passar despercebido. Logan tinha que se rápido e não perder de vista a bancada.

A foca se arrastou freneticamente em direção à água, fazendo o maior estardalhaço possível. Mas aquele predador era simplesmente rápido demais. Logan alcançou-a e bloqueou seu caminho em direção ao mar. A foca rosnou, mostrando os dentes, tentando de uma última forma mostrar que se defenderia até o final. Mas este foi rápido: bastou uma pancada firme e certeira do porrete para espirrar sangue vermelho no gelo branco. A foca, já condenada, tremeu e se contorceu. Logan bateu mais uma vez, para a foca parar de se mover. Rapidamente, sacou a faca e cortou as artérias do pescoço do animal. Era a recomendação: diziam que assim os animais morriam mais rapidamente. Logan ainda achava curioso como essa proposta "humanitária" fazia a alegria dos grupos ativistas, mais pelo uso das imagens de todo o sangue espalhado no gelo do que pela morte rápida em si.Sem perder tempo, Logan olhou a paisagem, tentando localizar a bancada de gelo, após a corrida. As paisagens árticas são monótonas, repetitivas e facilmente confundíveis. Porém, seus experientes olhos reconheceram-na em meio às irregularidades. Correu rapidamente e lá encontrou o filhote, que gritou assim que ele se aproximou demais. Pequeno e desajeitado, não tinham como escapar. Logan só precisava se preocupar o ângulo certo do golte, para o sangue não espirrar muito no pêlo claro. Em um último segundo antes de descer o porrete, o filhote fitou-o com seus enormes e negros olhos. Logan parou por um instante. Não, ele já havia tentado ver a situação de um outro modo, há muito tempo atrás. Mas não conseguia enxergar ali a mesma coisa que viam os ativistas de regiões distantes do mundo. "Não é tão diferente de um fazendeiro sacrificando bois, mas nós não os criamos desde que nascem", ponderou, "não seria isto algo muito mais desumano?". O porrete desceu com violência e em segundos o filhote estava morto.
Com os ganchos na ponta dos porretes, carregou as focas por sobre o gelo. Quando avistou de longe o ponto de encontro, viu manchas negras no fim de dois traços vermelhos. Sorriu: Ethan fora mais rápido daquela vez. O rapaz estava aprendendo bem. Porém, o seu filhote compensava a demora. Deixou suas presas junto às outras e voltou para procurar mais.

Repetiram as idas e vindas nas horas seguintes, até que houvesse um número de focas suficientes para esfolar naquele dia. Cada um havia pego mais dois filhotes, um bom resultado. Ao final da tarde, trocaram os porretes pelo material de esfolamento e iniciaram a segunda parte do trabalho. Tirar apenas as peles e deixar o resto para trás era um desperdício que de certa forma incomodava Logan, mas eles não estavam preparados para levar as carcaças. E, ademais, as cotas canadenses eram generosas e focar-se apenas na pelagem dava mais lucro.
Quando havia retirado algumas peles, Logan sentiu um tremor percorrer por toda a superfície de gelo onde estavam. Imediatamente olhou para Ethan e viu que ele também havia notado. Um tremor daqueles podia indicar o pior pesadelo de alguém que caminhasse sobre pedaços de gelo flutuantes: a própria quebra natural daquele pedaço de geleira, na primavera. Era uma ocasião rara e perigosa, mas Logan já havia passado por ela, e estavam ficando mais frequentes conforme o planeta esquentava. O mais novo parecia alarmado, mas Logan tranquilizou-o. Pela força do tremor, se houvesse alguma rachadura, estava ocorrendo em um ponto distante. Tinham que ficar alertas, apenas isso.

Poucos minutos depois, o tremor se repetiu, mais forte.

Agora sim havia motivo para alarme.

Logan ordenou que deveriam terminar aquela última pele o mais rápido possível, entrar em contato com o barco e se dirigir para a região mais distante do mar, onde a geleira era mais espessa. Retornou a atenção para a sua pele e viu, com certa surpresa, o corpo da foca tremer. Desgostoso, se voltou para Ethan, pronto para aplicar-lhe uma reprimenda por ter deixado de matar completamente os animais. Era o que mais irritava os ativistas, a possibilidade de focas sendo esfoladas ainda com um resquício de consciência.
Neste momento, sentiu um impacto poderoso na geleira, e uma dor tremenda no tornozelo.

Quando olhou para baixo, não soube o que na visão lhe horrorizou mais. Se era a miríade de micro-rachaduras se espalhando pelo gelo, ou o fato de haver uma foca semi-esfolada, quase inteiramente sem pele, mordendo o seu calcanhar com uma força terrível. A foca rosnava e mordia, com se estivesse inteiramente viva, espalhando sangue seu e de Logan por todo o lado.

Caiu no chão, sem entender ao certo o que estava acontecendo, socando e tentando se livrar do animal. Sua mão cegamente alcançou o porrete, e bateu com força até que não houvesse sequer mandíbulas intactas que pudessem se prender a ele. Soltou-se da foca, rolando para longe, com o pé seriamente contundido. Foi quando ouviu o grito cortante do companheiro. A cena que presenciou ao conseguir focar novamente a vista lhe abalou a gélida alma como nenhuma outra em sua vida.

Ethan estava no chão, se debatendo com três focas, que lhe atacavam as pernas, tronco e cabeça. E não eram só elas: todas as focas que os cercavam estavam se movendo. Rosnando, se arrastando, mesmo aquelas carcaças inteiramente despeladas. "Meu Deus, eu mesmo matei metade desses animais. E eu sei que matei", pensou desesperadamente o caçador, "isso não pode estar acontecendo!".

Ergueu-se mancando dolorosamente, tentando chegar ao companheiro para ajudá-lo. As focas vieram em sua direção, olhos mortos, bocas vorazes, mesmo os filhotes tentando abocanhá-lo. Abriu caminho em meio a elas gritando, golpeando furiosamente com o porrete, mas parecia não adiantar. Os animais eram jogados para longe com a força das pancadas, e logo voltavam a se mover em direção a ele.

Quando estava chegando em Ethan, houve um novo tremor no gelo, tão intenso que derrubou-o novamente no chão. Um filhote ensanguentado conseguiu morder seu braço e Logan jogou-o longe, se agitando e berrando. Engatinhou até o companheiro, mas as focas já não se interessavam por este: Ethan jazia sem vida, coberto de sangue, o pescoço tomado por um grande ferimento que rompera a jugular.

Logan não teve tempo de lamentar pelo amigo. Levantou-se cambaleante e se viu cercado por animais mortos, mas vivos, querendo dar-lhe o mesmo destino. Tentou correr para longe, mas consegui apenas dar alguns passos antes de um novo tremor e queda. O gelo apresentava rachaduras consideráveis, alguns pesados blocos caíram e rolaram das partes mais elevadas. As focas se aproximaram rosnando, como um coro de vozes infernais cantando o réquiem de um outrora poderoso caçador. Tudo o que Logan podia fazer era gritar, agitando o porrete. Viu-se, subitamente, como a primeira foca que abatera no início do dia: diante de uma morte desconhecida e inevitável, mas ainda assim dando uma última demonstração de que não venderia sua vida de modo fácil...

Subitamente, tudo parou.

Os corpos das focas simplesmente pararam e se esparramaram pelo chão, imóveis, como todos os cadáveres normais deveriam ficar. Não houve novo tremor.

Dentro do silêncio sepulcral do ártico, Logan ouvia apenas a própria respiração pesada, ofegante. Por um segundo, pensou que tudo fora um sonho. Apenas a dor no tornozelo parecia latejantemente lhe dizer que aquilo era real.

Porém, ao invés de despertar de um sonho, Logan estava para adentrar no pior do pesadelo.

Um novo tremor, de força absurda, fez a geleira explodir diante de seus olhos. Grandes blocos de gelo se espalharam pelo céu e pelo mar. Ele caiu de costas, cercado pelas focas inertes, completamente desnorteado.

Encurvado e ofegante, ergueu-se lentamente, encarando ofegante aquela coisa que saía do mar enregelante para se arrastar pesadamente sobre o seu pequeno iceberg, rachando o gelo, quebrando pedaços com seu peso formidável. O cérebro do humano não conseguia compreender exatamente o que visualizava, acostumado a padrões limitados e um mundo concreto, e a imagem penetrava por todas as suas sinapses, destruindo as conexões nervosas de seu cérebro e fazendo sua boca embarcar em um grito louco e descontrolado, enquanto tudo o mais do seu eu se dissolvia num abismo de terror e incompreensão. Num último acesso de racionalidade, relembrou uma recente conversa de bar e pensou que, definitivamente, aquela não era a face que os deuses deveriam ter...
O Kraken procurou pelos seus tripulantes perdidos durante dois dias, mas, diante da desolação da geleira destruída, só puderam concluir que Logan e Ethan tinham sido vítimas de um infortúnio do acaso. O capitão, velho lobo dos mares árticos, sabia que coisas daquelas aconteciam e só restava lamentar pelos companheiros estarem na hora errada, lugar errado. Decidiram que era melhor voltarem para um replanejamento e tentar ainda aproveitar o que desse da temporada de caça. Pararam na mesma aldeia na volta e, num clima pesado e descontrolado, pouco deram atenção aos agitados rumores de um xamã enlouquecido por visões pavorosas que corriam entre os Inuit. Aquela aldeia jamais recebeu caçadores estrangeiros de braços abertos, pois, segundo os habitantes, os forasteiros haviam despertado coisas muito além do controle de qualquer humano. E, aos deuses e espíritos primevos da natureza, era melhor não desafiar.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Cinismo natural

- “Isso é o que restou da região conhecida como Morada das Focas. Sangue.”
- Ô mãe! Olha lá o que fizeram com os bichos!
- “A polícia do lugar acredita que mais de mil aves tenham sido abatidas por predadores na última noite.”
- Nossa, que barbaridade! Não se tem mais amor pelos animais mesmo.
- “As suspeitas são de que o completo abatimento das aves tenha sido feito por um grupo de turistas que já deixaram o local”.
- Não vão fazer isso com o Toby, né, mãe?
- “Os moradores do local, desolados, dizem que os bichos nunca fizeram mal a ninguém. Este dono de hotel, diz que o sustento de toda a região era o turismo animal e que não sabe como eles viverão agora.”
- Não, filho. Essas coisas só são feitas por caçadores maus que maltratam os bichinhos e esquecem que eles também são seres vivos e tem sentimentos.
- “Deixamos o local com a certeza de que a neve rubra era só um símbolo da vida que se havia ido. E que, certamente, os culpados seriam condenados.”
- É um absurdo. Mas agora desliga essa tevê e vem que o churrasco está pronto.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Caçada Frustrada

No ártico o ritmo é liquefeito. Não se pode partir com o nascer do sol onde o sol não se põe por meses. Na luz difusa, as horas são tão diáfanas quanto o sol. No ártico, o que dita o ritmo é a vida. E a morte. E a busca incessante por uma e por outra. No gelo ou na água, o que dita o ritmo é a caça. E para quem sobrevive no ártico, a temporada de caça está sempre aberta.

Reunimo-nos à beira do gelo. Caçadores. Os melhores. Nômades, desgarrados. Parentes pelo sangue ou pelo frio. Pela caçada. A água fria nos recebeu como nos recebia todas as vezes. Lançamo-nos por aquelas águas como se pudéssemos realmente ver as correntes. Nativos, tão naturalmente adaptados àquele ambiente como se fossemos peixes. Mas não éramos. Éramos caçadores. Treinados pelos anos, pelo ambiente, uns pelos outros. Éramos os melhores.

Seguindo as correntes víamos longe miúdos cardumes de atuns ou salmões. Mas a caçada previa algo mais. Estava no ar, fresco, podíamos sentir. O dia era de focas. Carne, pele e gordura. O ouro do ártico. Rumamos à costa, em busca do gelo fino. O cheiro da antecipação no ar. Mas não era apenas a antecipação que se podia sentir. Era o cheiro de sangue. Fresco. Aos montes. De longe foi possível ver a chaga vermelha no gelo. A própria água, escura, cheirava a sangue. Haviam chegado antes de nós.

À beira do gelo, fino e trincado, os restos do abate. Gordura espalhada, órgãos desprezados e pegadas na neve. Amadores. Abateram fêmeas jovens e filhotes. Mataram a caça de amanhã. Restamos apenas nós, caçadores. Famintos de volta às águas profundas, mergulhando em busca de cardumes. Uniformes negros e estômagos pálidos. Na água que nos cerca, o gosto do sangue desperdiçado. E é a nós que chamam de assassinos.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Tema da rodada

Apesar dos pesares, parabéns para nós pelos mais de 10.200 acessos!

E agora vamos chacoalhar essas coisas de novo.

O tema da rodada é:


A interpretação do tema é por conta do escritor... ;)

Divirtam-se!

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Votação: Cinismo

Está aberta a votação para o tema Cinismo.

Você tem até o dia 30 de novembro para votar na melhor postagem sobre o assunto.

Cotidiano

1929
- Não é a coisa mais linda que você já viu?
- Com certeza! Jamais uma criança me pareceu tão linda! (Será que ela não vê que ele tem cara de joelho como todos os outros bebês que acabaram de nascer?) 

1934
- Mãe, mãe, olha meu desenho!
- Nossa filho, que bonito! (Esse é o milésimo desenho igual que ele faz, será que ele tem problemas psicológicos?) 

1942
- Você um dia fica comigo?
- Claro, só acho que não é o momento de estarmos juntos. (Idiota, você é feia e gorda, jamais vou ter coragem de andar na rua com você!) 

1947
- Desculpa, mas eu acho que é o melhor a fazer.
- Eu nunca vou amar ninguém como amei você. (Mas aquela sua amiga é bem gostosa. Vou chorar minhas mágoas pra ela!) 

1952
- Você sabe que ser médico é desapegar-se completamente dos bens materiais para salvar vidas, não é?
- Com certeza. A vida em primeiro lugar. (Por isso vou cobrar caríssimo as minhas consultas: minha vida em primeiro lugar!) 

1955
- Você aceita Tereza como sua esposa, amando-a a respeitando-a todos os dias de sua vida?
- Sim. (Desde que ela não comece a escolher minhas secretárias e nem a mexer nas minhas coisas) 

1965
- Olha, meu amor, nosso bebê!
- Juro, é a coisa mais linda que eu já vi! (Tem a mesma cara de todos os bebês que eu já tirei de barrigas....) 

1974
- Meus pêsames. Você sabe que eu gostava muito do seu pai.
- Obrigado, sei sim. (Enquanto você roubava dinheiro dele era fácil gostar, seu filho-da-puta!) 

1979
- Pai, vou casar.
- Parabéns, filha! Você gosta mesmo dele? (Ele tem dinheiro para te manter e ainda me sustentar no futuro?)

1982
- Olhe lá, coitadinha. Precisamos rezar por ela.
- Fique tranqüila, ela vai sair dessa. Eu tenho fé. (Você ainda não percebeu que ela está morrendo?) 

1988
- Fique tranqüilo, você vai sair dessa. Tenho fé.
- Obrigado. Sei exatamente o que você quer dizer.

AUTO-AJUDA CÍNICA EM 9 PASSOS

1• Seja sincero
2• Desapegue-se de tudo aquilo que for material
3• Viva em coerência com seu modo de pensar
4• Não negue seus instintos, por mais ousados que possam parecer
5• Valorize a natureza
6• Aprecie os pequenos prazeres
7• Exercite-se
8• Liberte-se de pré-conceitos e preconceitos
9• Esqueça as convenções

O cínico e o hipócrita

- Olha lá o cachorrinho! Tadinho... como é que pode? Eu não entendo essas pessoas, crápulas, nojentos. Só porque pegam um pouco de água em casa, abandonam o podre coitado ali, amarrado num poste, sem comida nem água, sofrendo sozinho e esquecido. Monstros nojentos! Como podem ser tão podres a ponto de fazer isso com o pobre animal? Onde estão os donos desse cachorrinho lindo?
- Ali embaixo daquela casa destruída pelo deslizamento.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A Ilusão

26/12/06

- A cidade está embaixo da água!

- Sim. E daí?

- Como assim "e daí"? Você ouviu o que falei? Enchente, caos, como não havia há mais de uma década!

- E como certamente haverá daqui a mais uma. E daí?

Olhei para ele, transtornado.

- Mas o desastre é agora! As pessoas não querem saber se essa é apenas mais uma enchente e se haverão outras. Elas estão desabrigadas, com frio, com sede, e isso é agora!

Ele suspirou com expressão entediada e tomou um gole da cerveja.

- Esse é o problema.

- O que, as pessoas??

- Também. Mas eu estava me referindo ao seu "aqui, agora". As pessoas querem salvar seu rabo neste instante e, para isso, vão fazer com que o presente seja o momento mais dramático da História. Olhe nas notícias, está todo mundo reclamando, se fazendo de coitado, do caminhoneiro parado na estrada bloqueada à tiazona que perdeu seu portão elétrico.

Acendeu um cigarro.

- E isso é merda. É só mais um grupo de macacos com medo de água.

- Meu Deus, como você pode pensar assim? Não são macacos, são pessoas, são vidas!

- E macacos não são vivos? - respondeu com um sorriso e uma baforada - Ninguém é vítima inocente nessa história. Despelaram o solo e cobriram-no com concreto, agora estão pagando pelas suas escolhas.

- Cem pessoas já morreram, entendeu? Soterradas. Afogadas. Pense no sofrimento que cada uma delas teve ao passar por uma morte horrível destas!

- Coitadinhas, prenderei a respiração durante dez segundos em respeito.

Fiquei paralisado com a resposta absurda. Eu não conseguia lidar com aquilo. A sua falta de compaixão era inaceitável. Não consegui responder, apenas olhar para ele, desolado.
Ele fez uma expressão de desgosto e se ajeitou na cadeira.

- Não me entenda mal. Eu imagino que morrer sem ar seja uma das coisas mais dolorosas do mundo, seja com os pulmões cheios de água ou terra. E sei muito bem que essas mortes afetam muito mais do que cem pessoas. Cada uma tinha uma família. Amigos. Dezenas serão afetados por cada morte, quem sabe centenas, se formos bem otimistas. Teremos alguns milhares de sofredores, se juntarmos todas as mortes. Isso estimando generosamente, pois certamente alguns desses eram medíocres odiáveis.

Parei diante dele e o olhei profundamente nos olhos, tentando articular pausadamente as frases, ver se despertava alguma coisa naquele coração gélido.

- Milhares de pessoas. Sofrendo. E apenas por conta das mortes. Dezenas de milhares, desabrigadas. Perdendo tudo. Pense nisso, por favor.

- Sim, eu pensei.

Ele me encarou de volta, a centímetros do meu rosto.

- E isso é merda.

Balancei a cabeça e sentei num canto, desolado.

- Pode deixar que restarão bastante pessoas no mundo para morrerem ainda, e você poderá continuar correndo em círculos balançando os braços e chorando.

Eu realmente estava com os olhos marejados momento.

- Um idiota correndo em círculos... É essa a visão que você tem de mim?

- Na verdade, sim.

Uma lágrima nasceu. Mas ele continuou.


- Pois no que você está sendo diferente de mim, também aqui parado?

- Eu sinto. Eu sofro. Eu tento ajudar! É assim que as pessoas são. Elas não odeiam umas às outras e a todo o resto. O sofrimento dos outros também nos atinge!

- Você sente. Isso não reconstrói nenhuma casa. Você sofre. Isso não faz nenhum morto ficar de pé. Você tenta ajudar, quem? O seu vizinho, o seu parente, o seu amigo, talvez o dono do mercado da esquina...

- E o que você faz para aqueles que não conhece? Você os vê na TV e derrama uma lágrima idiota como essa? Muito útil de sua parte. Você doa um casaco que não mais usa e que está mofando no seu armário, sob três camadas de roupas velhas? Ótimo, muito caridoso. Mas você tiraria agora o casaco, se estivesse usando um, para esquentar aquele desabrigado?

- Sim, eu faria isso, se o outro estivesse precisando mais do que eu!

- Não, você não faria, e é melhor ficar calado se é para ser hipócrita. Você não abriria a sua casa para abrigar cinco famílias desabrigadas por todo o tempo necessário para elas reconstruírem a sua.

- Mas isso é diferente...

- Não. Nenhuma diferença. Você ajuda no limite da sua conveniência. Se começa a ser inconveniente, você passa a encarar o fato de que, ei, alguns se dão bem, outros se dão mal, fazer o que. Eu também não teria nenhuma reserva em emprestar o isqueiro a um coitado que passasse agora por aqui. Mas, se ele me pedisse um cigarro, é outra história.

- No fundo, tudo o que você faz é ter uma sincera ilusão de que se sentir mal é algo que faz alguma diferença para os outros. Essa é a única diferença entre eu e você. Eu simplesmente não tenho essa ilusão. E lembre-se: aqui não temos expectadores. Você não precisa fazer nenhuma peça de teatro para convencer os outros de que seu altruísmo existe.

Mais uma cerveja aberta.

- Afinal, quem se importa com alguns barracos de pobre soterrados?..

Era incrível o modo como ele achava que a sua estupidez valia para todos. Ele falava a partir de um ponto de vista frio, cruel, desumano, e achava que todos eram assim? Meu Deus, o que pode ter ocorrido para ele ter se tornado aquilo?

- Você fala isso por que está aí, seco, confortável -falei, com raiva - É muito fácil para você dar uma de irônico, querendo aparecer com esse desprezo fútil. Tudo porque você nunca passou por uma situação tão desesperadora...

- Ha! - foi a sua alta e seca risada - e você, já?

Ele passou a cuspir rapidamente as frases.

- Melhor ainda, e isso faria alguma diferença?

- Se eu tivesse sofrido, o sofrimento dos outros seria maior?

- Se minha família tivesse morrido soterrada, isso aumentaria o número de mortos em mais que três?

- E, se eu mesmo tivesse morrido, isso faria sobrarem menos do que seis bilhões neste pedaço de rocha girando de nada a lugar algum num universo sem fim?

Silêncio, tão pesado quanto o céu que nos cobria.

- Aonde você quer chegar com isso? - perguntei, após uma longa pausa.

- A História, humanidade, a vida... Tudo isso é muito maior do que cada um de nós, e vai sobreviver a cada um de nós. Aonde eu quero chegar? Em lugar algum. E esse é outro problema. Existem tolos como você que acham há algum lugar para chegar.

Esvaziou o resto da cerveja, já quente.

- Esqueça os idealismos bonitinhos e fantasias literárias. Não perca tempo se preocupando com o universo.

A derradeira baforada do cigarro.

- O universo não se preocupa com você.

Ele se levantou e saiu. Afastou-se sem pressa, sob as pesadas nuvens do céu sem cores. Ele não havia vencido fácil desta vez. Eu fiquei ainda ali, me perguntando se deveria segui-lo. Mas, desta vez, alguma coisa me obrigava a ficar. Eu não saberia dizer o que, pois, se soubesse, teria falado a ele. Talvez houvesse, no fim das contas, algo mais do que a sua cínica visão poderia enxergar. Ou, quem sabe, era só porque havia um último cigarro, e uma cerveja. Abri, acendi e refleti, enquanto observava aquele eu caminhando lentamente sobre o solo estéril do deserto morto.

***

Esta história é, de certa forma, uma continuação desta.

Escrito na lama

Cinismo é crer que alguém ainda escreva sob as águas. No entanto, se as águas levam tudo, não podem levar as palavras. Continuemos, pois, com todo o cinismo do mundo.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Tema da Rodada

Não fazia a mínima idéia de qual tema propor para esta rodada. Pensei, pensei, pensei e pensei mais um pouco até chegar a uma conclusão. Lá vai o novo tema:

CINISMO

Duelistas têm até o dia 26/nov/2008 para publicar seus textos. A votação começa no dia 27. Vamos à luta. Grande abraço.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Votação

Está aberta a votação desta rodada.

Participe comentando neste tópico e indicando o texto de sua preferência até o dia 20/11/08.

domingo, 16 de novembro de 2008

Filosofia da composição, o retorno

16/11/08

Precisamente cento e cinquenta e três anos depois de Poe, chegou a minha hora de filosofar sobre a composição. Não que a situação seja a mesma: Poe, um desgraçado pouco relevante, chupava os ossos de uma de suas raras obras de sucesso em vida. Ou, se você for ingênuo o bastante, pode achar que ele realmente ansiava por um tour de force literário ao descrever a gênese do mais conhecido dos corvos. No meu caso, é obrigação. Ah, esses projetos com temas e prazos, literatura programada, ou "incentivo à criatividade", como quiser. Felizes aqueles que não precisam pensar em um domingo preguiçoso de céu encoberto e ressaca (esta não exatamente no mar). Mas, quando outros têm que passar pela mesma situação, o seu tormento cria uma obrigação moral para obedecer às regras. "Nós nos ferramos, então você tem que se ferrar também". Ê, laia, essa vida...

E agora, como proceder? O que diabos escrever? Estou no meio de campo, o estádio inteiro aguarda pelo pontapé inicial. Onde está aquele parceiro de time que sempre fica ao lado nesse momento? Imaginem o constrangimento de um jogador de futebol solitário no meio do círculo central, todos os olhos esperando ansiosamente pelo toque na bola. Metade lhe babando os ovos como filho de deus e metade lhe elogiando como filho da puta.

E, ainda por cima, querem que seja de um jeito criativo... "Criativo" é uma palavra um tanto quanto subjetiva, não? Criativo significa diferente, inusitado? Bem, o "Cabum" foi uma obra bem criativa, nesse sentido. "Escalafobécia" não fica muito atrás. E o que dizer de "A mão que segura o cutelo", escrita em 20 minutos e campeã da rodada? Realmente, leitores e duelistas não primam pelo bom gosto, às vezes...

Pense, pense, Félix... Você só precisa da idéia inicial, o primeiro impulso. Geralmente é assim. Uma cena, Sim, geralmente é uma cena. Um flash cinematográfico obscuro e nebuloso, inteiramente dependente da imagem, mas que de alguma forma precisa ser traduzido em palavras. Nunca dá muito certo, mas ainda assim os outros parecem gostar. Às vezes. "For me, gás!" não foi uma sequência elogiada. Mas, normalmente, estas nunca são, com exceção do Indiana Jones e de um príncipe perdido numa cabana por aí. Isso acaba de me lembrar que o subtítulo deste texto é "O Retorno". Pai do céu, já estou até imaginando Poe vestido de Rambo... Não, não é o tipo de cena que me inspira.Mmas poderia render uma comediazinha psicodélica qualquer hora dessas. Vou anotar no arquivo de "Idéias para textos". Um parágrafo basta para lembrar no futuro. Salvar, pronto. De volta ao tempo atual.

Eu poderia fazer um meta-texto. Daquele em que eu finjo descrever o ato de sentar diante do computador e iniciar uma obra. Um texto escrito sobre escrita de textos. Não tenho a menor dúvida de que alguém vai usar esse artifício. É o mais fácil, o mais manjado. Já fiz isso, o resultado foi um matacão de várias páginas filosofando sobre a morte. Não a coisa mais adequada para esta rodada, tampouco algo que reflita tão fielmente as minhas atuais filosofias de vida.

Filosofias de vida, essa é outra abordagem interessante. Uma idéia pode gerar um texto. Será que eu consigo agora? Vejamos, rápido brainstorm filosófico com os perrengues teóricos mais atuais desta cabecinha de merda. Ambientalismo... não. Política internacional e relações de poder... não. Egoísmo e egocentrismo... não. Baralhos de Magic... não. Tricolor paulista tricampeão... não. É, acho que não será por aí.

Frases de efeito e emoções, minha última salvação. Uma frase de efeito pode gerar um texto inteiro. Muitas e muitas poesias nascem assim, até contos. Mas geralmente a frase vem associada com uma cena. Sem cena, sem frase. Sem frase, sem cena. Ovo, a galinha manda lembranças. Por sinal, o ovo sensu stricto veio antes. E o ovo da galinha, obviamente, depois da galinha, se você definir "ovo de galinha" como "aquele colocado por uma galinha". Se você definir como "aquele que gera uma galinha", é ainda mais óbvio que ele veio antes. E se você pensar que o ovo é a galinha, a partir do seu momento de concepção... o mundo colapsa em um buraco negro xde lógica, de fazer inveja ao LHC.

Filosofia do ovo de galinha, veja onde vamos parar se dependermos de cenas, frases e filosofias, no momento.

E as emoções? Hum, pode haver alguma coisa aí... Seja naquela leve exultação após um grande dia, nos delírios fantasiosos das paixões platônicas ou na melancolia bêbada do fim de uma noite na qual se esperava mais, as emoções originaram muita coisa. De escarros poéticos paridos com letra ininteligível em papel a sessões sádicas esculachando furiosamente o teclado. Quando vai existir um sistema corriqueiro e funcional de escrita por voz? Os dedos são tão lerdos de vez em quando. Mesmo para quem cata milho à velocidade da luz, de um modo que já fez várias e várias pessoas arregalarem os olhos diante das metralhadas.

Alô, coração, esta palavra bonitinha que usamos quando queremos nos referir a uma parte do cérebro, há alguma coisa aí dentro? ECO... ECo... Eco... eco... ec... e... É, estamos meio vazios ultimamente, fechados para balanço. Nem a depressão tem sido doce ultimamente, mais tediosamente cinza do que preta e branca. Ah, as onomatopéias...

Mas estou vendo uma faisquinha lá no fundo... Um cintilar de brasas onde já houve uma fogueira devoradora. O suficiente para agarrar e não deixar escapar. Aqui está a minha idéia! Muito conveniente, já que é um pedaço bem representativo do meu universo literário. Aliás, do universo artístico em si. Noventa por cento de tudo o que já foi composto ou escrito deveria se referir a isso. É comum. É belo. É universal. É banal... A maravilha da arte é processar uma pequena brasa em um incêndio digno do cerrado em época de seca. Uma pequena atração, um olhar a mais, um meio sorriso disfarçado... e pronto, lá se vai metade do Parque Nacional das Emas, coitadas.

Afinal, para que um chuvisco quando se pode ter um temporal? Ninguém liga para uma pingadela morosa no telhado, mas uma tempestade retumbante agita até as mais gélidas almas. Por que falar de atração quando se pode falar de paixão? Por que se gabar de uma conquista passageira quando se pode discursar sobre um amor além da vida? A literatura permite o exagero. Permite a catástrofe. Permite que um corno chorão se torne um ultra-romântico atormentado. É possível ter inúmeras vidas, e terminá-las dos mais criativos meios, desde que choque, emocione, chame a atenção. Poucos são os idiotas que cortam os pulsos hoje em dia, penso eu. Deve doer pra caralho antes de matar. Mas não há meio mais belo de misturar a agonia do corpo físico com o alívio espiritual pelo lento esmorecer de uma negra existência...

Um homem. Uma mulher (ou mais de uma?). Os atores se encontram em um fundo branco. Este vazio precisa ser preenchido. O palco é fundamental. Tenho uma atração irresistível por lugares e tempos fora do usual, que por si só já evocam uma vasta gama de sensações, sem que o escritor precise sequer se esforçar a respeito. Mas também há uma beleza sórdida em escrever sobre o bizarro em um fundo cotidiano. Nos faz pensar em tudo o que existe por trás das histórias que ouvimos desatentamente nos noticiários. Ele escreveu uma carta, se jogou do prédio e virou patê na rua. Mas o que se passava em sua cabeça, quais foram as sensações que tentaram ser transpostas em frases, a imagem de quem dançou em seus olhos um segundo antes de beijar o cimento? Ela o matou e foi presa. Qual a sua reação quando viu aquele bilhete amassado no fundo da pasta, revelando a traição, e quais foram as palavras que trocaram antes do golpe fatal? "Olá, querida, desculpe pelo atraso, tive uma reunião importante?". "Tudo bem, amor". Pimba, rolo de macarrão na nuca. Sim, o seu ex-vizinho presidiário pode ser apenas um poeta ultra-romântico que fugiu das páginas de papel.

Por tudo isso o palco é fundamental. Geralmente não é o fim da trama, apenas um meio. Mas ninguém toma Nescau sem leite, certo? Comparação nada poética, por sinal... Comparações são essenciais. As analogias são uma ferramenta tão útil quanto seu potencial para serem bregas. "O olhar dela é como o cintilar de"... alguma coisa brilhante sobre uma superfície reflexiva, óbvio. E tome blábláblá. Triste. Mas de que outro modo explicar o inexplicável? A escrita, infelizmente, é um meio medíocre de expressar emoções. Como fazê-lo? Eu posso inserir frases de efeito, aquelas que fazem o leitor quebrar a continuidade apenas para lê-las de novo. Eu posso sentar o dedo no teclado e abusar de !!!!!!!! e ?????? e !?!?!?!?!, sendo acusado de criar uma festa de exclamações. Posso usar inteligentemente as formatações, particularmente o ultra-versátil itálico e o poderoso negrito, com todas as suas conotações Posso até usar nosso novíssimo condicionamento internético e DETONAR NAS MAIÚSCULAS. Certamente, não há modo melhor de exprimir RAIVA e ÓDIO na escrita. Imprecações são um ótimo recurso, mesmo que sejam suaves "maldições!". Mas o que realmente o leitor não espera é de ver um narrador poético e romântico dizer que ELE AMAVA AQUELA VACA, PORRA!!!!! Afinal, poetinhas atormentados não deveriam falar palavrões, apenas ficar se masturbando em meio a palavras obscuras, certo? Mas, embora eu goste de ficar ébrio, às vezes dá vontade de apenas encher a cara...

No fim, a frase é sempre um troço frio que nada mais exibe do que traços residuais de emoção. É um cadáver, nada mais. Essa comparação foi melhor. Por isso a música toca tão mais profundamente na alma, não há como não se emocionar com um bom vocalista. E o cinema une imagem ao som e verso, tendo o potencial para estar no topo da pirâmide artística. Pena que é deixado a cargo de mentes condicionadas a padrões restritos e lucro fácil.

Já tenho os atores, já tenho o palco, agora é só encher linguiça em busca do final. O final é a parte mais importante da obra. É o nosso último elo com aquela obra, o fim do nosso relacionamento com o texto. Dele depende a impressão final que teremos de tudo aquilo. Um texto primoroso com um final tosco é como uma trepada que não termina em orgasmo. É legal, sim. É comum e bom do mesmo modo, dirão principalmente algumas moças. Mas sempre fica uma sensação de "poderia ser melhor". Já no caso inverso, de um texto meia boca com um final bombástico... Bem, ao menos foi uma gozada, não é? Um bom final pode ter vários climas. Uma bomba inesperada, "afinal, foi a primeira vez que ela tinha matado". Ponto final, leitor, pense o que quiser. Ou uma breve descrição pós-climáxica, em que o escritor obriga o leitor a ficar mastigando por algum tempo as idéias e sensações que ele quis transmitir no seu climáx. Os últimos crocitares do corvo cortaram seu coração de modo indescritível, conviva com isso, pois ele não deixará sua janela nunca mais. Nunca mais...

Certo, então os elementos finais já estão montados, está ficando uma história interessante. Tema usual, roupagem um pouco distinta, dá para o gasto para uma rodada de Duelo...

Mas, ei, pera aí.

O tema não era "escreva uma história de amor".

(os espaços são um recurso excelente para criar tensão no final)

(sim, é bem legal)

(o recurso, não o final)

Era para escrever sobre escrita.

Mas bah, que merda. Esqueci ali pela metade.

Ok, esse romance vai ter que ficar para outra hora. Foi mal, pessoal!

Suspeito que esta foi uma foda sem gozada...



***

A título de curiosidade, a Filosofia da Composição de Poe pode ser encontrada aqui.

O Processo

Sentou-se em frente à velha máquina de escrever, pegou a folha preenchida que repousava na máquina e arrancou com um único puxão. Não se preocupou em descobrir o que estava escrito. Simplesmente amassou a folha e arremessou em direção ao lixeiro, no canto da sala. Errou e o papel juntou-se a tantos outros que rodeavam a lata de alumínio, já cheia.

Sorveu o último gole de cerveja já quente e colocou uma nova folha na máquina. Caminhou até a cozinha e largou a garrafa vazia em cima da pia. Abriu a porta da geladeira, procurou mais algumas latas, mas já havia bebido todas. Procurou por uma garrafa em algum lugar da casa, e achou meia vodka caída no sofá. Bebeu um gole direto do gargalo e franziu a testa enquanto os olhos avermelhavam.

Abriu mais uma vez a porta da geladeira e procurou algum refrigerante. Encontrou só uma jarra com um resto de chá mate. Misturou os dois num copo grande, meio a meio. Voltou ao escritório, descansou o copo sobre uma pilha de papéis e sentou-se frente à velha Olivetti. Bateu com força os dedos que enchiam o ar com o som característico e hipnotizante.

A primeira linha se preencheu com velocidade, assim como as seguintes. O copo se esvaziava na mesma proporção que a folha se enchia. Fred adormeceu, braços cruzados apoiando a cabeça embriagada sobre as teclas. Na manhã seguinte, Fred acordaria, arrancaria a folha da máquina e a desprezaria num canto qualquer, sem ao menos ler o que estava escrito. Procuraria por uma bebida por toda a casa, reclamaria da ressaca e começaria tudo de novo.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Alfa

Corria com passos largos, quase aos saltos, colina acima. Não ousava olhar por sobre o ombro. Só ouvia o farfalhar veloz na grama às suas costas. O galpão velho e poeirento da ultrapassada oficina tinha a porta aberta. Refúgio débil, não obstante, um refúgio. Cruzou o vão de entrada e arrastou com esforço a porta de madeira pesada. O facho de luz exterior foi minguando junto com a imagem das perseguidoras. Passou o ferrolho, respirou fundo e colocou o ombro de encontro à porta, projetando todo seu peso. Não tardou para sentir o impacto do outro lado. O choque fez a porta tremer, mas ela se manteve firme e imperturbável. Ele, no entanto, não podia dizer o mesmo. Já o tinham atingido de alguma forma, mas não o tinham alcançado. E por hora isso parecia o suficiente.

Podia ouvi-las através das paredes de madeira. Uma luz frágil entrava filtrada pelo teto de vidro sujo. Dentro, em meio a placas de madeira e restos de serragem, serras, martelos e pregos enferrujados sugeriam armas pouco eficazes. Podia praticamente sentir as criaturas contornando a construção, cercando o barracão. Não eram muitas, mas eram implacáveis. Ouvia o roçar incessante contra as paredes, um choque aqui, um golpe mais adiante. E tudo que o mantinha protegido não era mais que uma tênue fronteira de madeira fina.

Um estalido de madeira partida o pôs em movimento. Driblou o ferramental velho a procura de um local melhor protegido. Pôde ouvir a parede se partindo e as invasoras se arrastando para o interior do velho galpão. Ouvia o som correndo pelos corredores de equipamentos ociosos, já podia sentir o cheiro das criaturas se aproximando. Em um canto, dava as costas à parede para evitar um ataque inesperado. Pôde ver surgir os olhos brilhantes, pregados nele e, mesmo sob a luz filtrada pelo telhado, pôde ver as criaturas se aproximando. Tentou esquivar-se da primeira investida, a segunda arranhou-lhe o corpo. Não pôde evitar a terceira. Quando a criatura se afastou ainda podia sentir as marcas deixadas pelas presas. As criaturas se afastaram um pouco, rondando, enquanto ele se prostrava ao chão. Sentia o conteúdo inoculado percorrer-lhe o corpo até o coração. Sentiu quando lhe subiu pelo peito à cabeça. Sentiu-se transformando.

Quando ergueu a cabeça tinha os mesmo olhos brilhantes das criaturas. Tornou-se um pouco como elas. E elas como ele. Quando o bando partiu, ele estava entre elas. Deixou-se levar, selvagem. Correu como um igual. Farfalhando grama, deixando para trás o galpão envelhecido. Quando se ergueu entre elas, era outro. Quando deu por si, elas não mais o perseguiam. Agora, elas o seguiam.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O segredo

Dois fortes homens conduziam o escritor a uma sala escura. Um deles o jogou bruscamente sob um chuveiro previamente ligado. A temperatura era baixa. A água fria quase congelava o magro homem barbado, que se contorcia e contraía todos os músculos a cada gota que atingia seu tronco.

- Quais são as suas técnicas, seu inseto desprezível?

A voz vinha de longe, num misto de fúria e incompreensão. Era uma voz retumbante, daquelas impossíveis de se esquecer. O literato permanecia no chão sob a água gélida que vertia do chuveiro. Tentava balbuciar algumas palavras, sem sucesso. A voz inquisitória continuava.

- Impossível que nosso povo idolatre um ser tão fraco, inútil e repugnante quanto este. Que poderia um reles escritor representar a uma nação? Nada. Absolutamente. – Após alguns segundos de reflexão, prosseguiu. – Há algo errado com este traste. Só pode ter lançado algum tipo de feitiço sobre aquela multidão. Só pode.

O tom da voz passara de furioso a lamurioso em questão de poucos minutos. Desiludido, o inquisidor ordena que um dos leões-de-chácara desligasse o chuveiro. A pele do escritor beirava a cor de uma rosa púrpura. Ele tremia.

- Tragam minhas ferramentas! Hoje não saio daqui sem o segredo deste homem.

O frio era tão intenso que o literato parecia vestir uma carapaça. Sua pele estava completamente anestesiada. Não sentiu absolutamente nada ao ter a derme de suas costas aberta por uma navalha. Foi só quando despejaram sobre ele o álcool que pôde perceber o que estava por vir. Aqueles homens estavam determinados.

Navalhas, agulhas, alicates. A caixa de ferramentas prometia. Era inconcebível que, em 2023, ainda se utilizasse técnicas de tortura tão arcaicas. Tentava gritar para que parassem. Suplicava, mas só em pensamento. De sua boca não saiam nada mais do que alguns poucos gemidos secos e abafados, típicos de quem aprendeu a engolir a própria dor.

- Estas porcarias antigas não estão fazendo efeito. Tragam meu brinquedinho novo.

Com semblante assustado, aqueles homens, que antes pareciam forjados em aço, trouxeram o aparelho. O medo estava nitidamente estampado na expressão de cada um.

- Queremos saber quais são suas técnicas. Você fala e paramos com isso de uma vez por todas.

O escritor nem esboça reação enquanto o aparelho é instalado. Fone nos ouvidos. Óculos. Eletrodos. Amarras esticadas para impedir qualquer movimento dos membros.

- Coloquem três segundos!

Enquanto o aparelho emitia sons, luzes e conduzia eletricidade pelo corpo do literato, só se ouvia um sussurro cansado.

- Piedade... piedade..........
- É simples e fácil! Seremos piedosos se contares o que queremos.

O escritor não esboça reação mais uma vez, aumentando a fúria do inquisidor, que toma medidas desesperadas.

- Coloquem cinco segundos em potência máxima!
- Mas isso pode matá-lo – responde um dos homens, surpreso. – Ainda não sabemos o efeito de uma exposição dessa magnitude, senhor!
- Então correremos o risco.

Os homens obedecem prontamente. Com o equipamento preparado para a dose possivelmente fatal, o inquisidor pergunta pela última vez.

- Quais são as tuas técnicas, senhor?!

Após alguns segundos de silêncio, o pequeno homem se contorcia por cinco intermináveis segundos até quebrar alguns de seus ossos com a própria força empregada.

- E... eu... eu fa-lo.

A razão já tinha se esvaído de seu cérebro. Logo contaria seu segredo maior: sua técnica para escrever.

- Preparem sete segundos. Se ele não falar, acabamos com isso de uma vez! – Ordena, impaciente, o inquisidor.

O escritor tenta falar, mas tem muita dificuldade em articular as palavras.

- Esf... esf-fero-grá-fi-ca em... em... pa-pa-pel ras-cunho.

Foram apenas mais sete segundos até a eternidade.

Branco

A imitação fajuta de folha de papel se abre, branca, na minha tela. Até dois minutos antes dela aparecer, minha cabeça borbulhava com idéias de títulos, frases de efeito e analogias. Tudo se vai quando ela aparece e eu nem sei por onde começar. Dou alguns espaços, escrevo o final, que sempre começa com “e aí”. Eu ainda não sei o caminho, mas eu sempre sei onde eu quero chegar.

Escrevo frases que nunca respeitam a ordem direta porque eu odeio excesso de organização. E eu odeio excesso de qualquer coisa, que a minha própria intensidade já me enoja. Um parágrafo não tem nada a ver com o outro, porque tanto o outro quanto o um não fazem sentido. Uma bosta.

No Winamp se misturam Damien Rice, Los Hermanos, Nando Reis. Tento juntar frases, desenvolver idéias. Nenhum deles é suficientemente inspirador. Remover tudo. Zeca Baleiro, soberano e triste, me faz sentir como se eu nunca fosse capaz de traduzir em frases tão simples os sujeitos e predicados aqui dentro. Ele me faz chorar, mas continuo sem conseguir escrever.

Ando tão ligada com cinema ultimamente, né? Vejo uns trailers aí. Vejo o início de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, depois Closer. Tenho surtos psicóticos e tudo o que mais queria era poder vomitar esse monte de medos e insignificâncias diárias. Aí eu só consigo usar diálogos e eu não tenho tanto talento pra eles. Aliás, minha falta de talento pra qualquer coisa berra nessa hora.

Eu canso de tentar colocar nas atitudes e ações de personagens as minhas próprias angústias. Falo só sobre mim e sou egoísta mesmo. Solto o verbo e o que não faltam são adjetivos. Buscar absorver todas as emoções, todos os dias, dói pra cacete e eu sou fraca. Não sei juntar todo esse tumulto num só personagem, com uma só voz.

A tela branca, por mais cheia de palavras, continua branca. As emoções e sentimentos continuavam engasgados e tudo o que era tentativa de alívio vira frustração de expressão.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Tema da rodada e aviso

Iniciando o segundo ano do Duelo de Escritores, o tema da rodada, sugerido pelo leitor Jefferson Luiz Maleski (vencedor da rodada de aniversário) é:

Revele as técnicas de escrita você usa, mas de uma forma original.

Acabou as férias, pessoal! ;)



Um aviso sobre mais uma mudança nas regras. Agora que votos dos duelistas e do público possuem o mesmo peso, os novos critérios de desempate são:

1º - Texto que recebeu mais votos dos duelistas.

2º - Texto que foi postado primeiro.

Sim, o voto dos duelistas fica pesando um pouquinho mais no fim das contas, mas estes novos critérios foram necessários pois consideramos que o critério anterior (uma segunda votação-relâmpago) seria inadequado por atrapalhar o cronograma normal.

Em breve as regras estarão atualizadas.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Votação - rodada especial

Está aberta a votação desta rodada especial de aniversário do Duelo de Escritores.

Para votar nos textos basta deixar um comentário neste tópico indicando qual deles merece o seu voto.

Parabéns a todos os leitores-duelistas desta rodada.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Contrato

Tudo começou quando conheci Janiel, há três anos. O ser mais belo que Deus poderia ter esculpido no barro. Tão grande era a sua beleza que, por onde passava, Janiel atraia todos os olhares e despertava o desejo nos homens e o ódio nas mulheres de toda a aldeia. Ainda lembro o dia em que a vi pela primeira vez: entrava pelos portões da vila, vinda das terras ao norte desconhecidas e apresentara-se ao meu pai - que era o líder do nosso povo e governante da província de Casperllin. Absolutamente linda. Sua pele era branca como a neve dos vales de Retia. Os olhos mais claros e cintilantes que eu já vi, pareciam duas jóias, e tão profundos quanto o mar da Gália, pois poderia afogar-me facilmente na doçura do seu olhar. Seu cabelo cor de cevada ondulava-se e bailava harmoniosamente com o vento que em seu rosto batia. Olhamo-nos por segundos, apenas, e nos apaixonamos.

Chegou o dia em que tive que partir para os campos de batalha defender o Reino da Baviera. Antes de nos separarmos, juramos amor um ao outro e prometemos ser fiéis. Ela me disse, com os olhos marejados, que esperaria o meu retorno o tempo que fosse necessário. E eu prometi regressar vivo para os seus braços. Junto a meu pai, que liderava a tropa de cem homens, rumamos ao sul deixando as mulheres, as crianças e os velhos cuidando do vilarejo.

A guerra era pior do que eu imaginava. Se o inferno fosse um terço do que eu presenciei já seria cruel e indesejável o bastante. Vi meus irmãos caírem sob a espada dos infiéis e sanguinários sarracenos. Vi meu pai jogar-se em minha frente e morrer em meus braços por uma flecha pagã. Vi o dia em que os poucos soldados restantes da Baviera bateram em retirada das terras do sul. Foi um longo ano em terras quentes, desconhecidas e banhadas de sangue em que envelheci como se fossem dez. Mas nem todo o ódio que me consumia pela morte dos meus queridos superava o desejo de retornar à vila e viver ao lado do meu grande amor.

Após esse ano sangrento a Coroa concedeu-me o direito de regressar à minha terra e permanecer por lá duas semanas para recrutar novos combatentes e enterrar as cinzas dos bravos que morreram. Era o tempo que eu precisava para casar-me com Janiel, fugir para leste e recomeçar uma nova vida ao lado dela.

Ao adentrar os portões da vila fomos recebidos com chuva de flores silvestres e aclamados como heróis. O choro das viúvas e mães ecoava presente, também, com a notícia que seus maridos e filhos já não pertenciam mais a esse mundo. Aquela comemoração não era necessária, eles não sabem o horror que é uma guerra, não sabem o horror que é matar uma pessoa sem saber o por que, o horror de ver um irmão cair sob a espada de nobres arrogantes.

Janiel não estava dentre as moças que nos rodeavam. Resolvi procurar pela autoridade maior, quando meu pai e eu não estávamos presentes, na vila. A sacerdotisa-mor encontrava-se no templo da Mãe Terra. Adentrei com poucas maneiras e lhe fui jogando as minhas interrogações sobre o paradeiro de Janiel. Logo repreendido por ela pelos meus maus modos, obrigou-me a ajoelhar perante a imagem da Santa Mãe e agradecer por estar vivo. Depois de feito, lhe dirigi a palavra.

Ela se manteve compenetrada em meus olhos como se tentasse ver através deles. Disse-me para buscar as respostas que tanto procuro na sabedoria suprema dos imortais, só eles poderiam justificar-se pelo feito. A preocupação já era fato em meu coração e o desespero por respostas fazia-me enlouquecer. Exigi à sacerdotisa, por direito de sucessor ao meu pai, o chamado da Deusa protetora de nosso povo, a Mãe Terra. Ela hesitou. Tentou argumentar que os Deuses Celtas não deveriam ser incomodados por assuntos tão vãos. E eu insistia com a voz mais alterada.

Sem mais resistências, a sacerdotisa iniciou a invocação. Como em um piscar de olhos, a Deusa tomou o corpo dela para si e, por intermédio dela, comunicou-se comigo. Ouviu-se apenas o murmúrio de uma voz rouca e fraca proferindo a seguinte frase: “Janiel não anda mais sobre a terra”. E logo em seguida a deusa abandonara o corpo da sacerdotisa.

Janiel estava morta. As batidas do meu coração ecoavam mais alto em todo o templo. A dor em meu peito disparara as lágrimas. Perguntei à guardiã do templo a causa da morte e o que mais me assustara estava por vir com a resposta.

“A Mãe Terra exigiu-a como sacrifício pela boa colheita que tiveram no ano que se passou...” A partir de então, eu não ouvira mais nada da boca da sacerdotisa. Ela seguia com suas justificativas e argumentos e eu nada respondia. Era tudo mentira; eu sabia que todas as mulheres da vila a odiavam por ser a mais bela e sabia que, como guardião do seu povo, a mãe Terra jamais exigiria tal penitência a mim. Elas a mataram por simples inveja.

O ódio consumia-me com rapidez e ferocidade. Sai do templo encolerizado. Peguei meu cavalo e galopei rumo à floresta negra. Eu já sabia o que iria fazer. Os anciões contam uma lenda que há muito tempo um homem pactuara com Samhain, demônio das profundezas e habitante da floresta de Caspien, para salvar seu povo do rigoroso inverno e tornar-se rei do mesmo. Se for verdade tal lenda, o demônio poderia fazer reviver Janiel.

Adentrei a floresta; sem perceber já estava envolto por sua escuridão. Eu gritava incessantemente por Samhain e ele não tardou a aparecer. Envolto por uma capa preta, não se via o seu rosto. Perguntou-me o motivo da audácia de chamá-lo assim. Tomando pelo desespero, respondo-lhe com pressa e questiono a veracidade da lenda. Eu não via os seus olhos, mas sentia que ele me encarava com desejo. Ele sabia quem eu era e de repente se pronunciou com uma revelação que eu não esperava.

Meu pai havia pactuado com ele nos vales de gelo das terras ao norte. Meu pai havia morrido, mas não pela guerra, e sim pelo vencimento contratual de sua alma. O Demônio ria enquanto me fitava perplexo e conflitante. Eu compreendi meu pai. Ele fez isso por amor ao seu povo e, agora, eu faço por amor a Janiel.

Sem muito que temer e sem mais o que perder, perguntei a Samhain se ele poderia fazer reviver Janiel. Ele me disse que sim, mas o preço seria alto. Para cada alma trazida das profundezas à superfície custaria, a mim, mil almas, de homens de sangue puro, ao balseiro. E que eu só veria Janiel ao cumprir o acordo até o próximo brumário.

E hoje, após um logo ano vagando pelas vilas de toda a Baviera, derramando o sangue de inocentes sobre a lâmina de minha espada, deparo-me com o último de minha lista. A alma que trará minha amada de volta aos meus braços: você.

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Leo Molleri
Leitor de Camboriú (SC)

Continua

Paredes brancas são meu tormento e não haveria sensação pior pra me acompanhar durante a espera no hospital. Os minutos rastejavam cada vez mais longos quando pude finalmente ver meu filho e minha esposa. 

O Leonardo chegou pra mudar nossas vidas. Pelo menos a minha, eu decidi, tinha que ser preenchida com momentos de alegria intensa, pra compensar tanta agonia da passagem até agora discreta que tive por este mundo. Que hora estranha pra nascer o meu primeiro filho! A coincidência só podia ser o aviso que eu precisava, e eu atendi. 

Passamos dias fazendo vendo as ondas na praia, conhecendo o vai-e-vem da água. Barulho de mudança, pra mim uma terapia. Em casa, era o Leonardo de dia e uma nova esposa à noite. Eu a amava mais do que nunca, ela procurava entender minha nova fase e dávamos gargalhadas com o Léo. Uma linda mãe, um lindo filho.  

Esta semana o Léo fez seu primeiro aniversário e tive uma surpresa: sobrevivi. Contrariei as expectativas do médico, que disse que eu teria apenas um ano de vida depois de descoberto o câncer.  

O Léo já está mexendo com a areia na praia. A Mara chora e não sabe explicar por quê. O médico ainda diz que posso morrer a qualquer momento, mas meu filho me trouxe hoje uma palavra mais animadora que a do pós-graduado: “papai”. 
 
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Daniel Costadessouza, leitor de Blumenau (SC)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Tempo, um ano só

Acabara o mundo, afinal.

Tudo, tudo; tudo aconteceu, como previsto e profetizado outrora. Aqui e no céu, fogos queimaram a todos. Uns em comemoração. Outros, queimando almas, dizimando pessoas sem dízimos. E queimavam também os cães de todas as raças. Artistas viravam fumaça numa fogueira pior e mais quente do que aquela que queimou Joana D’Arc. Leões, tigres e macacos darwinianos sorriam, ao lado de Deus. Talvez bebessem um líquido, uma espécie de drink; possivelmente meio amargo, como o nosso Campari. Porque dava para notar uma careta disfarçada, a cada golada. Em cada sorvida. Os lábios deles tentavam sorrir, afinal era feita a vontade e realizada a vontade d’Ele. Devastada a terra nostra, a linda Amazônia, e o Tibet, encontravam-se felizes lá no mais alto dos céus. Volto ao artista, que ardia resistente. Ele chamou por Lúcifer, num pedido inusitado. Não, este artista, um escritor. É, um escritor! Ele queria, num último momento infernal, ter com o cara. Já estava queimando na ira de um deus que nunca pisara num tablado. E, triste, entre Shakespeare e Isolda, o artista prometia aos seus, que queimaria cada célula de seu corpo, buscando entender tantas ‘glórias’ sem razão e poesias. Ao lado do escritor, um ladrão sorria animado, e, vez por outra, vociferava com o cenho franzido, que ele também era mais o Barrabás! E enquanto isso, uma criancinha rebelde apontava o único dedo da mão, exclamando: “Reencarnação!”

Jamais imaginara tamanha fogueira, o nosso artista. Os olhos, pretos de fuligem, viam cavalos alados, relinchando em orações. Ele estava apavorado. De verdade. Seu corpo doído, e as mãos sem canetas, tentaram conferir se aquela água quente era seu mijo. Constatou que era a única água que teria contato. Além das lágrimas negras, evidentemente. Olhou para o céu. Mas não via o céu. Eram vários céus! Uma zona maior que a Vila Mimosa, lá do Rio de Janeiro. Todavia, ainda assim, ele, o escritor, resistia. Haveria, pensou imerso em quente angustia, ele haveria de cumprir e honrar sua palavra. Falaria com Lúcifer, antes de virar pó.

Porém.

Detido nesta palavra, percebeu a tempo, que era humano demais. Falho e inconstante ele era, pensou, fechando os olhos úmidos. E também que blasfemava, por ter razão e poesia em seu ser. Pelos seus cálculos ensandecidos de calor real, achou que já passara um ano ardendo na gigantesca e dantesca fogueira. Um ano esperando ter com o Diabo. O tal do Lúcifer. Até que sua vista foi nublando. Então, ele olhou envergonhado para todos os artistas ao seu redor. Quer dizer, as cinzas deles. E mais uma vez chorou. E urinou nas coxas. Estava chegando seu fim, por fim.

Entretanto.

Outra palavra que o animava. Entretanto, eis que um vento espiritual aliviou seu curtido rosto. Um frescor último secou suas malditas águas. As últimas águas que sentia o artista. Com os olhos semi-serrados, ainda vislumbrou assustado, um anjo estranho que, com apenas a asa esquerda, soprava seu alívio, na verdade o alívio dos dois. Queriam fazer contato, pensou, um tanto esperançoso, o ex-poeta. E, num sopro quase divino sussurrou:
- És o Lúcifer, enfim, ou estarei eu, em agonia por um ano, sem comer e beber, queimando num inferno insensato?

- Sou eu – respondeu aquele anjo de asa quebrada. A direita.

- Tem certeza que não escrevo uma poesia?

- Sim. Eu tenho. – e olhando ao redor, todos os céus desfeitos, declarou: - Porque também eu, briguei por vocês. Mas creio que perdemos...

E neste exato momento, o Universo escutou, em uníssono, todas as vozes matrixianas, de todos os artistas:

- Amém!


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Daisy Carvalho
Leitora de Jacarepaguá (RJ)

Todo amor que houver nessa vida

Lembro-me como se fosse hoje: aquela luz forte que teimava em me cegar os olhos, uma cama desconfortável com lençóis cor de nada e dois sujeitos de branco me apertando como se eu fosse uma bola. Tudo bem que o meu corpito estava meio oval, mas poxa, poderiam ter mais consideração, afinal não era uma posição muito agradável. Foi nessa hora que eu percebi que aquela criaturinha que estava vindo ao mundo me faria passar por todos os tipos de situações embaraçosas. Já começou por ali: a minha perna totalmente aberta, meia dúzia de pessoas olhando algo que seu pai demorou dois meses para chegar perto, eu toda descabelada e a enfermeira tirando foto dessa cena desastrosa. Você também não ajudou muito querendo abrir espaço entre as minhas costelas à base de cabeçada, tudo isso para vir ao mundo dar o ar da sua graça. E olha como o tempo passa rápido mesmo, isso já faz um ano. Um ano que a moça de branco me entregou um pacotinho marrom sujo de sangue e falou: Parabéns, mamãe!

Quando eu vi aquela coisinha (aquela coisinha é você, filha!) de 30 cm com cara de joelho e nariz de batata pensei que mesmo que você vomitasse em cima da minha coleção de selos ainda amaria você. Porque o amor foi forte, filha! Nem quando o José Henrique, da 6ª série II, me pediu em namoro eu senti algo tão intenso. As pernas ficaram bambas, o coração bateu mais forte e os olhos não conseguiram segurar o aperto no peito, tive que chorar. Desde então, o amor só aumentou. Mesmo quando você babou na minha blusa de seda favorita. Mesmo quando você empurrou para o chão a sopa que eu demorei duas horas para preparar.

Hoje, você não faz mais isso, aprendeu a ser mocinha. E nós crescemos juntas nesse ano. Aliás, acho que aquele clichê de 'aprendi muito mais que ensinei' serve para mim nesse caso. Nem ligo de usar clichês nessa sua cartinha porque quando olho para você, baby, o meu cérebro se esvazia e só consigo me comunicar através de frases feitas. Não consigo bolar uma frase criativa para resumir tudo o que eu sinto/senti por você nesse ano. Então é isso, filhota... De novembro de 2007 a novembro de 2008, o Jamelão decidiu partir dessa para uma melhor, o Jandir foi eleito para o décimo quinto mandato em Itajaí e o Bush, finalmente, vai pegar seu banquinho e sair de mansinho. Mas, o que realmente sacudiu o meu mundo foi um ser de coxas grossas que não sabe falar, não sabe andar, não sabe nem a diferença de pedra para comida. E que hoje comemora um ano de vida. Parabéns, filha!

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Tamara Cardoso Belizario
Leitora de Itajaí (SC)

sábado, 1 de novembro de 2008

Bodas de papel

O vendedor viu o homem entrando na loja e saiu voando para atendê-lo. Enquanto o cliente olhava a vitrine de jóias, o vendedor pousou suavemente ao seu lado.

- Posso ajudar?

- Procuro por um colar relicário. Vocês têm?

- Temos sim. Me acompanhe, por favor. É para presente?

- Sim, é o meu primeiro aniversário de casamento. Sou novo nessas coisas de presentes. Penso que se escolher algo que não esteja à altura da afeição que tenho pela minha esposa, ela ficará menos feliz do que desejo. E não existe ninguém no mundo que eu queira agradar mais.

- O senhor é romântico e parece gostar muito da sua esposa. Como ela se chama?

- Valéria.

- Então me conte como vocês se conheceram enquanto escolhemos o melhor relicário.

- Só se eu resumir, ok? Pois é uma longa história. Eu sou apaixonado por ela desde o colegial. Nós estudamos juntos durante três anos e eu sempre gostei dela, mas não tinha coragem de contar. Eu era o esquisito da turma, sabe? Caladão e sem jeito com as mulheres. E a Valéria era a garota mais badalada, não só da sala, mas do colégio. Era extrovertida e gostava de organizar festas. Ela era radiante! Só quem a conhece para saber o verdadeiro significado da palavra beleza. Eu, contudo, como você está vendo, nunca fui grande coisa, e por isso vivia em casa, na frente do computador.

- Entendi, vocês eram de tribos diferentes. Mas como ela se interessou pelo senhor?

- Bem, eu sempre fui um cara que aprecia muito a leitura. Você gosta de ler?

- Er... um pouco, só não leio mais por falta de tempo. O último livro que li foi O Segredo.

- Então vou contar outro segredo: quem lê muito e considera a leitura um prazer, como eu, não fica muito tempo sem virar escritor. É inevitável, uma coisa puxa a outra. Primeiro, comecei escrevendo contos e poemas em blogues da internet. Depois fiz resenhas de livros e crônicas nos jornais da minha cidade. Participei até de Duelos de Escritores, acredita? E isso me ajudou bastante. À medida que fui entendendo e aplicando as técnicas de escrita que aprendia, os meus textos melhoraram e granjeei leitores assíduos. Em pouco tempo o pseudônimo, ou apelido, com o qual assinava os textos ficou bastante conhecido. Porém, escrever me isolava dos outros. Vivia trancado no quarto, publicando textos e trocando emails. O mais próximo que eu conhecia como namorada era o email girlXX@camanducaia.com! Eu também não freqüentava festas e não tinha contato extra-classe com os colegas. Mas eu era feliz, e ingênuo, na minha solidão, até o dia em que vi a Valéria. Ela me coloriu a minha vida. Se fosse possível a sensualidade e a pureza habitarem juntas o mesmo ser, seria nela. Valéria passou a ser a musa dos meus poemas de amor e de sofrimento, porque naquela época, ela estava namorando.

- Parece que você tinha um problemão.

- Sim. E eu morria sempre que o namorado ia buscá-la no fim da aula. Cada beijo que eles trocavam era um elefante pisando em meu coração. Mas ele não valorizava a jóia rara que tinha. Certo dia, ouvi que eles haviam terminado. O cafajeste a traíra com outra. Era a chance que eu precisava. Mas como conquistar alguém que eu sentia falta de ar só de pensar, quanto mais chegar perto, conversar, convidar para sair? Foi quando resolvi usar as minhas armas: eu decidi escrever.

- Já sei, o senhor escreveu uma carta romântica.

- Claro que não, eu não era tão audacioso. Até pensei nisso, mas temia a reação dela. Se ela não gostasse da minha atitude ou me interpretasse mal, poderia usar o que eu escrevi contra mim. Por isso, eu precisava que outros a influenciassem a gostar de mim. Então, escrevi um livro para ela.

- Um livro? Como assim?

- Eu escrevia capítulo por capítulo, todos dedicados a Valéria. Publiquei eles em um blogue usando o meu pseudônimo e, sem ninguém me ver, espalhei cópias nos murais do colégio, revelando que haveriam continuações no blogue. A personagem principal da trama se chamava Valéria e o narrador anônimo era apaixonado por ela.

- Que legal! E como a Valéria reagiu?

- Eu não percebi de imediato porque a história virou febre. Todos no colégio queriam saber quem era o admirador secreto. Os colegas comentavam tanto o texto que os professores passaram a usá-lo nas aulas. Valéria parecia indiferente no início, mas à medida que observava a reação dos colegas, dos professores, das amigas dela, notei que começou a gostar da brincadeira. O meu plano estava funcionando. O olhar dela passou a buscar quem a observava. Tive de tomar cuidado, e ela me pegou duas vezes olhando para ela. A minha sorte foi que todos olhavam para ela. Contudo, o problema começou quando um dos professores espalhou a notícia pela internet que a ficção acontecia paralela à vida real, com cidade, colégio e musa de verdade. Os fãs dos meus textos enlouqueceram. Alguns tentavam antes, em vão, descobrir a minha identidade, mas agora surgia uma pista concreta. Assim, proliferaram as teorias sobre a identidade do escritor. Revistas publicaram matérias como "Jovem Escritor Anônimo se Declara em Livro" e "O Romantismo Anônimo da Vida Real". Jornais, rádio e televisão entrevistavam Valéria, colegas, professores e escritores locais. Não faltou quem quisesse aparecer. As amigas de Valéria viraram correspondentes de blogues de fuxicos e literatura. Os capítulos que eu escrevia passaram a ser publicados em outras mídias e mais pessoas passaram a acompanhar a história. Mas isso era algo que eu não tinha previsto.

- Toda essa atenção te atrapalhou?

- Um pouco. Mas eu estava entusiasmado com a reação da Valéria. Ela tornou-se popular em toda a cidade. Aparecia em jornais e na tevê. Faltava aulas para dar entrevistas. Em uma que lembro, ela disse que desejava conhecer o autor da homenagem para agradecê-lo por tamanha admiração. Logo depois, choveram engraçadinhos, até de outros estados, confessando serem o escritor, mas foi imposto que deveriam provar se revelando no blogue do livro. Nem preciso dizer que falharam.

- E foi difícil escrever o livro?

- Eu tinha uma idéia quando comecei a escrevê-lo, mas enquanto as histórias real e fictícia avançavam e se entrelaçavam, tive que alterar algumas vezes o que tinha imaginado. Mas o livro ficou mais próximo da realidade. E eu pude declarar tudo o que sentia por Valéria, suspiro por suspiro. Filosofei sobre a vida, o amor e a solidão. Dediquei-lhe uma música, um poema e uma estrela. Enfim, fiz tudo o que pude, joguei com todas as cartas. A seqüência dos capítulos durou dois meses, até chegar a parte final. Valéria já tinha desconfiado de quase todos os rapazes do colégio. E eu precisava me revelar e não sabia como. Por isso, no penúltimo capítulo resolvi propor um concurso de escrita, em que todos os rapazes poderiam escrever finais para a história. Seria o duelo final em que o melhor cavalheiro conquistaria o coração da donzela. O diretor gostou da idéia e, patrocinado por jornais e empresários locais, promoveu o Primeiro Concurso de Escrita do colégio. Os concorrentes poderiam escrever sobre qualquer coisa, mas os que escrevessem sobre o último capítulo do romance concorreriam na categoria principal. Foram convidados professores e escritores de renome para serem os jurados. Eles analisariam não só o melhor final, mas o mais harmonioso com o livro.

- É claro que o senhor ganhou, não é?

- Não, eu não me inscrevi.

- Como não? Não era o que o senhor queria?

- No começo sim, mas depois de sugerir o concurso, refleti mais. As coisas estavam fora de controle. Eu não queria ganhar um concurso, ser famoso, dar entrevistas. Eu queria a Valéria. Mas precisava acabar com o que havia começado. No dia do resultado do concurso, o ginásio municipal estava cheio de repórteres, celebridades locais e populares. Fãs do escritor anônimo vieram de todas as partes. Era uma oportunidade única para ver e ser visto, mas eu me encontrava sentado sozinho, próximo à saída de emergência, quando, sem perceber, ouvi um oi do meu lado. Quase caí quando vi que era Valéria. Respondi engasgado, tentando disfarçar, e se ela percebeu o meu nervosismo, eu não percebi.

"Você se inscreveu no concurso?" – ela perguntou, com os olhos brilhantes fixos nos meus.

"Não", respondi, com o coração batendo mais alto que a minha voz.

"E por quê não? Você não gostaria de ser um dos meus pretendentes?"

"Gostaria, mas não deste jeito, com todos esses holofortes."

"E o que você faria, ao invés disso tudo? Lembre que você teria um adversário forte o suficiente para escrever o final de um livro dedicado à mim, em um concurso amplamente divulgado."

"Eu nunca poderia escrever um final sem saber como a história termina. Eu não poderia, por exemplo, dizer que a mocinha se apaixonou pelo mocinho, que eles viveram felizes para sempre, quando não sei nem se ele a conquistou. Por isso não me inscrevi. Eu estou cansado desse barulho todo e só quero ver como esta história vai terminar. Por mim, eu simplesmente levaria flores até a sua casa, junto com um poema, para só você ler, e depois te convidaria para sair."

"Eu poderia dar algumas sugestões para o seu final, se você fosse escrevê-lo."

"Sugestões? Como assim?"

"Por exemplo, você poderia escrever que a mocinha, de início, achava aquela história toda muito estranha, mas com o tempo, ela passou a gostar do admirador secreto. Ele conseguiu, usando as palavras que saíam do coração tocar a alma dela. Mas essa mocinha tinha um problema, o seu admirador permanecia secreto. Então, ela discretamente pediu ajuda aos fãs do escritor e aos professores do colégio, que se comoveram do sofrimento da mocinha apaixonada, e juntos elaboraram a lista dos candidatos mais prováveis. Analisaram perfis e provas de redação arquivadas na secretaria. Um a um, os candidatos foram descartados até sobrarem três ou quatro. Destes, só um era da sala da mocinha. Agora estava mais fácil, mas ela precisava ter certeza. Então, pediu ao diretor do colégio o histórico do tal aluno, o seu endereço e telefone. O diretor concedeu e foi gentil abonando as faltas dela quando ela foi à casa do aluno no horário de aula. A mãe do aluno, que já desconfiava do filho, porque mãe sempre sabe das coisas, foi calorosa com a mocinha. Conversou muito com ela e pode-se dizer que tornaram-se amigas. Ela deixou que a mocinha entrasse no quarto do filho, mexesse no computador dele e levasse alguns rascunhos retirados dos blocos de anotações. Essa mocinha, depois de convencida da identidade do seu admirador, resolveu deixar de ser apenas uma personagem para ser co-autora. Por isso, ela escreveu o final que ela queria para o livro, usando as anotações do amado, assinou o texto com o nome dele e inscreveu o texto no concurso."

- Puxa vida! – disse o vendedor de jóias – que história! E como era o final escrito por ela?

- Eu poderia dizer que o texto dela ganhou o concurso. Que revelou o autor e foi publicado como um livro de sucesso. Mas o ponto mais importante para mim, é que o livro termina com o admirador não mais secreto indo à casa dela, levando flores e um poema e a convidando para sair. E a resposta dela ao convite, só ele ouviu, e continua ouvindo até hoje.

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Jefferson Luiz Maleski, leitor de Anápolis (GO)

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O jubileu da tua ausência

Uma vez por ano eu me perdia em você. Há 6 anos já, a mesma história e o mesmo mês: outubro. O nosso mês. Uma vez por ano você me escrevia dizendo que sentira saudades. Sei que talvez nem se lembrasse da cor âmbar que os meus olhos fazem quando se encontram com uma forte luz de sol, mas eu gostava de sabê-lo pensando em mim. Acontece que, este ano, outubro se estendeu mais longo sobre a minha cama, que já é grande demais. Este ano minha caixa de e-mails, minha caixa de correio e minha caixa torácica permaneceram vazias de você. Feliz aniversário, baby: um ano sem o ter.

Talvez você estranhe este envelope sem remetente. É que eu quero acreditar que você reconhecerá a minha letra – e minha história. Quero crer que foi descuido e não desamor. Porque, mesmo que você não veja, eu passo o ano esperando pela gente. Eu sei que quebrei as regras quando liguei em março, disposta a dissolver a distância. E apesar de você ter me negado a doçura do encontro, apesar do não mais seco do mundo ter saído da sua boca, do seu teclado, do seu celular... Apesar de tudo eu esperei por outubro. Eu acreditei em outubro.

Então que hoje é dia 31 e estou soprando a velinha da sua ausência, sozinha na casa assombrada pelo seu fantasma. Mas não se preocupe comigo. Isso tudo é só porque é dia das bruxas e insisto na puerilidade de usar esta fantasia erótica para você. Só que daqui a dois dias já é finados: poderei rezar um terço, vestir a roupa preta sobre a lingerie inútil e enterrá-lo para sempre. Ou, simplesmente, deixar-me estar em luto por mais um ano, até que chegue outubro e você possa me negar de novo. Eu nunca consigo sepultar a esperança. Feliz aniversário, baby. 

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Sílvia Mendes, leitora de Camboriú (SC).