quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Mais um

- Aí Jandir, mais um. Aqui no 66.
- Porra cara, de novo? A gente mal chegou aqui.
- Eu sei, mas não posso fazer nada. Manda o pessoal aqui logo, que tá espalhando na pista e isso aqui vai ficar liso pacas.
- Beleza Serginho. ‘Tamo indo aí. Segura as pontas.

Jandir desliga o telefone, soa o alarme e veste a parte de cima do macacão, que estava pendurada pela cintura. Toma um gole do café, já frio, e segue caminho até o quilômetro 66 da BR 470, em direção ao litoral. Sexta-feira, trânsito intenso, uma ultrapassagem mal-sucedida e dois carros se chocam com brutalidade. O mesmo cenário, a mesma situação, a mesma correria para salvar vidas perdidas da forma mais tola e insignificante possível.

- Essa foi feia mesmo. Sobrou alguém?
- Nada. Nada de nada.
- Merda. Documento, alguma coisa?
- Já repassei tudo. Família indo pra praia, caminhoneiro com carga acima do limite, não dá tempo de frear, a ondulação na pista esconde o outro vindo do outro lado. A mesma história de sempre.
- Merda. Dá de perder a conta.
- Não, não dá. Fica marcado na cabeça. Esse aqui foi o 18º de hoje. Tem noção disso? É muita coisa.
- É... e no final do mês, 18 é quase nada...
- Nem fala. Deixa eu ir ali arrumar a papelada.

Papelada. Duas famílias se transformam, com a velocidade de uma colisão, em números. Estatísticas de um mundo violento. Estatísticas da burocracia que atrasa e apaga vidas. Números que se esquecem, que perdem o significado, que se amarelam junto com as folhas envelhecidas do jornal. Número que não significam nada. Vidas que passam a significar ainda menos.

2 comentários:

Indelével disse...

Esse encadeamento entre os textos foi de propósito?
Tah Perfeito!

Rodrigo Oliveira disse...

legal. ficou bem bacana. e deu sorte de ficar bem colocado no blog :) Achei q o final meio dissertativo saltou um pouco do texto, meio destoando. Uma quebra q talvez desse pra ser contornada. Mas gostei do cuidado com os números. 66, 18... Contradiz "os números não significam nada". Retoma o discurso em um ciclo. Mas a besta somos nozes.