Vai até o dia 30 de setembro a votação para a 31ª rodada do Duelo.
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sábado, 27 de setembro de 2008
Fim
A noite rouba vida...
Como o delírio de um suicida...
Como o delírio de um suicida...
Fim, finais, becos sem saída
Uma vida sem sentido, que está perdida
Será que os velhos sonhos são o que pensamos?
Ou muitos são os devaneios que sozinhos conservamos?
Uma vida sem sentido, que está perdida
Será que os velhos sonhos são o que pensamos?
Ou muitos são os devaneios que sozinhos conservamos?
(caminho na noite
só, canto na noite
pensando nas correntes
em como secou aquela fonte
fonte de amor e de esperança
vil casal, um coração e uma lança)
só, canto na noite
pensando nas correntes
em como secou aquela fonte
fonte de amor e de esperança
vil casal, um coração e uma lança)
Nestas noites acompanhados nos sentimos tão sós...
Nossas ambições ora almejadas calcinadas até pó...
Nossas ambições ora almejadas calcinadas até pó...
Fim, fim, noite em desgraça, em tudo estampada!
Nenhuma maldade, tormento não é nada!
Já esperado o sofrer, em um rumo tão sozinho
Sem nada a perder, em um mundo sem destino
(E FICO FELIZ QUANDO TODOS ESTÃO DORMINDO
POIS É COMO SE ESTIVESSEM TODOS MORTOS!!!)
POIS É COMO SE ESTIVESSEM TODOS MORTOS!!!)
Todos mortos, fim, final, encerramento!
O ato final, tolo teatro em andamento!
Um final ridículo para um mais idiota espetáculo!
Seja morte o destino e sepulcro nosso receptáculo!
Fim de tudo, todos perecerão!
Que a morte venha, seja pela minha própria mão!
O ato final, tolo teatro em andamento!
Um final ridículo para um mais idiota espetáculo!
Seja morte o destino e sepulcro nosso receptáculo!
Fim de tudo, todos perecerão!
Que a morte venha, seja pela minha própria mão!
Sem esperança, vá se foder com sua reconfortante possibilidade
Pois eu sou doente, vejo o lado mais negro, sem sentido
Ha! Nada mais que a própria realidade!
Pois eu sou doente, vejo o lado mais negro, sem sentido
Ha! Nada mais que a própria realidade!
(fim, fim, fim, não espere mais, vá para o inferno!
Pois isso não é poesia, versos de tédio eterno
não, essa porra é verborréia, arroto, cuspe,
o escarro tuberculoso do meu tormento interno!!!!)
Pois isso não é poesia, versos de tédio eterno
não, essa porra é verborréia, arroto, cuspe,
o escarro tuberculoso do meu tormento interno!!!!)
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Tendências suicidas
Pedro era um cara popular. Na escola, vivia rodeado de amigos e as garotas o disputavam. Entrou pra faculdade e resolveu estudar de verdade. Afinal, sua futura profissão dependeria de seu empenho e desempenho. Começou a perder espaço. Mesmo alguns amigos da época do colégio já não o consideravam mais o mesmo cara que era antes. Ele não se deixou abalar. Apaixonado pelas aulas de sociologia, mergulhou em livros e, mesmo sem deixar as demais atividades de lado, isso o fez perder popularidade como um escândalo de corrupção.
O primeiro grande momento de ruptura veio num dia em que amigos o convidaram para uma festa onde se apresentaria uma banda nova que estava estourando nas rádios de todo o país. Seria prato cheio para Pedro em outras épocas, mas ele recusou o convite porque precisava terminar de ler um livro de filosofia. “Ficou louco”, pensaram os amigos. Aos poucos ele ia se isolando, curtindo sua própria perda de popularidade com seus livros e rabiscos nos cantos das páginas.
Não deixava de utilizar as ferramentas de comunicação modernas como sites de relacionamentos ou programas para conversação por mensagens instantâneas, mas as pessoas em geral desaprovavam suas preferências artísticas. Filmes que ninguém conhecia, bandas que seus amigos nunca ouviram falar, livros de filosofia... Manifestar estas preferências era decretar, de uma vez por todas, uma espécie de suicídio social.
O primeiro grande momento de ruptura veio num dia em que amigos o convidaram para uma festa onde se apresentaria uma banda nova que estava estourando nas rádios de todo o país. Seria prato cheio para Pedro em outras épocas, mas ele recusou o convite porque precisava terminar de ler um livro de filosofia. “Ficou louco”, pensaram os amigos. Aos poucos ele ia se isolando, curtindo sua própria perda de popularidade com seus livros e rabiscos nos cantos das páginas.
Não deixava de utilizar as ferramentas de comunicação modernas como sites de relacionamentos ou programas para conversação por mensagens instantâneas, mas as pessoas em geral desaprovavam suas preferências artísticas. Filmes que ninguém conhecia, bandas que seus amigos nunca ouviram falar, livros de filosofia... Manifestar estas preferências era decretar, de uma vez por todas, uma espécie de suicídio social.
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
O Príncipe dos Suicidas
O protagonista morre no final. Agora que já sabe o final, não perca tempo, o leitor, em demorar-se na leitura destas páginas.
Quanta bobagem! Se tempo é o que mais tem o leitor! Pois, decerto, se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Enquanto espera, pois, deixe que esta história lhe faça companhia. E já me corrigindo, o protagonista desta história não morre no final. O protagonista desta história morre no começo. O protagonista desta história já morreu.
Quando cheguei, o sol brilhava fresco. Como o sol que surge depois de umas horas de chuva num fim de tarde de meia estação. O capim baixo emanava também um cheiro fresco, e brilhava como se borrifado por gotas de água pequenas demais para serem vistas. Uma brisa leve passava assobiando baixinho por entre as folhas altas das árvores, não muito atrás de mim. E um rio brilhante e calmo atravessava o prado que se estendia a minha frente. Encaminhei-me em direção ao rio até vislumbrar as figuras aguardando à sua margem. Um trapiche de juncos pequeno se projetava da margem às águas, que corriam com um gorgulhar confortante.
Na margem, umas poucas pessoas aguardavam de pé junto ao trapiche. Como não divisava nada além da mata atrás de mim e das pessoas na beira do rio, achei por bem aproximar-me. Um homem baixo, de cerca de um metro e meio, já meio curvado, conferia com uma prancheta um punhado de papéis. Tinha vestes simples mas muito bem cuidadas. Uma calça de jeans cáqui, uma camisa de flanela da mesma cor e um colete de cor crua, de couro ou lona. Uma boina cobria os cabelos meio desgrenhados. Atrás dele, um grupo de pessoas aguardava junto ao trapiche. E ao lado delas, de costas pra mim e admirando a outra margem, uma jovem de corpo magro, com os ombros bronzeados um tanto pontiagudos à mostra, vestia um vestido xadrez simples mas bonito, com uma barra branca bordada. Os cabelos castanhos, meio ondulados, amarrados por uma fita vermelha. A profissão campesina era denunciada por uma grande foice de campo na qual se apoiava e pelo cesto de vime à tira colo.
O homenzinho me olhou de baixo para cima quando me aproximei e umedecendo os lábios murchos com a língua, começou a folhear os papéis na prancheta, retornando o olhar para mim vez por outra.
— Bom dia... — comecei. Mas ele logo me interrompeu com um balançar negativo de cabeça.
— Não, não, não. Você não está aqui.
— Como?
— Não está, não está! — Repetia o homenzinho, como que contrariado.
E me deu as costas indo falar com a camponesa da foice. Só quando ela se abaixou para falar com o homem que percebi a sua altura. Era alta, talvez até um pouco mais alta que eu. Ela ouviu o que ele tinha a dizer, levantou-se, me pareceu que ficou uns segundos a pensar, olhando para o nada que seguia o curso do rio. Quando ela virou-se para mim, os olhos levemente puxados e pequenos, muito claros, de íris quase branca, contrastaram com o tom bronzeado do rosto. Os lábios finos não disseram nada. Mas o olhar me petrificou. Pude sentir os músculos do corpo retesando, a boca seca, o coração pulsante. Ela virou o rosto para novamente olhar o pequenino e, sem responder, balançou a cabeça em negação. O pequeno homem soltou um suspiro profundo, contrariado entregou a prancheta à camponesa, e veio até mim. Ela me lançou um último e olhar e depois se deixou perder na visão das árvores da mata, que corria atrás de mim e seguia o rio ainda nesta margem.
— Não, não, não. Você não está na lista. Desculpe-me. Não está na lista. — disse o homenzinho falando rápido.
Caminhando devagar, me tomou pelo braço e me guiou o caminho.
— Vamos, vamos. Você não pode passar. Ainda não está na lista. Vamos, vou mostrar-lhe o caminho.
— Onde estamos? — Perguntei curioso.
— Estamos no rio. — Me respondeu o meu novo guia.
— E o que tem além dele? — Insisti.
— O outro lado.
Antes de perder de vista as figuras que aguardavam, pude ver uma pequena balsa se aproximando do trapiche. Um homem sem camisa manobrava a embarcação com uma longa vara, até encostar contra a construção de juncos. As pessoas que aguardavam subiram na balsa que se afastou da margem, deixando lá apenas a camponesa com a foice. Àquela distância eu não podia divisar qualquer expressão no seu rosto, mas podia ver que ela mantinha os olhos na balsa.
O homem me guiou por um caminho de terra adentrando nas árvores. As copas altas balançavam com o vento e o cheiro agradável de mato fresco continuava. Mas o sol já não conseguia atingir o solo. Caminhamos por um bom tempo, até não ser mais possível ouvir o rio. E continuamos andando em silêncio. O homenzinho, claramente contrariado, volta e meia balançava a cabeça de um lado para o outro. O sol já não se via mais entre as árvores e um nevoeiro bem leve já se fazia presente. Caminhamos até chegar a uma casa de toras no meio da mata. O homenzinho foi até a porta e bateu duas vezes. Sem palavra, deu as costas e foi retornando pelo caminho, passando por mim. Virei-me para chamá-lo quando ouvi atrás de mim a porta se abrindo.
Um velho entroncado, metido numa jardineira parda e com uma camisa vermelha de mangas arregaçadas, me olhava apoiado no vão da porta. Tornei a olhar para o homenzinho só para vê-lo desaparecendo devagar na neblina fraca. Tornei a encarar o velho e percebi que ele mascava algo que, pelo cheiro, parecia fumo. Ele ficou me olhando por um tempo, com aquele maxilar de barba mal feita dançando pendurado, como que ruminando mais do que o fumo. Ruminando algo na cabeça. Limpou as mãos na jardineira, deu uma pigarreada e voltou-se para dentro da casa, lançando a voz rouca por sobre o ombro: “Feche a porta ao entrar”. Hesitei por uns segundos mas, dadas as circunstâncias, decidi obedecer. A casa tinha as paredes de toras e o teto alto, de madeira. Tinha várias cadeiras, almofadas e sofás espalhados, cobertos de forma rústica. Havia um fogão de pedra no centro e um duto acima dele, que se perdia no teto. Ao lado da porta pela qual entrei, uma grande enxada de cabo longo estava encostada à parede. Ao lado dela, uma pedra de amolar. Não vou me deter por demais na descrição do lugar, visto que o leitor obviamente não carece de tais detalhes. Detenhamos por tanto na conversa que tive com o meu interlocutor, da qual o leitor, talvez, não saiba.
O velho me serviu uma caneca de metal com uma infusão qualquer. Estava quente como os diabos e tive que apoiá-la na mesa enquanto me sentava. O velho sentou-se numa poltrona um pouco distante de mim.
— Não está do seu agrado? — Perguntou ao me ver depositar a caneca na mesa.
— Não é isso — respondi — está quente demais para segurar.
— Espere esfriar — ele retrucou, sorvendo o líquido fumegante da própria caneca.
— Pelo visto vai demorar um pouco. — Tentei dar um tom de brincadeira na voz, para aliviar o clima. Ao que ele respondeu só levantando os olhos para mim.
— Não tem problema. Há tempo de sobra.
Depois de uns minutos de silêncio, enquanto eu tentava tomar o chá e identificar o sentido daquele olhar, ele quebrou o silêncio novamente.
— Então ela não te deixou passar, não foi?
— Como?
— Para o outro lado. Ela não deixou que você cruzasse o rio.
— A camponesa?
Ele deu uma risada contida, mas aparentemente sincera, e rebateu.
— Sim, sim. A camponesa. A mulher da foice. Ela.
— Ela?
— Sim, ela. Você sabe. Diga. Vai fazer bem pra você.
Eu não havia reparado na corda pendurada de uma das vigas do teto. Aparentemente, nem meu anfitrião, que seguiu meu olhar com interesse.
— Ah, sim... Limpo. Você deve ser organizado. Já é um clássico, nunca sai de moda.
— ???
— Vamos, você pode se lembrar, você já sabe. O choque não é grande. Nunca é. Porque a escolha já foi tomada. Só falta a constatação.
Uma sensação estranha me inquietava naquela voz rouca. Um certo aperto no peito, como se o coração estivesse na garganta. Senti os meus pés balançarem na cadeira, dançando no ar. Uma cadeira. Sim, uma cadeira. E a corda. E uma viga e... sim.
Sim...
Quando retornei meu olhar para o velho, ele já estava quase sobre mim, bem próximo à mesa. Olhando-me de cima com olhos baços. Estranhamente não me senti chocado. Era como se eu já soubesse. Eu já sabia. Ele já sabia.
Olhou para a minha xícara que atirava redemoinhos de vapor ao ar e me disse de novo: “Há tempo de sobra”. Tornou a me olhar e falou.
— Ela não lhe deixou cruzar o rio.
— A mulher da foice. — Respondi. Ao que ele apenas repetiu, devagar, para que eu sentisse as palavras: “A mulher da foice”.
— Porque ela não me deixou cruzar?
— Há tempo de plantar e há tempo de colher. Ainda não é chegado o tempo de colher. Não para você. E a Dama da Colheita nunca ceifa antes do tempo. É preciso que o grão esteja maduro.
— Se não chegou o tempo da colheita, porque eu estou aqui?
— Às vezes o grão despenca antes do tempo e não pode ser colhido pela foice. Aí vem a mim.
Caminhando em direção à porta, ele continuou:
— Quando ele cai à terra, a foice da Dama não pode mais alcançá-lo. Mas eu posso.
Ele disse, acariciando o metal afiado da enxada com certo orgulho.
— Quem é você? — Perguntei receoso.
— Eu sou aquele que cata os grãos que se precipitaram antes do prazo. Eu sou aquele que os guarda até a hora da colheita. Eu sou aquele que acolhe os grãos do Acaso, aqueles que burlam o Desígnio, aqueles que tomam a decisão que não lhes cabe. Eu sou agora o seu tutor, o seu Senhor, seu guardião. Eu sou o Príncipe dos Suicidas.
Mesmo, no fundo, sabendo o que acontecera, o que eu havia feito, a calma que até então me tomava ameaçou me abandonar frente a emoção e orgulho daquele velho, com o braço peludo agarrado à enxada, que mesmo metido naquelas roupas comuns exalava um ar respeitoso. Logo a fraqueza se transformou em vergonha frente àquela palavra. “Suicida”. Não pude evitar baixar os olhos. O passado e o que eu havia deixado para trás já estava por demais nebuloso para que eu tivesse qualquer lembrança clara, mas aquela palavra me soava, de algum modo, obscena.
— Agora você baixa os olhos? — Ele perguntou para logo continuar:
—A vergonha não está no que fez, mas, talvez, no porque o fez. E aqui, nem isso importa mais. Ficou para trás. Além do que, por essa mesma casa já passaram muitos. Alguns grandes, outros ordinários. E muitos ainda virão.
— E agora o que eu faço?
— Agora você espera. A sua hora não chegou. E você só pode completar a travessia quando ela chegar. Mas agora, ao invés de aguardar onde você estava, você vai aguardar nesta casa.
— Mas eu vou completar a travessia?
— Sim, quando chegar a hora, a foice sempre faz a colheita.
— Então tem esperança? Então eu ainda posso ir pro céu?
— Céu!? Ah ah ah! Tudo o que sei é que ela vai permitir que você atravesse o rio. E além dele, está o outro lado.
— Então Deus aceita os suicidas?
— Todos os grãos acabam sendo colhidos. De um jeito ou de outro. Além do que, Deus, se é assim que você quer chamar, já aceitou tantos outros.
— E os padres sempre falavam na Bíblia, no atentado contra a própria vida, na palavra do Cristo...
—Sim, sim, eu me lembro dele. Passou algum tempo aqui.
— Aqui?
— Porque a surpresa? Para quem ouvia tanto os padres, você parece não ter prestado muito atenção na história.
— Mas Cristo não se suicidou, ele foi assassinado!
— Aquele que aguarda o trem sobre os trilhos não é então suicida? Devemos culpar o maquinista de homicídio se o atropelado sabia da chegada da locomotiva e aguardou que ela lhe beijasse o rosto? Foi a minha enxada que colheu a vida que a foice não pôde ceifar. Foi aqui que o grão prematuro amadureceu até a travessia.
— Ele atravessou o rio?
— Como você o fará, quando for chegada a hora.
— E eu devo esperar muito?
— Não se preocupe com o tempo. Tempo agora é tudo que lhe resta. E há tempo de sobra.
Sim, leitor! Há tempo de sobra. E se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Porque esta história termina aqui. E o protagonista não morre no final. O protagonista desta história suicidou-se. O protagonista desta história já morreu.
Mas o protagonista desta história, leitor, não sou eu.
Quanta bobagem! Se tempo é o que mais tem o leitor! Pois, decerto, se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Enquanto espera, pois, deixe que esta história lhe faça companhia. E já me corrigindo, o protagonista desta história não morre no final. O protagonista desta história morre no começo. O protagonista desta história já morreu.
Quando cheguei, o sol brilhava fresco. Como o sol que surge depois de umas horas de chuva num fim de tarde de meia estação. O capim baixo emanava também um cheiro fresco, e brilhava como se borrifado por gotas de água pequenas demais para serem vistas. Uma brisa leve passava assobiando baixinho por entre as folhas altas das árvores, não muito atrás de mim. E um rio brilhante e calmo atravessava o prado que se estendia a minha frente. Encaminhei-me em direção ao rio até vislumbrar as figuras aguardando à sua margem. Um trapiche de juncos pequeno se projetava da margem às águas, que corriam com um gorgulhar confortante.
Na margem, umas poucas pessoas aguardavam de pé junto ao trapiche. Como não divisava nada além da mata atrás de mim e das pessoas na beira do rio, achei por bem aproximar-me. Um homem baixo, de cerca de um metro e meio, já meio curvado, conferia com uma prancheta um punhado de papéis. Tinha vestes simples mas muito bem cuidadas. Uma calça de jeans cáqui, uma camisa de flanela da mesma cor e um colete de cor crua, de couro ou lona. Uma boina cobria os cabelos meio desgrenhados. Atrás dele, um grupo de pessoas aguardava junto ao trapiche. E ao lado delas, de costas pra mim e admirando a outra margem, uma jovem de corpo magro, com os ombros bronzeados um tanto pontiagudos à mostra, vestia um vestido xadrez simples mas bonito, com uma barra branca bordada. Os cabelos castanhos, meio ondulados, amarrados por uma fita vermelha. A profissão campesina era denunciada por uma grande foice de campo na qual se apoiava e pelo cesto de vime à tira colo.
O homenzinho me olhou de baixo para cima quando me aproximei e umedecendo os lábios murchos com a língua, começou a folhear os papéis na prancheta, retornando o olhar para mim vez por outra.
— Bom dia... — comecei. Mas ele logo me interrompeu com um balançar negativo de cabeça.
— Não, não, não. Você não está aqui.
— Como?
— Não está, não está! — Repetia o homenzinho, como que contrariado.
E me deu as costas indo falar com a camponesa da foice. Só quando ela se abaixou para falar com o homem que percebi a sua altura. Era alta, talvez até um pouco mais alta que eu. Ela ouviu o que ele tinha a dizer, levantou-se, me pareceu que ficou uns segundos a pensar, olhando para o nada que seguia o curso do rio. Quando ela virou-se para mim, os olhos levemente puxados e pequenos, muito claros, de íris quase branca, contrastaram com o tom bronzeado do rosto. Os lábios finos não disseram nada. Mas o olhar me petrificou. Pude sentir os músculos do corpo retesando, a boca seca, o coração pulsante. Ela virou o rosto para novamente olhar o pequenino e, sem responder, balançou a cabeça em negação. O pequeno homem soltou um suspiro profundo, contrariado entregou a prancheta à camponesa, e veio até mim. Ela me lançou um último e olhar e depois se deixou perder na visão das árvores da mata, que corria atrás de mim e seguia o rio ainda nesta margem.
— Não, não, não. Você não está na lista. Desculpe-me. Não está na lista. — disse o homenzinho falando rápido.
Caminhando devagar, me tomou pelo braço e me guiou o caminho.
— Vamos, vamos. Você não pode passar. Ainda não está na lista. Vamos, vou mostrar-lhe o caminho.
— Onde estamos? — Perguntei curioso.
— Estamos no rio. — Me respondeu o meu novo guia.
— E o que tem além dele? — Insisti.
— O outro lado.
Antes de perder de vista as figuras que aguardavam, pude ver uma pequena balsa se aproximando do trapiche. Um homem sem camisa manobrava a embarcação com uma longa vara, até encostar contra a construção de juncos. As pessoas que aguardavam subiram na balsa que se afastou da margem, deixando lá apenas a camponesa com a foice. Àquela distância eu não podia divisar qualquer expressão no seu rosto, mas podia ver que ela mantinha os olhos na balsa.
O homem me guiou por um caminho de terra adentrando nas árvores. As copas altas balançavam com o vento e o cheiro agradável de mato fresco continuava. Mas o sol já não conseguia atingir o solo. Caminhamos por um bom tempo, até não ser mais possível ouvir o rio. E continuamos andando em silêncio. O homenzinho, claramente contrariado, volta e meia balançava a cabeça de um lado para o outro. O sol já não se via mais entre as árvores e um nevoeiro bem leve já se fazia presente. Caminhamos até chegar a uma casa de toras no meio da mata. O homenzinho foi até a porta e bateu duas vezes. Sem palavra, deu as costas e foi retornando pelo caminho, passando por mim. Virei-me para chamá-lo quando ouvi atrás de mim a porta se abrindo.
Um velho entroncado, metido numa jardineira parda e com uma camisa vermelha de mangas arregaçadas, me olhava apoiado no vão da porta. Tornei a olhar para o homenzinho só para vê-lo desaparecendo devagar na neblina fraca. Tornei a encarar o velho e percebi que ele mascava algo que, pelo cheiro, parecia fumo. Ele ficou me olhando por um tempo, com aquele maxilar de barba mal feita dançando pendurado, como que ruminando mais do que o fumo. Ruminando algo na cabeça. Limpou as mãos na jardineira, deu uma pigarreada e voltou-se para dentro da casa, lançando a voz rouca por sobre o ombro: “Feche a porta ao entrar”. Hesitei por uns segundos mas, dadas as circunstâncias, decidi obedecer. A casa tinha as paredes de toras e o teto alto, de madeira. Tinha várias cadeiras, almofadas e sofás espalhados, cobertos de forma rústica. Havia um fogão de pedra no centro e um duto acima dele, que se perdia no teto. Ao lado da porta pela qual entrei, uma grande enxada de cabo longo estava encostada à parede. Ao lado dela, uma pedra de amolar. Não vou me deter por demais na descrição do lugar, visto que o leitor obviamente não carece de tais detalhes. Detenhamos por tanto na conversa que tive com o meu interlocutor, da qual o leitor, talvez, não saiba.
O velho me serviu uma caneca de metal com uma infusão qualquer. Estava quente como os diabos e tive que apoiá-la na mesa enquanto me sentava. O velho sentou-se numa poltrona um pouco distante de mim.
— Não está do seu agrado? — Perguntou ao me ver depositar a caneca na mesa.
— Não é isso — respondi — está quente demais para segurar.
— Espere esfriar — ele retrucou, sorvendo o líquido fumegante da própria caneca.
— Pelo visto vai demorar um pouco. — Tentei dar um tom de brincadeira na voz, para aliviar o clima. Ao que ele respondeu só levantando os olhos para mim.
— Não tem problema. Há tempo de sobra.
Depois de uns minutos de silêncio, enquanto eu tentava tomar o chá e identificar o sentido daquele olhar, ele quebrou o silêncio novamente.
— Então ela não te deixou passar, não foi?
— Como?
— Para o outro lado. Ela não deixou que você cruzasse o rio.
— A camponesa?
Ele deu uma risada contida, mas aparentemente sincera, e rebateu.
— Sim, sim. A camponesa. A mulher da foice. Ela.
— Ela?
— Sim, ela. Você sabe. Diga. Vai fazer bem pra você.
Eu não havia reparado na corda pendurada de uma das vigas do teto. Aparentemente, nem meu anfitrião, que seguiu meu olhar com interesse.
— Ah, sim... Limpo. Você deve ser organizado. Já é um clássico, nunca sai de moda.
— ???
— Vamos, você pode se lembrar, você já sabe. O choque não é grande. Nunca é. Porque a escolha já foi tomada. Só falta a constatação.
Uma sensação estranha me inquietava naquela voz rouca. Um certo aperto no peito, como se o coração estivesse na garganta. Senti os meus pés balançarem na cadeira, dançando no ar. Uma cadeira. Sim, uma cadeira. E a corda. E uma viga e... sim.
Sim...
Quando retornei meu olhar para o velho, ele já estava quase sobre mim, bem próximo à mesa. Olhando-me de cima com olhos baços. Estranhamente não me senti chocado. Era como se eu já soubesse. Eu já sabia. Ele já sabia.
Olhou para a minha xícara que atirava redemoinhos de vapor ao ar e me disse de novo: “Há tempo de sobra”. Tornou a me olhar e falou.
— Ela não lhe deixou cruzar o rio.
— A mulher da foice. — Respondi. Ao que ele apenas repetiu, devagar, para que eu sentisse as palavras: “A mulher da foice”.
— Porque ela não me deixou cruzar?
— Há tempo de plantar e há tempo de colher. Ainda não é chegado o tempo de colher. Não para você. E a Dama da Colheita nunca ceifa antes do tempo. É preciso que o grão esteja maduro.
— Se não chegou o tempo da colheita, porque eu estou aqui?
— Às vezes o grão despenca antes do tempo e não pode ser colhido pela foice. Aí vem a mim.
Caminhando em direção à porta, ele continuou:
— Quando ele cai à terra, a foice da Dama não pode mais alcançá-lo. Mas eu posso.
Ele disse, acariciando o metal afiado da enxada com certo orgulho.
— Quem é você? — Perguntei receoso.
— Eu sou aquele que cata os grãos que se precipitaram antes do prazo. Eu sou aquele que os guarda até a hora da colheita. Eu sou aquele que acolhe os grãos do Acaso, aqueles que burlam o Desígnio, aqueles que tomam a decisão que não lhes cabe. Eu sou agora o seu tutor, o seu Senhor, seu guardião. Eu sou o Príncipe dos Suicidas.
Mesmo, no fundo, sabendo o que acontecera, o que eu havia feito, a calma que até então me tomava ameaçou me abandonar frente a emoção e orgulho daquele velho, com o braço peludo agarrado à enxada, que mesmo metido naquelas roupas comuns exalava um ar respeitoso. Logo a fraqueza se transformou em vergonha frente àquela palavra. “Suicida”. Não pude evitar baixar os olhos. O passado e o que eu havia deixado para trás já estava por demais nebuloso para que eu tivesse qualquer lembrança clara, mas aquela palavra me soava, de algum modo, obscena.
— Agora você baixa os olhos? — Ele perguntou para logo continuar:
—A vergonha não está no que fez, mas, talvez, no porque o fez. E aqui, nem isso importa mais. Ficou para trás. Além do que, por essa mesma casa já passaram muitos. Alguns grandes, outros ordinários. E muitos ainda virão.
— E agora o que eu faço?
— Agora você espera. A sua hora não chegou. E você só pode completar a travessia quando ela chegar. Mas agora, ao invés de aguardar onde você estava, você vai aguardar nesta casa.
— Mas eu vou completar a travessia?
— Sim, quando chegar a hora, a foice sempre faz a colheita.
— Então tem esperança? Então eu ainda posso ir pro céu?
— Céu!? Ah ah ah! Tudo o que sei é que ela vai permitir que você atravesse o rio. E além dele, está o outro lado.
— Então Deus aceita os suicidas?
— Todos os grãos acabam sendo colhidos. De um jeito ou de outro. Além do que, Deus, se é assim que você quer chamar, já aceitou tantos outros.
— E os padres sempre falavam na Bíblia, no atentado contra a própria vida, na palavra do Cristo...
—Sim, sim, eu me lembro dele. Passou algum tempo aqui.
— Aqui?
— Porque a surpresa? Para quem ouvia tanto os padres, você parece não ter prestado muito atenção na história.
— Mas Cristo não se suicidou, ele foi assassinado!
— Aquele que aguarda o trem sobre os trilhos não é então suicida? Devemos culpar o maquinista de homicídio se o atropelado sabia da chegada da locomotiva e aguardou que ela lhe beijasse o rosto? Foi a minha enxada que colheu a vida que a foice não pôde ceifar. Foi aqui que o grão prematuro amadureceu até a travessia.
— Ele atravessou o rio?
— Como você o fará, quando for chegada a hora.
— E eu devo esperar muito?
— Não se preocupe com o tempo. Tempo agora é tudo que lhe resta. E há tempo de sobra.
Sim, leitor! Há tempo de sobra. E se está lendo isso, é porque tempo não lhe falta. Tempo é tudo que tem. Porque esta história termina aqui. E o protagonista não morre no final. O protagonista desta história suicidou-se. O protagonista desta história já morreu.
Mas o protagonista desta história, leitor, não sou eu.
O depois (ou O verdadeiro fim)
Sentia vontade de chorar, mas não conseguia. Os olhos estavam presos. Duros. Frios. Era como se estivesse oca por dentro. Não entendia como ainda conseguia pensar. Sentia um leve cheiro de plantas, que se misturavam com fogo e, de repente, estava rodeada de velas. Se concentrada, conseguia ver vultos. A pequena brecha dos olhos que permaneciam abertos atingia exatamente o ângulo das mãos. Era ali que as pessoas estavam.
Amparados, chegaram o pai e a mãe. Completamente sem norte. Jamais vira as criaturas mais incríveis do mundo naquele estado. Trêmulos, infelizes, incapazes de compreender. Sentia como se a frieza da faca ainda estive cravada no meu peito, e aquilo, sim, matou. Tentou, sem sucesso, abraçá-los. Só a mente funcionava. Quis dizer que os amava, pedir desculpas por aquilo, explicar que encontrariam uma carta embaixo dos seus travesseiros. Não pode. Nunca sentira uma dor tão aguda.
Alguém os tirou dali. Já sentia saudades. Precisava vê-los, mas não podia pedir nada. Queria que um ser superior qualquer que matasse também a mente. O corpo já tinha conseguido, mas jamais imaginou que teria que ver tudo aquilo acontecendo. Era castigo demais, dor demais, sofrimento demais.
Os conhecidos chegaram primeiro. Amigos dos pais que pegavam a mão e faziam com a cabeça um sinal de negação. Depois vieram os desconhecidos e tinha vontade de mandar todos pras suas casas e deixarem olhar para os que realmente importavam.
De uma só vez, chegaram todos os amigos. Alguns se abraçavam e choravam, outros não se aproximavam. Suas expressões variavam entre descrença e medo, passava de saudade a monstro. Aqueles que nem falava mais, outros com quem convivia diariamente e alguns até que não fazia questão alguma que estivessem ali. Naqueles rostos estavam alguns sentimentos que jamais imaginou que existissem. Por um momento sentia leveza. Sempre disse aos que amava o quanto eles eram importantes.
Aí ele veio. Pegou na mão e tudo o que queria era devolver aquele toque quente. Os olhos inchados não escondiam a tristeza que sentia. Se pudesse vê-lo, diria que amei e que não se sentisse culpado de nada. Sabia que em poucos dias o correio lhe entregaria a última das trilhas sonoras da mais bela história e, com ela, uma por uma das frases que escrevi nesses tempos. Quis sentir sua intensidade por alguns segundos e só aquela paixão que um dia fez viver poderia fazer sentir morta. Foi assim quando, em poucos segundos, ele se foi e nunca mais o viu. Morria mais um pouco.
Uma faísca de vida ainda estava em mim. De relance, vi todos os que mais amava e, silenciosamente, pedi desculpas. Queria voltar atrás, eu juro que queria.... Estava escuro. Ouvi gritos e alguns cantos. Depois, o mais torturante dos silêncios. A saudade da vida me fez morrer de verdade, e em poucos segundos adormeci. Pra sempre.
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
TRISTE (?) FIM
Como um nobre fidalgo
Eu costumava caminhar
Por ruas, castelos,
E labirintos secretos
Labirintos sem saída,
Castelos sem reis,
Vidas se perdendo,
Quando será a minha vez?
Passo após passo
Como numa eterna caminhada
Quando eu olho para trás,
Simplesmente eu não vejo nada
Uma vida sem sentido,
Uma vida sem razão.
Uma morte sem motivos,
Uma morte sem perdão.
Os anjos do céu e do inferno,
Começam a batalhar
Para a vida ou para a morte
Pra que lado caminhar?
Que diferença faz
Desistir, ou não?
Por um acaso, se morrer
Irei pesar em seu coração?
Os castelos já estão sem luxo,
Os labirintos já estão sem graça.
As ruas estão vazias
As pessoas usam mordaças.
Um mendigo tratado como lixo,
Um negro como um animal.
Tanto eles, quanto eu,
O que fizemos de tão mal?
Na batalha entre o céu e o inferno,
O céu não tem mais chance.
A vida é tão boa,
Mas tão fora de nosso alcance
Agora eu paro por aqui,
Não tenho mais o que dizer
Sobre o prédio eu abro os braços,
O meu destino é morrer.
Aqui em cima é tão bonito,
Eu me sinto tão bem.
Um corpo em queda livre,
O silêncio logo vem...
Uma vida jogada fora,
Por um coração partido.
Uma forte lembrança no peito
De um amor destruído
(originalmente escrito em 1999)
Eu costumava caminhar
Por ruas, castelos,
E labirintos secretos
Labirintos sem saída,
Castelos sem reis,
Vidas se perdendo,
Quando será a minha vez?
Passo após passo
Como numa eterna caminhada
Quando eu olho para trás,
Simplesmente eu não vejo nada
Uma vida sem sentido,
Uma vida sem razão.
Uma morte sem motivos,
Uma morte sem perdão.
Os anjos do céu e do inferno,
Começam a batalhar
Para a vida ou para a morte
Pra que lado caminhar?
Que diferença faz
Desistir, ou não?
Por um acaso, se morrer
Irei pesar em seu coração?
Os castelos já estão sem luxo,
Os labirintos já estão sem graça.
As ruas estão vazias
As pessoas usam mordaças.
Um mendigo tratado como lixo,
Um negro como um animal.
Tanto eles, quanto eu,
O que fizemos de tão mal?
Na batalha entre o céu e o inferno,
O céu não tem mais chance.
A vida é tão boa,
Mas tão fora de nosso alcance
Agora eu paro por aqui,
Não tenho mais o que dizer
Sobre o prédio eu abro os braços,
O meu destino é morrer.
Aqui em cima é tão bonito,
Eu me sinto tão bem.
Um corpo em queda livre,
O silêncio logo vem...
Uma vida jogada fora,
Por um coração partido.
Uma forte lembrança no peito
De um amor destruído
(originalmente escrito em 1999)
domingo, 21 de setembro de 2008
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
Votação: Conto do passado
Está aberta a votação da 31ª rodada do Duelo de Escritores!
Pra quem ainda não sabe, o voto do público é quem decide o vencedor do Duelo. Basta comentar neste tópico indicando seu texto preferido.
A votação vai até o dia 20 de agosto. Então, vote!
Dívida amarga
A França vivia quase meio século de prosperidade. O clima favorecia a agricultura, alimentando uma população crescente, os trabalhos artesanais progrediam fortalecendo o comércio entre os cidadãos e a moeda se mantinha estável. Com a melhoria das estradas, o comércio entre as vilas começava a progredir lentamente.
Nem tudo corria bem, entretanto. Enquanto monarcas se banqueteavam com faisões e porcos defumados, o povo não participava igualmente dessa prosperidade. Os pesados impostos cobrados pelo Estado recaíam sobre as classes populares, como a família de Frimas, jovem artesão que vivia com esposa e os dois filhos gêmeos, Alexandre e Rouben.
Foi exatamente no dia do aniversário de nove anos dos filhos, que dois homens vestindo roupas da guarda real bateram à porta do casebre que abrigava a família de Frimas. Feliz pelas comemorações do aniversário dos garotos, o jovem não raciocinou antes de abrir a porta e dar de frente com os homens que já o procuravam a semanas. Um golpe firme, porém contido, atingiu Frimas na altura do joelho, fazendo com que seu corpo caísse de lado em frente à casa.
Antes mesmo que pudesse pensar em se levantar, um pé o impelia em direção ao solo, colocado sobre sua cabeça. A ponta de lança apontada em direção a seus olhos servia como um último convencimento. O outro homem invadiu a casa, caminhou com passos firmes em direção à mesa onde os garotos protegiam-se agarrados à mãe.
- Por favor, nós vamos pagar! Nós vamos conseguir o dinheiro! – chorava a matriarca, provocando soluços nos dois pequenos.
As costas da mão direita do guarda atingiram com força o rosto da magra mulher. Rouben, um dos garotos, correu em direção à estante, onde agarrou um saco de moedas e correu porta afora. Afoito, olhava para trás quando atingiu com força o corpulento soldado que aguardava do lado de fora da porta de entrada do casebre. Com a pancada, caiu ao chão e deixou cair de suas mãos o pequeno saco de couro, que espalhou algumas poucas moedas pelo terreno arenoso da propriedade.
Com uma risada, o guarda apanhou o pequeno recipiente das moedas. O menino levantou-se e correu em sua direção, mas um empurrão o lançou longe. O momento de distração foi o suficiente para que Frimas girasse o corpo e lançasse o guarda ao chão. Chutou-lhe a cabeça sem piedade, fazendo voar longe o chapéu preto. Antes do segundo chute ser desferido, o segundo guarda chega na porta pronto para impedi-lo. Frimas ergue os braços, rendendo-se, mas o guarda corpulento que se levantava cravou a lâmina fria de sua adaga entre as costelas do artesão.
O pequeno Alexandre deu um grito e correu na direção dos guardas, com uma velha faca de cozinha em mãos. Os homens entraram no casebre, abandonando o corpo já inerte de Frimas no chão. Um dos guardas segurou o menino e o desarmou, enquanto o outro fechava a porta e partia decidido em direção da esposa de Frimas.
O pequeno Rouben agarrou o saco de moedas, que havia caído no momento da briga, e abraçou seu pai pela última vez. Arrancou o cordão que Frimas levava junto ao pescoço e colocou em seu bolso. Olhou uma última vez sobre seu ombro direito, com o rosto já coberto de lágrimas e jurou vingança enquanto corria para a segurança das matas, sob os gritos que tomavam o afastado vilarejo.
Nem tudo corria bem, entretanto. Enquanto monarcas se banqueteavam com faisões e porcos defumados, o povo não participava igualmente dessa prosperidade. Os pesados impostos cobrados pelo Estado recaíam sobre as classes populares, como a família de Frimas, jovem artesão que vivia com esposa e os dois filhos gêmeos, Alexandre e Rouben.
Foi exatamente no dia do aniversário de nove anos dos filhos, que dois homens vestindo roupas da guarda real bateram à porta do casebre que abrigava a família de Frimas. Feliz pelas comemorações do aniversário dos garotos, o jovem não raciocinou antes de abrir a porta e dar de frente com os homens que já o procuravam a semanas. Um golpe firme, porém contido, atingiu Frimas na altura do joelho, fazendo com que seu corpo caísse de lado em frente à casa.
Antes mesmo que pudesse pensar em se levantar, um pé o impelia em direção ao solo, colocado sobre sua cabeça. A ponta de lança apontada em direção a seus olhos servia como um último convencimento. O outro homem invadiu a casa, caminhou com passos firmes em direção à mesa onde os garotos protegiam-se agarrados à mãe.
- Por favor, nós vamos pagar! Nós vamos conseguir o dinheiro! – chorava a matriarca, provocando soluços nos dois pequenos.
As costas da mão direita do guarda atingiram com força o rosto da magra mulher. Rouben, um dos garotos, correu em direção à estante, onde agarrou um saco de moedas e correu porta afora. Afoito, olhava para trás quando atingiu com força o corpulento soldado que aguardava do lado de fora da porta de entrada do casebre. Com a pancada, caiu ao chão e deixou cair de suas mãos o pequeno saco de couro, que espalhou algumas poucas moedas pelo terreno arenoso da propriedade.
Com uma risada, o guarda apanhou o pequeno recipiente das moedas. O menino levantou-se e correu em sua direção, mas um empurrão o lançou longe. O momento de distração foi o suficiente para que Frimas girasse o corpo e lançasse o guarda ao chão. Chutou-lhe a cabeça sem piedade, fazendo voar longe o chapéu preto. Antes do segundo chute ser desferido, o segundo guarda chega na porta pronto para impedi-lo. Frimas ergue os braços, rendendo-se, mas o guarda corpulento que se levantava cravou a lâmina fria de sua adaga entre as costelas do artesão.
O pequeno Alexandre deu um grito e correu na direção dos guardas, com uma velha faca de cozinha em mãos. Os homens entraram no casebre, abandonando o corpo já inerte de Frimas no chão. Um dos guardas segurou o menino e o desarmou, enquanto o outro fechava a porta e partia decidido em direção da esposa de Frimas.
O pequeno Rouben agarrou o saco de moedas, que havia caído no momento da briga, e abraçou seu pai pela última vez. Arrancou o cordão que Frimas levava junto ao pescoço e colocou em seu bolso. Olhou uma última vez sobre seu ombro direito, com o rosto já coberto de lágrimas e jurou vingança enquanto corria para a segurança das matas, sob os gritos que tomavam o afastado vilarejo.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
Encanto
Os passos eram simultaneamente decididos e amedrontados. A curiosidade e a excitação em descobrir o que aquela mulher escondia por trás da portinhola da velha casa tornava a respiração ofegante, e as tochas oscilavam. Ela era uma espécie de sereia, que aproximava qualquer homem que quisesse. Elas tinham inveja e resolveram que ela sumiria por uns tempos, até que elas descobrissem o que havia por trás de tamanho poder.
Enquanto três entravam no recinto, duas, a espreita, observavam o movimento. Na vila viviam não mais do que trezentos ou quatrocentos habitantes. Os cavalos dormiam e seus pais jamais imaginavam mulheres fora de casa àquele horário. Elas precisavam descobrir o encanto por trás de uma moça tão simples, que conseguia atrair os olhares de todos os seus pretendentes.
Já no primeiro armário, encontraram velas usadas. Vermelhas, amarelas, brancas e negras. As três se olharam, incrédulas. “Ela deve usar as luzes das velas para ficar nua na frente deles”. Um suspiro de surpresa quase fez com que gritassem. Respiraram fundo. Continuaram.
Um pouco a frente, num tacho de madeira, algumas peças de roupas. Com a ponta dos dedos, uma delas levantou uma das ceroulas que estavam jogadas no local. Os olhares falaram muito mais do que palavras. Já tinham pensado que ela pudesse ficar nua na frente dos homens, mas jamais tiveram a ousadia de imaginar que eles também poderiam estar sem roupas.
Uma delas apontou para um canto da casa. Cristas de galo, pêlos de cachorro, garrafas de colônia, essência de cravo. Tudo ali, em vidros pequenos recipientes, separados e com identificação. Soltaram um grito. No susto, a tocha se aproximou de uma parede coberta de bonecos cheios de pedaços de madeira fincados em diversas partes do corpo. Se entreolharam. Sem dizer uma só palavra, esforçaram-se para não amassar os vestidos ao sair.
Fecharam a porta. Os passos ainda mais amedrontados, e ainda mais decididos. Elas tinham descoberto que o segredo da conquista ia muito além das curvas do corpo feminino e do poder de um belo sorriso. Elas tinham descoberto a ação. E a ação é a arte milenar da conquista.
Enquanto três entravam no recinto, duas, a espreita, observavam o movimento. Na vila viviam não mais do que trezentos ou quatrocentos habitantes. Os cavalos dormiam e seus pais jamais imaginavam mulheres fora de casa àquele horário. Elas precisavam descobrir o encanto por trás de uma moça tão simples, que conseguia atrair os olhares de todos os seus pretendentes.
Já no primeiro armário, encontraram velas usadas. Vermelhas, amarelas, brancas e negras. As três se olharam, incrédulas. “Ela deve usar as luzes das velas para ficar nua na frente deles”. Um suspiro de surpresa quase fez com que gritassem. Respiraram fundo. Continuaram.
Um pouco a frente, num tacho de madeira, algumas peças de roupas. Com a ponta dos dedos, uma delas levantou uma das ceroulas que estavam jogadas no local. Os olhares falaram muito mais do que palavras. Já tinham pensado que ela pudesse ficar nua na frente dos homens, mas jamais tiveram a ousadia de imaginar que eles também poderiam estar sem roupas.
Uma delas apontou para um canto da casa. Cristas de galo, pêlos de cachorro, garrafas de colônia, essência de cravo. Tudo ali, em vidros pequenos recipientes, separados e com identificação. Soltaram um grito. No susto, a tocha se aproximou de uma parede coberta de bonecos cheios de pedaços de madeira fincados em diversas partes do corpo. Se entreolharam. Sem dizer uma só palavra, esforçaram-se para não amassar os vestidos ao sair.
Fecharam a porta. Os passos ainda mais amedrontados, e ainda mais decididos. Elas tinham descoberto que o segredo da conquista ia muito além das curvas do corpo feminino e do poder de um belo sorriso. Elas tinham descoberto a ação. E a ação é a arte milenar da conquista.
Retratado
Sebastian deslizava entre as sombras dos oito graus de temperatura da noite parisiense. O vento gelado trazia o burburinho de uma Paris borbulhante como espumantes em taças de cristal, que logo mais brindariam o novo ano. O capote marrom grosseiro, protegia o corpo do frio enquanto as luvas sem ponta, de lã surrada, tentavam cobrir os dedos. Uma boina velha e acinzentada como a cidade cobria a cabeça e um cachecol xadrez escondia a barba de subúrbio francês. No escuro, por trás de arbustos ásperos como o olhar dos transeuntes com quem cruzava diariamente, agarrou-se à grade de ferro ornamentada com folhas e ramos de metal retorcido. Escalou sem dificuldade e lançou-se ao jardim bem cuidado. Encoberto pelas plantas, alcançou a janela aberta. Num salto, deixou para trás o frio e moribundo dezembro.
Lá dentro, um chama esquálida equilibrava-se no alto de um candelabro de prata ao lado da janela, iluminando o quarto feminino que abrigava a vanguarda da decoração do século XIX. O casaco de peles sobre uma cadeira, a tapeçaria rebuscada, os babados das cortinas, a grande penteadeira com o espelho emoldurado. Sebastian, destoando daquele quadro, não se preocupava em ser discreto. Àquelas horas, o quarto permaneceria vazio enquanto os salões de baile estariam lotados de damas e cavalheiros, música e risada, todos aguardando o último suspiro do ano moribundo, o último descendente do século XIX. Sobre a cama de cabeceira entalhada, a colcha delicada acolhia algumas almofadas. Sob uma delas, uma ponta de couro marrom espiava o intruso. Sebastian removeu a almofada revelando um pequeno volume de couro com as iniciais V.W. grafadas na capa. Uma rosa seca marcava uma das páginas. Com uma delicadeza que contrastava com os dedos rudes, o invasor removeu a rosa pousando-a com cuidado sobre uma das almofadas e abriu o pequeno caderno. No alto da página, a data revelava o dia anterior com um “30 de dezembro de 1900” na grafia delicada de mulher. Abaixo, a primeira frase destoava da delicadeza da grafia: “Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris”. A frase capturou o suburbano mais do que a prataria do quarto. Aproximou-se com o diário da vela e quedou-se curioso à leitura.
“Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris. Não foi de mazela no corpo que padeceu meu pai. Foi de uma ferida na alma, mal cicatrizada e cutucada. Ele que deu tanto a vocês. Que trouxe para cá aqueles olhos envolventes, a língua astuta. Ele que lhes mostrou a beleza, que lhes desvendou um novo mundo. E é assim que Paris retribui. Mas quem sou eu, não é? Agora não passo de uma mulher sem importância para vocês. Ah! Mas vocês já aplaudiram Uma mulher sem importância, não é? Cyril estava certo. Paris não o merecia. Nenhum de vocês. Chegará o dia em que vocês irão atrás dele. Mas quando o encontrarem, em alguma praça, vão receber de volta o mesmo olhar pétreo que dedicaram a ele nestes últimos anos. Mas dessa vez é ele quem os olhará de cima. Ah, Paris! Aproveite amanhã que amanhã é o último dia. O último suspiro de um século que já terminou há um mês. Pois foi há trinta dias que morreu o século XIX. E vocês, que amanhã estarão uivando em vestidos de baile pelo século que se vai, vão todos com ele. Todos vocês se vão. E você também se vai, Paris. E não há retrato que lhe impeça o envelhecer. E quando o século se for, meu pai vai lembrar de vocês e vai cantar feito rouxinol. Ele cantará enquanto todos vocês se forem. Vocês e o maldito Queensbery. Todos vocês que lhe roubaram a dignidade, a saúde, o próprio nome! Vocês que o enfurnaram num casebre. Numa cela! Ah, Paris. As suas vaidades de vapor e fumaça escondem as suas manipulações. O retrato não é de um homem. O retrato é seu, Paris. E estás presa a ele como a um cárcere. Um cárcere muito mais duradouro que Reading, um cárcere sem balada, sem canção. Ah, Paris. Meu pai disse que não existe livro moral ou amoral. Agora que ele se foi, eu percebo. É pena que o mesmo não valha para uma cidade. Já morreu o século XIX. E o seu retrato, Paris, foi rasgado.”
Sebastian recolocou a rosa com cuidado na página marcada. Escondeu novamente o caderno sob a almofada e dirigiu-se novamente à janela. Sentiu no rosto o vento frio soprar as últimas horas do século XIX, fazendo a chama quase despencar do candelabro de prata. Olhou a cidade além das grades. Os casacos de pele, os coches, a fumaça das piteiras. Ao longe o vapor de uma nova invenção que ele mal entendia soava barulhento. Olhou de longe a almofada que escondia o caderno, tornou a olhar para a cidade. Baixou os olhos e suspirou o ar frio com esforço. Soprou a chama que se agarrava ao pavio, tomou o candelabro partiu de volta à cidade.
Lá dentro, um chama esquálida equilibrava-se no alto de um candelabro de prata ao lado da janela, iluminando o quarto feminino que abrigava a vanguarda da decoração do século XIX. O casaco de peles sobre uma cadeira, a tapeçaria rebuscada, os babados das cortinas, a grande penteadeira com o espelho emoldurado. Sebastian, destoando daquele quadro, não se preocupava em ser discreto. Àquelas horas, o quarto permaneceria vazio enquanto os salões de baile estariam lotados de damas e cavalheiros, música e risada, todos aguardando o último suspiro do ano moribundo, o último descendente do século XIX. Sobre a cama de cabeceira entalhada, a colcha delicada acolhia algumas almofadas. Sob uma delas, uma ponta de couro marrom espiava o intruso. Sebastian removeu a almofada revelando um pequeno volume de couro com as iniciais V.W. grafadas na capa. Uma rosa seca marcava uma das páginas. Com uma delicadeza que contrastava com os dedos rudes, o invasor removeu a rosa pousando-a com cuidado sobre uma das almofadas e abriu o pequeno caderno. No alto da página, a data revelava o dia anterior com um “30 de dezembro de 1900” na grafia delicada de mulher. Abaixo, a primeira frase destoava da delicadeza da grafia: “Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris”. A frase capturou o suburbano mais do que a prataria do quarto. Aproximou-se com o diário da vela e quedou-se curioso à leitura.
“Não foi a doença que matou meu pai. Foi Paris. Não foi de mazela no corpo que padeceu meu pai. Foi de uma ferida na alma, mal cicatrizada e cutucada. Ele que deu tanto a vocês. Que trouxe para cá aqueles olhos envolventes, a língua astuta. Ele que lhes mostrou a beleza, que lhes desvendou um novo mundo. E é assim que Paris retribui. Mas quem sou eu, não é? Agora não passo de uma mulher sem importância para vocês. Ah! Mas vocês já aplaudiram Uma mulher sem importância, não é? Cyril estava certo. Paris não o merecia. Nenhum de vocês. Chegará o dia em que vocês irão atrás dele. Mas quando o encontrarem, em alguma praça, vão receber de volta o mesmo olhar pétreo que dedicaram a ele nestes últimos anos. Mas dessa vez é ele quem os olhará de cima. Ah, Paris! Aproveite amanhã que amanhã é o último dia. O último suspiro de um século que já terminou há um mês. Pois foi há trinta dias que morreu o século XIX. E vocês, que amanhã estarão uivando em vestidos de baile pelo século que se vai, vão todos com ele. Todos vocês se vão. E você também se vai, Paris. E não há retrato que lhe impeça o envelhecer. E quando o século se for, meu pai vai lembrar de vocês e vai cantar feito rouxinol. Ele cantará enquanto todos vocês se forem. Vocês e o maldito Queensbery. Todos vocês que lhe roubaram a dignidade, a saúde, o próprio nome! Vocês que o enfurnaram num casebre. Numa cela! Ah, Paris. As suas vaidades de vapor e fumaça escondem as suas manipulações. O retrato não é de um homem. O retrato é seu, Paris. E estás presa a ele como a um cárcere. Um cárcere muito mais duradouro que Reading, um cárcere sem balada, sem canção. Ah, Paris. Meu pai disse que não existe livro moral ou amoral. Agora que ele se foi, eu percebo. É pena que o mesmo não valha para uma cidade. Já morreu o século XIX. E o seu retrato, Paris, foi rasgado.”
Sebastian recolocou a rosa com cuidado na página marcada. Escondeu novamente o caderno sob a almofada e dirigiu-se novamente à janela. Sentiu no rosto o vento frio soprar as últimas horas do século XIX, fazendo a chama quase despencar do candelabro de prata. Olhou a cidade além das grades. Os casacos de pele, os coches, a fumaça das piteiras. Ao longe o vapor de uma nova invenção que ele mal entendia soava barulhento. Olhou de longe a almofada que escondia o caderno, tornou a olhar para a cidade. Baixou os olhos e suspirou o ar frio com esforço. Soprou a chama que se agarrava ao pavio, tomou o candelabro partiu de volta à cidade.
Momento de fúria
Caminhava sozinho pelo deserto que, alguns milênios depois, receberia a mais brilhante das maravilhas construídas pela humanidade. Já andava há alguns dias e não sabia mais para onde estava indo. Nem imaginava que aquela terra abandonada nos arredores do Rio Nilo se tornaria uma das maiores metrópoles do mundo em pouco mais de oito milênios. Seus mantimentos se tornavam escassos, pois não planejara viajar por tanto tempo.
--
Depois de mais algumas rotações da Terra, não lhe sobrava nada além de farinha. Por sorte, não desperdiçara nem uma gota d’água sequer. Até que num desatino, num momento de profunda loucura e desespero, resolveu misturar o que lhe restava. Esmagava aquela massa e batia como se quisesse matar alguém. A raiva possuía seu cérebro, que já não conseguia mais raciocinar nem por um segundo.
E foi assim que nos tornamos reféns dele. Não sobreviveu para ver as Pirâmides de Gizé se erguerem ou a cidade de Cairo chegar a cerca de sete milhões de habitantes, mas a obra de sua fúria ficou pra contar história. Sobreviveu a todo tipo de adversidade. Colocaram sobre ela algumas ervas. Depois veio o queijo, o tomate, a calabresa e até chocolate. Hoje, ele se vangloria por tê-la inventado. Mesmo não recebendo os devidos créditos, sabe que foi o seu momento de loucura - minutos antes da falência total de seus músculos - que proporcionou ao mundo toda a genialidade dos rodízios de pizza e da tele-entrega.
--
Depois de mais algumas rotações da Terra, não lhe sobrava nada além de farinha. Por sorte, não desperdiçara nem uma gota d’água sequer. Até que num desatino, num momento de profunda loucura e desespero, resolveu misturar o que lhe restava. Esmagava aquela massa e batia como se quisesse matar alguém. A raiva possuía seu cérebro, que já não conseguia mais raciocinar nem por um segundo.
E foi assim que nos tornamos reféns dele. Não sobreviveu para ver as Pirâmides de Gizé se erguerem ou a cidade de Cairo chegar a cerca de sete milhões de habitantes, mas a obra de sua fúria ficou pra contar história. Sobreviveu a todo tipo de adversidade. Colocaram sobre ela algumas ervas. Depois veio o queijo, o tomate, a calabresa e até chocolate. Hoje, ele se vangloria por tê-la inventado. Mesmo não recebendo os devidos créditos, sabe que foi o seu momento de loucura - minutos antes da falência total de seus músculos - que proporcionou ao mundo toda a genialidade dos rodízios de pizza e da tele-entrega.
Procrastinado
16/09/08
Elas se unem, giram, se agarram e se retorcem. Abraçadas, deixam de ser várias para ser só uma. Começam uma dança magnífica, chamando para bailar as distintas companheiras que as cercam. Movimentos precisos, impecavelmente dentro do tempo. Mas logo se sentem sozinhas em meio às outras, que não seguem os seus passos com a mesma dedicação. Então chamam-nas para uma valsa diferente, corpos colados com nunca, uma intimidade indiscreta. E então uma são duas. A dança é bela, todas agora querem aprender. As pacientes professoras as ensinam. Em breve, tudo é um minueto harmônico em meio ao caos. Nuas e livres, sentem frio e medo, até que uma tem a idéia genial. E os salões de baile então se lotam de belas dançarinas, professores e aprendizes, mães e filhas. Uma mãe, no entanto, tem uma filha estranha. Sua dança é muito rápida, ninguém mais a acompanha. A mãe, assustada, rejeita a própria sucessora. Mas logo não há mais mães, apenas filhas. E netas. Netas que um dia serão as filhas, e filhas que seguirão o caminho das mães. De não-vivo a vivo em um rodopiar de valsa. Mas não há dança, não há alma, não há deus. Apenas o começo prosaico de uma longa caminhada.
Elas se unem, giram, se agarram e se retorcem. Abraçadas, deixam de ser várias para ser só uma. Começam uma dança magnífica, chamando para bailar as distintas companheiras que as cercam. Movimentos precisos, impecavelmente dentro do tempo. Mas logo se sentem sozinhas em meio às outras, que não seguem os seus passos com a mesma dedicação. Então chamam-nas para uma valsa diferente, corpos colados com nunca, uma intimidade indiscreta. E então uma são duas. A dança é bela, todas agora querem aprender. As pacientes professoras as ensinam. Em breve, tudo é um minueto harmônico em meio ao caos. Nuas e livres, sentem frio e medo, até que uma tem a idéia genial. E os salões de baile então se lotam de belas dançarinas, professores e aprendizes, mães e filhas. Uma mãe, no entanto, tem uma filha estranha. Sua dança é muito rápida, ninguém mais a acompanha. A mãe, assustada, rejeita a própria sucessora. Mas logo não há mais mães, apenas filhas. E netas. Netas que um dia serão as filhas, e filhas que seguirão o caminho das mães. De não-vivo a vivo em um rodopiar de valsa. Mas não há dança, não há alma, não há deus. Apenas o começo prosaico de uma longa caminhada.
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
Tema da rodada
Bem, pessoal, o que mais gosto na literatura é de explorar ambientes diferenciados, experimentando um pouco de uma realidade além daquela do dia-a-dia. E se já exploramos outros mundos numa rodada anterior, por que não outros tempos?
Então a proposta é: escrever uma texto que seja ambientado num período anterior ao século XX. O futuro deixaremos para uma próxima ocasião...
Da Inglaterra vitoriana ao início do universo, temos aí bilhões e bilhões de anos ao nosso dispôr (milhares e milhares, na visão de alguns, mas ainda assim é bastante).
Divirtam-se!
Então a proposta é: escrever uma texto que seja ambientado num período anterior ao século XX. O futuro deixaremos para uma próxima ocasião...
Da Inglaterra vitoriana ao início do universo, temos aí bilhões e bilhões de anos ao nosso dispôr (milhares e milhares, na visão de alguns, mas ainda assim é bastante).
Divirtam-se!
domingo, 7 de setembro de 2008
Antes da festa
- Amor, to indo pra uma festa com meus amigos.
- Ah, tudo bem. Pra onde vocês vão?
- Pro Bali Hai.
- Porto Belo ou Piçarras?
- Porto Belo.
- Ah, que pena. Vou com as minhas amigas pro de Piçarras.
- Como assim?
- Então, as meninas tão combinando de fazer um esquenta na casa do Claudinho, ali em Penha, depois vai todo mundo pro Bali Hai.
- Ah, não, né! Não vais pro Bali Hai sozinha. Nem pensar!
- Oras. Por quê?
- Não é ambiente pra mulher que namora ir sozinha. Sei lá.
- Mas tu vais sozinho numa boa?
- Ah, amor. É diferente. Pra homem é diferente.
- ...
- Os caras não respeitam as gurias se o namorado não tiver junto.
- E as gurias respeitam?
- Ah. É diferente. Se o cara ficar sossegado na dele não vem mulher atrás, com vocês é diferente, os caras vão pra cima mesmo.
- Mas e daí? É só dar um fora bem dado e pronto!
- Tenho medo que você goste de alguém.
- Como assim? Eu te amo. Não existe essa possibilidade. Já aconteceu contigo, é?
- Não, não. Nada a ver. Só bebo com os guris e ajudo eles a conversar com as gurias quando precisam de ajuda, mas não rola nada.
- E se uma hora você gostar de uma delas?
- Ah! Sem chance. Eu te amo!
- Então ta tudo tranqüilo. Vamos cada um com seus amigos e depois nos encontramos pro almoço de domingo lá na casa dos meus pais. O que achas?
- Não, não. Você não vai sozinha pro Bali Hai.
- ...
- Espera. Não me deixa falando sozinho.
- Não dá de conversar. Você só pensa em você.
- Pelo contrário. To pensando no nosso relacionamento. Como é que eu vou ficar sossegado lá em Porto Belo sabendo que tais sendo assediada por uma multidão lá em Piçarras?
- Viu. Eu, eu, eu e eu. Em nenhum momento pensasses em nós, só em ti.
- Ta. Então faz o que tu queres. Eu tenho que ir porque os guris já tão me esperando pro esquenta.
- Certo. Nos encontramos amanhã pro almoço?
- Fechado. Te ligo quando acordar.
Os dois se beijam e saem para lados opostos. Ele liga para um amigo:
- Cara. Maravilha! Hoje vou solteiro.
Ela liga para uma amiga.
- To saindo de casa já. Só não sei se vou com vocês depois do esquenta.
- Ah, tudo bem. Pra onde vocês vão?
- Pro Bali Hai.
- Porto Belo ou Piçarras?
- Porto Belo.
- Ah, que pena. Vou com as minhas amigas pro de Piçarras.
- Como assim?
- Então, as meninas tão combinando de fazer um esquenta na casa do Claudinho, ali em Penha, depois vai todo mundo pro Bali Hai.
- Ah, não, né! Não vais pro Bali Hai sozinha. Nem pensar!
- Oras. Por quê?
- Não é ambiente pra mulher que namora ir sozinha. Sei lá.
- Mas tu vais sozinho numa boa?
- Ah, amor. É diferente. Pra homem é diferente.
- ...
- Os caras não respeitam as gurias se o namorado não tiver junto.
- E as gurias respeitam?
- Ah. É diferente. Se o cara ficar sossegado na dele não vem mulher atrás, com vocês é diferente, os caras vão pra cima mesmo.
- Mas e daí? É só dar um fora bem dado e pronto!
- Tenho medo que você goste de alguém.
- Como assim? Eu te amo. Não existe essa possibilidade. Já aconteceu contigo, é?
- Não, não. Nada a ver. Só bebo com os guris e ajudo eles a conversar com as gurias quando precisam de ajuda, mas não rola nada.
- E se uma hora você gostar de uma delas?
- Ah! Sem chance. Eu te amo!
- Então ta tudo tranqüilo. Vamos cada um com seus amigos e depois nos encontramos pro almoço de domingo lá na casa dos meus pais. O que achas?
- Não, não. Você não vai sozinha pro Bali Hai.
- ...
- Espera. Não me deixa falando sozinho.
- Não dá de conversar. Você só pensa em você.
- Pelo contrário. To pensando no nosso relacionamento. Como é que eu vou ficar sossegado lá em Porto Belo sabendo que tais sendo assediada por uma multidão lá em Piçarras?
- Viu. Eu, eu, eu e eu. Em nenhum momento pensasses em nós, só em ti.
- Ta. Então faz o que tu queres. Eu tenho que ir porque os guris já tão me esperando pro esquenta.
- Certo. Nos encontramos amanhã pro almoço?
- Fechado. Te ligo quando acordar.
Os dois se beijam e saem para lados opostos. Ele liga para um amigo:
- Cara. Maravilha! Hoje vou solteiro.
Ela liga para uma amiga.
- To saindo de casa já. Só não sei se vou com vocês depois do esquenta.
sábado, 6 de setembro de 2008
Luzes amarelas
- A luz do teu telefone.
- Que tem ela?
- Tá piscando.
- Ela sempre tá piscando.
- Não, mas ela tá piscando amarelo. Ela normalmente não pisca verde?
- Hum... é. Deixa eu ver se alguém me ligou.
- ...
- Pronto.
- Tá, o que era?
- Tinha uma ligação não atendida, só isso.
- Ligação de quem?
- Não sei, não conheço o número.
- Deixa eu ver.
- Por quê?
- Pra ver se eu conheço.
- Queres ver se é um número desconhecido mesmo, né?
- ...
- Por que achas que é mulher me ligando a essa hora da noite, né?
- ...
- Tu não confia nem um pouco em mim?
- ... confio, mas é que...
- Se tu confiasse mesmo, não pedia pra ver meu celular.
- Mas...
- Nada de “mas”... você diz que confia em mim, mas na real, nunca confiou. Pensa que todo dia eu saio da tua casa e vou aprontar alguma por aí.
- ...
- Me diz, por que você continua comigo se não confia em mim?
- P....
- Não tens nenhuma auto-estima? Por que achas que deves ficar comigo se eu sou esse cachorro que você vive me pintando? Deves viver falando mal de mim pra todo mundo, me pintando como um monstro. Porque você não confia em mim. E isso não é amor, não existe amor sem confiança, ouviu?
- ...
- Ouviu?
- ...
- ...
- ...
- Desculpa.
- ...
- Desculpa, te amo.
- ...
- Eu sou um porco, eu sei, não devia ter falado isso.
- ...
- Você me desculpa? Me diz que me perdoa?
- ...uhum...
- Você me ama?
- ...uhum...
Ele a abraça, limpa as lágrimas que escorrem pela face rosada e lhe dá um beijo sôfrego nos lábios quentes. Ela o perdoa com uma dor no peito, enquanto no celular dele o nome “Amanda” pisca luzes amarelas delatando uma mensagem romântica proibida e enviada fora de hora.
- Que tem ela?
- Tá piscando.
- Ela sempre tá piscando.
- Não, mas ela tá piscando amarelo. Ela normalmente não pisca verde?
- Hum... é. Deixa eu ver se alguém me ligou.
- ...
- Pronto.
- Tá, o que era?
- Tinha uma ligação não atendida, só isso.
- Ligação de quem?
- Não sei, não conheço o número.
- Deixa eu ver.
- Por quê?
- Pra ver se eu conheço.
- Queres ver se é um número desconhecido mesmo, né?
- ...
- Por que achas que é mulher me ligando a essa hora da noite, né?
- ...
- Tu não confia nem um pouco em mim?
- ... confio, mas é que...
- Se tu confiasse mesmo, não pedia pra ver meu celular.
- Mas...
- Nada de “mas”... você diz que confia em mim, mas na real, nunca confiou. Pensa que todo dia eu saio da tua casa e vou aprontar alguma por aí.
- ...
- Me diz, por que você continua comigo se não confia em mim?
- P....
- Não tens nenhuma auto-estima? Por que achas que deves ficar comigo se eu sou esse cachorro que você vive me pintando? Deves viver falando mal de mim pra todo mundo, me pintando como um monstro. Porque você não confia em mim. E isso não é amor, não existe amor sem confiança, ouviu?
- ...
- Ouviu?
- ...
- ...
- ...
- Desculpa.
- ...
- Desculpa, te amo.
- ...
- Eu sou um porco, eu sei, não devia ter falado isso.
- ...
- Você me desculpa? Me diz que me perdoa?
- ...uhum...
- Você me ama?
- ...uhum...
Ele a abraça, limpa as lágrimas que escorrem pela face rosada e lhe dá um beijo sôfrego nos lábios quentes. Ela o perdoa com uma dor no peito, enquanto no celular dele o nome “Amanda” pisca luzes amarelas delatando uma mensagem romântica proibida e enviada fora de hora.
O Senhor Orquidófilo
Eis que havia então aquele orquidófilo muito premiado. Sua orquídea campeã sempre vencia os concursos e era o orgulho do senhor orquidófilo. Sempre muito aprumado, gabava-se de sua planta campeã. Criada longe de estufas, na mata, livre como orquídea selvagem. E lá ficava ela, sem supervisão, garbosa, na mata, a orquídea campeã.
Pois então chegou um dia, que o nosso senhor orquidófilo meteu-se novamente na mata, para buscar sua planta premiada para mais um concurso. Foi quando a viu, em meio aos tantos galhos, despetalada. Algum animal havia comida sua tão preciosa flor. Só lhe restara um pedacinho do caule cercado de galhos.
Revoltado, o senhor orquidófilo decidiu-se a nunca mais cometer o mesmo erro. Construiu uma estufa com toda a segurança, ao lado de casa. Nunca mais criaria suas plantas livres. Lá trancafiou suas orquídeas e ficou a vigiá-las dia e noite. Não contente, não queria que ninguém as visse, não fosse nas exposições. Cobriu toda a estufa com lona preta para que sua nova campeã crescesse longe da vista dos curiosos.
Eis que suas orquídeas começaram pois a murchar. Privadas do sol, da brisa e do mundo além da estufa. E o senhor orquidófilo revoltou-se com suas plantas mortas. Decidiu que nunca mais teria outra orquídea. Eis que o senhor orquidófilo deixou de ser o senhor orquidófilo. Abandonou as orquídeas e encheu a estufa de pés de maconha. Hoje quem morre de ciúmes dele é o Bala, seu companheiro de cela.
Pois então chegou um dia, que o nosso senhor orquidófilo meteu-se novamente na mata, para buscar sua planta premiada para mais um concurso. Foi quando a viu, em meio aos tantos galhos, despetalada. Algum animal havia comida sua tão preciosa flor. Só lhe restara um pedacinho do caule cercado de galhos.
Revoltado, o senhor orquidófilo decidiu-se a nunca mais cometer o mesmo erro. Construiu uma estufa com toda a segurança, ao lado de casa. Nunca mais criaria suas plantas livres. Lá trancafiou suas orquídeas e ficou a vigiá-las dia e noite. Não contente, não queria que ninguém as visse, não fosse nas exposições. Cobriu toda a estufa com lona preta para que sua nova campeã crescesse longe da vista dos curiosos.
Eis que suas orquídeas começaram pois a murchar. Privadas do sol, da brisa e do mundo além da estufa. E o senhor orquidófilo revoltou-se com suas plantas mortas. Decidiu que nunca mais teria outra orquídea. Eis que o senhor orquidófilo deixou de ser o senhor orquidófilo. Abandonou as orquídeas e encheu a estufa de pés de maconha. Hoje quem morre de ciúmes dele é o Bala, seu companheiro de cela.
O terceiro elemento
- Não, Valdir. Está fora de cogitação.
- Ah, Julinha. Está tudo tão calmo e monótono, que nós ficaríamos bem mais empolgados depois de uma experiência dessas.
- E porque uma mulher?
- Convenhamos que é bem mais aceitável do que dois cuecas, né?
- Mas e se você se apaixonar por ela? Se gostar mais dela do que de mim?
- Meu amor, tesão e amor são coisas diferentes, fica tranqüila que você vai ser sempre meu amorzinho.
- Pois bem. Me dá um tempo pra pensar a respeito.
- Valdir?
- Oi.
- Hoje a noite teremos uma festinha aqui em casa.
- Como assim? Eu tenho futebol e você está cansada de saber disso. Pode ir cancel...
- Eu, você e a Paulinha somos os convidados.
- Já posso ver?
- ...
- Júlia, Paulinha?
- Calma, estamos nos aquecendo, baby. Logo sua mulher tira sua venda.
Risos embriagados mostravam que as duas se divertiam e Valdir podia sentir o calor dos movimentos da mulher e de sua melhor amiga. Ouvia gemidos contidos. Sabia que a amiga de Júlia gostava daquelas experiências.
- Ei, essa brincadeira não tem graça, não.
- Ai, Valdir, não foi você quem insistiu tanto?
- Mas a idéia era todos nos divertirmos, né?
- Mas eu estou me divertindo, e você Júlia?
- Não sei como eu nunca tinha aceito isso antes.
Valdir começou a ficar irritado. Os braços presos e a venda nos olhos, que eram indumentárias da brincadeira, o impediam de dar fim a aquela agonia. Ouvia as gargalhadas da mulher e suas ordens para que a amiga chegasse mais perto do seu prazer. Não lembrava a última vez que tinha reagido daquela forma a ele.
- Cansei. Ou vocês tiram a venda dos meus olhos ou a brincadeira acabou.
Elas não ouviam nada. Estavam em transe e o som alto com as músicas que elas escolheram e que pouco o agradavam pareciam abafar sua voz. Forçou os lenços de tecido que prendiam seus braços. Quando conseguiu rasgar o tecido, imediatamente tirou a venda.
Imóvel, olhou para as amigas que gargalhavam e trocavam olhares maliciosos. Não conseguiu sentir nenhum tipo de excitação com aquela cena. Paula conseguia provocar em Júlia reações que até então só ele tivera conseguido. Desligou o som, encarou a mulher. Saiu do quarto.
Nunca mais arriscariam que uma terceira pessoa entrasse no quarto deles.
- Ah, Julinha. Está tudo tão calmo e monótono, que nós ficaríamos bem mais empolgados depois de uma experiência dessas.
- E porque uma mulher?
- Convenhamos que é bem mais aceitável do que dois cuecas, né?
- Mas e se você se apaixonar por ela? Se gostar mais dela do que de mim?
- Meu amor, tesão e amor são coisas diferentes, fica tranqüila que você vai ser sempre meu amorzinho.
- Pois bem. Me dá um tempo pra pensar a respeito.
- Valdir?
- Oi.
- Hoje a noite teremos uma festinha aqui em casa.
- Como assim? Eu tenho futebol e você está cansada de saber disso. Pode ir cancel...
- Eu, você e a Paulinha somos os convidados.
- Já posso ver?
- ...
- Júlia, Paulinha?
- Calma, estamos nos aquecendo, baby. Logo sua mulher tira sua venda.
Risos embriagados mostravam que as duas se divertiam e Valdir podia sentir o calor dos movimentos da mulher e de sua melhor amiga. Ouvia gemidos contidos. Sabia que a amiga de Júlia gostava daquelas experiências.
- Ei, essa brincadeira não tem graça, não.
- Ai, Valdir, não foi você quem insistiu tanto?
- Mas a idéia era todos nos divertirmos, né?
- Mas eu estou me divertindo, e você Júlia?
- Não sei como eu nunca tinha aceito isso antes.
Valdir começou a ficar irritado. Os braços presos e a venda nos olhos, que eram indumentárias da brincadeira, o impediam de dar fim a aquela agonia. Ouvia as gargalhadas da mulher e suas ordens para que a amiga chegasse mais perto do seu prazer. Não lembrava a última vez que tinha reagido daquela forma a ele.
- Cansei. Ou vocês tiram a venda dos meus olhos ou a brincadeira acabou.
Elas não ouviam nada. Estavam em transe e o som alto com as músicas que elas escolheram e que pouco o agradavam pareciam abafar sua voz. Forçou os lenços de tecido que prendiam seus braços. Quando conseguiu rasgar o tecido, imediatamente tirou a venda.
Imóvel, olhou para as amigas que gargalhavam e trocavam olhares maliciosos. Não conseguiu sentir nenhum tipo de excitação com aquela cena. Paula conseguia provocar em Júlia reações que até então só ele tivera conseguido. Desligou o som, encarou a mulher. Saiu do quarto.
Nunca mais arriscariam que uma terceira pessoa entrasse no quarto deles.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Nussknacker
05/09/08
Gosta da música, querida?
Venha, dance comigo. Não se acanhe.
Isso. Muito bem. Junte seu corpo ao meu, acompanhe os meus passos.
Você está linda ao luar. Como em todas as noites.
Ah, não lhe fascina a plástica da dança, a materialização da música?.. Tão belo quando o corpo se une aos violinos como um único ser, fluido, navegando em ondas invisíveis... Você não está tão fluida hoje, amor. Mas tudo bem, eu perdôo.
Tchaikovsky, adoro. Particularmente esta. Último movimento da suíte do Quebra-Nozes. Blumenwalzer, sabe o que significa? Valsa das Flores...
Falando em flores, gostou do buquê?
Sei que gostou, não precisa responder.
Rosas... Tão macias, tão cheirosas, mas ao mesmo tempo tão traiçoeiras. Quem sem cautela contempla sua beleza, acaba com os dedos espetados em seus acúleos. Rosas vermelhas, tão belas quanto você, querida...
E o vinho?
Delicioso, não?
Não é todo dia que se degusta um Romanée Conti legítimo, direto da Cotê de Nuits. Adoro o sabor das pinot noir...
Sim, muito caro. Mas não poupei despesas. Uma noite especial como esta merece tudo do bom e do melhor.
Claro que o entorpecente atrapalha um pouco o gosto.
Mas há gosto para tudo, não, amor?
Para tudo mesmo...
Sempre me perguntei o que você via nele. Que criatura grosseira e insossa...
Amigos, não é? Claro, querida. Mas amigos não passam tanto tempo um com o outro, passam? Sim, passam, claro. Parece que sobrava muito trabalho para ser feito fora do horário do escritório, não?
Para ser feito em casa.
Na casa dele.
Só vocês dois.
Não, tudo bem, querida, eu entendo. Entendo mesmo. Assim como você deve entender que eu jamais suportaria perdê-la, sob hipótese alguma. Eu também não poderia viver sem você. Eu não suportaria vê-la com outro.
Preferiria não vê-la com ninguém.
Você sabe o quanto eu te amo, não? Mais do que a qualquer coisa neste mundo.
Mas até do que a estar neste mundo...
Deixe-me pegar meu copo só um instante. Ah, que sensação exótica a do vinho com o cianeto! Pena que nunca alguém pôde escrever sobre tal combinação...
Então baile comigo, meu anjo. Beije-me uma última vez. Não me importo com seus lábios frios e o outro vinho que escorre pelo seu pescoço.
Deixe-me tê-la em meus braços, sentir a doce carne na qual encontrei minha perdição.
Vamos ter nossa última dança à luz da lua, que lá do alto nos espreita por entre as nuvens.
Pois esta noite encerraremos nossa valsa no Inferno...
Gosta da música, querida?
Venha, dance comigo. Não se acanhe.
Isso. Muito bem. Junte seu corpo ao meu, acompanhe os meus passos.
Você está linda ao luar. Como em todas as noites.
Ah, não lhe fascina a plástica da dança, a materialização da música?.. Tão belo quando o corpo se une aos violinos como um único ser, fluido, navegando em ondas invisíveis... Você não está tão fluida hoje, amor. Mas tudo bem, eu perdôo.
Tchaikovsky, adoro. Particularmente esta. Último movimento da suíte do Quebra-Nozes. Blumenwalzer, sabe o que significa? Valsa das Flores...
Falando em flores, gostou do buquê?
Sei que gostou, não precisa responder.
Rosas... Tão macias, tão cheirosas, mas ao mesmo tempo tão traiçoeiras. Quem sem cautela contempla sua beleza, acaba com os dedos espetados em seus acúleos. Rosas vermelhas, tão belas quanto você, querida...
E o vinho?
Delicioso, não?
Não é todo dia que se degusta um Romanée Conti legítimo, direto da Cotê de Nuits. Adoro o sabor das pinot noir...
Sim, muito caro. Mas não poupei despesas. Uma noite especial como esta merece tudo do bom e do melhor.
Claro que o entorpecente atrapalha um pouco o gosto.
Mas há gosto para tudo, não, amor?
Para tudo mesmo...
Sempre me perguntei o que você via nele. Que criatura grosseira e insossa...
Amigos, não é? Claro, querida. Mas amigos não passam tanto tempo um com o outro, passam? Sim, passam, claro. Parece que sobrava muito trabalho para ser feito fora do horário do escritório, não?
Para ser feito em casa.
Na casa dele.
Só vocês dois.
Não, tudo bem, querida, eu entendo. Entendo mesmo. Assim como você deve entender que eu jamais suportaria perdê-la, sob hipótese alguma. Eu também não poderia viver sem você. Eu não suportaria vê-la com outro.
Preferiria não vê-la com ninguém.
Você sabe o quanto eu te amo, não? Mais do que a qualquer coisa neste mundo.
Mas até do que a estar neste mundo...
Deixe-me pegar meu copo só um instante. Ah, que sensação exótica a do vinho com o cianeto! Pena que nunca alguém pôde escrever sobre tal combinação...
Então baile comigo, meu anjo. Beije-me uma última vez. Não me importo com seus lábios frios e o outro vinho que escorre pelo seu pescoço.
Deixe-me tê-la em meus braços, sentir a doce carne na qual encontrei minha perdição.
Vamos ter nossa última dança à luz da lua, que lá do alto nos espreita por entre as nuvens.
Pois esta noite encerraremos nossa valsa no Inferno...
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
Tema da Rodada
Novo tema saído do forno:
"Ciúmes"
Os participantes têm até o dia 6 de setembro (sábado) para postar seus textos.
"Ciúmes"
Os participantes têm até o dia 6 de setembro (sábado) para postar seus textos.
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