quinta-feira, 26 de março de 2009

A Ilusão

- Sabe, às vezes eu fico pensando se poderia ter sido diferente...

- Todos os tolos pensam nisso. É o refúgio dos fracos.

“Lá vamos nós de novo...”

- Você acha tão ruim assim refletir sobre o que passou, quem sabe como forma de aprendizado para situações futuras?

- Quando não haverá situações futuras, sim. Há coisas que não podem ser modificadas. Quando você descobre pela primeira vez que seus pais trepam, não consegue voltar a acreditar na cegonha.

- Isso é verdade.

Caminhei pela velha catedral abandonada, observando suas minúcias empoeiradas. Era perceptível que ela nunca fora lapidada como deveria. Havia remendos provisórios por toda parte, que nunca se tornaram permanentes. Uma pretensiosa obra abortada em seu início.

- Não é de se admirar que tantas pessoas se neguem a abrir os olhos. Deve ser reconfortante sentir algum sentido maior em sua vida.

- Além de sobreviver e reproduzir? Sim, não é de se admirar que existam tantos idiotas no mundo.

- Você fala deles como se escolhessem voluntariamente a Ilusão. Muitas vezes é apenas uma questão de ignorância.

- Correto. E os ignorantes são idiotas.

Eu sorri. Era um dos raros momentos em que não estávamos em franco conflito, mas mesmo assim era impossível falarmos a mesma língua. Decidi experimentar uma abordagem mais incisiva.

- Mais idiotas me parecem aqueles que se conformam em ver um universo complexo de modo simplista.

- Olhe quem fala. Não tente entrar num duelo de ironia, você não terá chance comigo.

- Eu sei.

Parei diante do altar, vendo o corpo ensangüentado pregado à cruz. Redenção pela dor, alegria e tristeza em uma morte só. Não era só em desertos mortos e igrejas velhas que a Contradição praticava seu jogo sujo.

- Mas não é difícil ver que essas situações possuem muito mais variáveis do que aparentam.

- Sim, sim. Foi a educação familiar, foi a falta de conhecimento, foi uma necessidade por um objetivo cretino em um universo obtuso, etc., etc. Há uma imensidão de desculpas esfarrapadas para justificar a preguiça em pensar.

- Não posso discordar inteiramente. É fácil encontrar nas próprias Escrituras falhas internas que justifiquem a dúvida.

Ele tocou a cruz, que se desintegrou a pó, juntamente com o corpo.

- Por favor, não vamos reduzir a questão a um segmento medíocre de um problema maior. Já passamos dessa fase.

- Mostre-me o problema, então.

- Há!

As paredes da velha catedral se afastaram em uma velocidade alucinante. De repente, as suas abóbadas rivalizavam com o céu. Por todos os lados, ergueram-se símbolos e altares, exibindo desde símbolos abstratos a monstruosidades deformadas. O Cristo morto retornou, ladeado pelo hexagrama e pelo crescente. Aos seus pés, o pequeno Baphomet de cinco pontas estendia seus chifres. Ganesha, Shiva e Visnu apareciam liderando um panteão de enormes proporções. A eles se misturavam deuses desconhecidos, divindades sem nome e titãs de eras passadas. De Zeus a Marte, de Júpiter a Ares, as sedutoras Afrodite, Juno e Astarte lado a lado. Nenhuma mente poderia apreender, mesmo em uma longa observação, toda aquela diversidade de Senhores e Senhoras, sombras esquecidas ou luzes acesas nos corredores do tempo.

E então todas desapareceram em um piscar de olhos. A velha catedral voltou à sua pequenez opressiva, vazia em seu interior. No centro, uma solitária estátua humana, desprovida de qualquer característica chamativa, um altar insosso que a nenhum grande líder inspiraria.

- E este é o rosto do problema.

- O humano?

- O humano. Que outra criatura teria o poder de pensar tanto a ponto de se esquecer da vida real?

- O real varia para cada humano.

- Não me venha com essa, sei que nem você acredita nisso. O real é apenas um, a percepção do real é que varia.

- Não acaba se tornando a mesma coisa, se ninguém jamais terá como se despir de suas percepções particulares?

- Claro que não! Esse é outro refúgio de imbecilidade, achar que sua percepção particular tem alguma relevância para o universo real. Achar que tudo depende de sua própria mente é um meio preguiçoso de se esconder das coisas como elas são. O que nos leva a uma das raízes do problema...

- Fé?

- Ou, como eu prefiro dizer, o ato mentecapto de acreditar nas coisas sem se perguntar o porquê.

- Muitos dirão que a fé traz muitos benefícios para a manutenção da sanidade humana.

- Muitos já disseram que a terra era achatada. Qualquer forma de vida possui mecanismos intrínsecos que zelam pela sua continuidade. As pessoas continuarão sobrevivendo e reproduzindo, quer falem com as paredes ou não. Nada justifica a Ilusão, a não ser a ignorância.

- E os ignorantes são idiotas.

Ele sorriu.

- Vejam só, o papagaio aprendeu a repetir.

Alguma coisa nas suas últimas falas fez ressoar algum acorde no fundo da minha mente. Nada relacionado ao seu último sarcasmo. Mas uma idéia começava a tomar forma. No humano jaziam todas as contradições. Os outros seres, com ou sem mente, seguiam seus rumos de um modo relativamente linear. Pode-se dizer que havia um sentido muito claro e definido em sua vida. Por que não com o humano? Por que a busca pelo que não se pode obter? Quanto mais simples a mente, mais previsível a ação. Quanto mais derivada, mais caótico o comportamento. Onde jazia o cerne da contradição?

Ele, é claro, tomava meu silêncio prolongado como o fim de mais um embate. Se dirigiu para a saída da catedral, onde o portal se abria para a desolação.

- E se... – comecei a falar.

Ele parou.

- E se a fé for um destes... mecanismos intrínsecos de sobrevivência?.. A evolução deu aos humanos seus cérebros enormes e sua capacidade de abstração, abrindo-lhes os olhos para o mundo da imaginação...

- E eles começaram a imaginar toda sorte de tolices. Os desenhos animados japoneses são a prova disso.

- Esse é o ponto... Eles começaram a imaginar toda sorte de tolices e a procurar significados onde estes não existem. Começaram a caçar fantasmas, uma maldição originada de sua própria bênção.

- Vejam só, ele está aprendendo. Eu poderia ter dito essa frase.

- Porém, para conciliar as vantagens da abstração com seus pesares, desenvolveu-se um mecanismo que permita aos humanos lidar com sua abstração, mesmo quando eles prezam por utilizar um outro mecanismo mais adequado, a racionalidade para entender o mundo. Isso faz com que a fé seja uma necessidade humana, mesmo que desprovida de sentido lógico.

- Então a fé é um produto evolutivo que existe para que os miseráveis humanos não pirem todos diante da loucura de universo sem sentido?

- Bem, em outros termos... sim.

Ele parou por um instante. Senti uma pequena ponta de insegurança no modo como ele me olhava.

Mas logo respondeu com sua costumeira expressão de desprezo.

- Ora, que gênio! Acabou de descobrir que a hipocrisia é um atributo evolutivo do humano. Agora crie um grupo de bebês em laboratório para testar sua teoria. Tudo é possível neste mundo, mas só algumas coisas acontecem. Se essa é sua grande idéia, até mais ver.

Ele saiu sem mais palavras. Aquilo só podia significar uma coisa: eu tinha obtido algum tipo de triunfo. Não era uma grande idéia, nem fazia muito sentido, é verdade. Mas eu o havia feito pensar. Não era todo dia que um embate terminava daquele modo. Quem sabe um dia os conflitos poderiam terminar... será?

Fiquei mais um tempo na catedral, observando aquela ruína de tempos passados, lembrando de uma breve e distante época em que ela era revestida de significado. Será que houvera tal período, ou os primeiros tijolos já haviam sido lançados sob um manto de descrença? Bem, como ele havia dito, tudo é possível... Sem mais o que ver ou pensar ali dentro, atravessei o portal e segui seus passos em direção ao deserto morto.

Um comentário:

Fábio Ricardo disse...

- Então a fé é um produto evolutivo que existe para que os miseráveis humanos não pirem todos diante da loucura de universo sem sentido?


arrepio, aqui.