segunda-feira, 7 de abril de 2008

Dona Lúcia

Fábio Ricardo
06/04/08


Caminhava pela rua olhando para os lados, com passos descompromissados. Parou por um instante. Algo chamou sua atenção no canteiro, mas não era nada além de uma bela flor. Levantou os olhos das plantas, olhou ao redor e novamente se pôs a caminhar. Antes de completar o primeiro passo, hesitou.

Para onde ia? Não conseguia se lembrar. Saiu de casa para fazer algo em específico, disso tinha certeza. Mas não conseguia se lembrar exatamente o que era. Era uma quinta-feira, dia de feira livre, mas ela estava sem a velha sacola, companheira de compras. Tinha que ser alguma outra coisa.

Lembrou-se do aniversário da filha caçula. Ela faria 12 anos no final de semana. Não teve dúvidas e caminhou até a loja de brinquedos. Chegando lá, cumprimentou um vizinho, que procurava algo na seção de bichos de pelúcia, e foi diretamente para a seção de bonecas. Amanda, a caçula, era fanática por bonecas Barbie.

Demorou-se na decisão e escolheu a mais bela de todas. Conferiu o dinheiro na carteira e caminhou até o caixa.

Quando a atendente pegou a caixa com a boneca vestida de gala, uma expressão de tristeza se tornou óbvia em seu rosto.
- Desculpa, Dona Lúcia, mas eu não posso vender isso pra senhora.
- Ué, e por que não? O dinheiro está todo aqui. – disse colocando as notas no balcão.
- É o presente pra Amanda, né? – questionou a balconista.
- É sim, você acha que ela não vai gostar?

O vizinho que escolhia os ursinhos de pelúcia ouviu a conversa, se aproximou e colocou a mão sobre o ombro de Lúcia, cabisbaixo.
- Dona Lúcia, – se antecipou a balconista – a Amanda já tem 36 anos, Dona Lúcia. Já é mulher feita, tem marido.

A confusão no rosto de Lúcia a entregava. Mesmo assim, ela apenas sorria simpática, enquanto o vizinho a ajudava a caminhar para fora da loja. Lúcia se desculpou pelo engano, “onde estou com a cabeça”, repetiu algumas vezes.

A tristeza tomou a atendente e o vizinho, que se entreolharam. Era a terceira vez esse mês, ela explicou. Lúcia caminhou pela praça sorrindo, um pouco envergonhada. Sua filha e o marido já a procuravam. Encontraram Lúcia na praça, mãos vazias, a perguntar aos transeuntes a direção de sua casa.

4 comentários:

Marina Melz disse...

me lembrou 'como se fosse a primeira vez', mas eu curti. sem perceber, temos a mesma atitude da Dona Lúcia em relação a muitas coisas. pode não ser a mesma doença, mas certamente é a mesma sensação.

Anônimo disse...

Ficou muito bom.
Me lembrou famílias que eu conheço que tem pessoas com doenças relacionadas a amnésia.
Adorei mesmo.

Rodrigo Oliveira disse...

Curti. Já no começo da cena do caixa a ficha caindo foi twist que precisava. tocante. Só tiraria a cena da filha e o marido encontrando a D. Lúcia.

Fátima Venutti disse...

A magia já estava descoberta no princípio. Mas gostei da sutileza das cenas.
O "menino" está se revelando a cada desafio. E quem ganha é o leitor, óbvio...
Quem nunca desejou "parar no tempo" e curtir um pouquinho mais as horas (dias, meses) que não voltam mais...?

Fátima Venutti