sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Suprema hipocrisia

Este é o texto que eu jamais escreveria. Porque, ao chegar o momento final, não me importaria coisa alguma deixar algo para o que viesse depois. Não passaria de um agrado momentâneo enquanto a mente ainda funcionasse. À posterioridade, que se dane.

O pensamento sobrepuja os desejos. Muito se fala de como a racionalidade pode ser devastada pela emoção. Mas pouco sobre o caminho inverso. O raciocínio pode mudar as emoções. A objetividade pode sobrepujar a subjetividade. A razão pode matar a emoção. Como se houvesse alguma realidade nesse dualismo artificial. Pensamentos podem sobrepujar outros pensamentos, e pronto. Sejam pensamentos sobre a vida, o universo e tudo mais, ou pensamentos de te amo e te odeio.

Faz muito tempo que uma trilha alternativa foi tomada. Não foi na filosofia tradicional, não na leitura de tomos complicados, ou no diálogo com pares em um nível superior. O estranhamento nasceu em algum ponto além-lembrança. Desde a mais remota evidência da arqueologia pessoal, havia alguém que voluntariamente se afastava. Que se saturava de companhia, fosse inconveniente ou dos mais queridos amigos e parentes. Aquele pequeno ser que, na hora do sentar à mesa nas festas, pegava seu prato e ia sentar em algum canto afastado. Não por exclusão. Não por antipatia. Apenas por vontade.

A dúvida sempre esteve ali. Afinal, aquele que a tudo questiona, não deixará de questionar a si próprio? Evasão? Fuga? Medo? Ou diferença? Em um sistema complexo como uma mente humana, nunca há desvinculamento de conceitos. Há uma fonte, mas ela se perde em meio às suas consequências. O produto final é a diferença. O estranhamento. A misantropia egoísta e elitista que gera o senso de desajuste. Esnobe, em aparência. "O intuitivo sensitivo pensador julgador irradia uma aura de segurança que pode ser tomada como simples arrogância pelos menos decisivos, mas tem origem em sistemas de conhecimento especializado que começar a ser construídos cedo". Psicologia jungiana. Citar um nome conhecido sempre reveste com uma aura de autoridade a declaração de conhecimentos pré-adquiridos.

Para o observador, não há sentido em um monólogo intrínseco se não são feitas relações com o mundo exterior. Uma pessoa só interessa a outra pessoa quando serve de reflexo a si mesma. Hei de me prender a esta limitação em meu epitáfio imaginário, pois minha mente já há tempos não consegue se contentar com a idiotice travestida de beleza. Ela procura lógica onde lógica não há, na fantasia, na literatura, nos devaneios. Por que o personagem fez a escolha? Por que nasceu o mal de um Criador sem maldade? Por que aquele verso está ali? Falta de sentido é estupidez. Não importa o quão floreada esteja.

Como uma vida consegue lidar com todas suas hipocrisias intrínsecas? Como pode conviver consigo mesma, sendo incoerente em cada instante? Só sendo cego de pensamento, uma cegueira que nunca é de nascença, antes mais um fechar de olhos ou uma cabeça enfiada no buraco. Abençoados ou amaldiçoados? A ignorância pe uma benção? Nunca para aquele que já a deixou para trás. Que ainda se satisfará com piscares, mas sempre se forçará a abrir os olhos e fitar a luz. Mesmo que o Sol queime suas retinas.

O diferente aprendeu a mascarar seu deslocamento. Consegue muito bem sorrir e concordar. Apenas o mais perceptivo verá o ocasional olhar nublado, ou o suave e desprezante arqueamento de lábios. Todo deslocado se sente superior? No fundo, ele sentirá algo parecido. Mas sabe que superioridade não existe, pois melhor e pior fazem parte da cegueira. Secam, morrem e definham sob a luz. Diferença não é superioridade. Há compensações. Negativas e positivas. É possível ser profundamente pensador e profundamente sociável? A máscara pensa que sim. O demônio interior sabe que não.

A diferença leva ao isolamento. Ou o isolamento leva à diferença? Pergunta capciosa. Há alguma origem. É possível isolar uma variável? Felizes aqueles que possuem registros independentes das lembranças, sempre distorcidas pelo tempo. Havia a diferença. Nasce o isolamento. E inicia-se a retroalimentação.

De nada a lugar nenhum a vida leva, e um momento de despedida só pode evocar o fantasma do "e se?". Admirável como a mais tola de todas as perguntas, e continuará sendo enquanto não for possível retorcer o tempo, é também a mais evocada. Há um tênue limite entre a utilidade como aprendizado e o masoquismo pessoal. Definitivamente, não é às portas do inferno que se ficará no primeiro lado da linha.

Havia algum ponto-chave na estrada? Sempre será uma teia de fatos e relações. Mas há peças que derrubam muitas outras, e peças que caem praticamente sozinhas. Ter ido para um lugar em vez de outro? Ter escolhido a felicidade imediata e mediana, ou a probabilidade de uma alegria maior? Qual das faces pelo caminho era a chave? Aquela que se tornou a cicatriz, incurável, obsessiva, travestida ao máximo no sorriso de amizade? Ou aquela que aceitaria e desejaria, que correria atrás daquele que sonha com outros Édens?

Fez-se em poucos parágrafos um tortuoso influxo de pensamentos. Será que aqueles que acreditam em alguma continuidade relêem e elaboram seus epitáfios? Aos opostos, não basta a despedida ser a suprema hipocrisia. Quando mais olhar para os trastes que foram deixados para trás. Como na morte, que assim seja o último adeus, puro e intragável, pois para quem vai já não importa o pensamento de quem fica. Que a redenção não venha na forma de recompensa, nem de descanso. Só como um vazio desprovido de cor, forma e significado. Adeus.

5 comentários:

Félix disse...

Eu efetivamente não reli isso, e não vou reler tão cedo. Foi uma experiência pessoal de escrever como se fosse uma verdadeira despedida, em que o narrador não se importe com nada que venha depois, nem com o que deixou para trás. Uma última brincadeira no Duelo, que tantas alegrias me trouxe (ei, ao menos não foi um CABUM!!!!).

Fábio Ricardo disse...

A maior qualidade do texto eu julgo ser justamente a discuão entre superioridade e diferença. Uma coisa leva a outra, obviamente. Ao nos vermos diferentes, nos sentimos superiores. E Não vejo nada de errado nisso. Não sou hipócritoa de não me permitir me pensar superior, sendo que alguém o há de ser.
Acho a discussão bastante bacana.

Quanto à distanciação por causa da superioridade, acho que é uma escolha, não uma obrigação. Prefiro, muitas vezes, ser superior mas próximo, ao invés de me afastar. Pois com minha superioridade, posso me utilizar da presença dos inferiores para ganho próprio. Não o seria uma boa escolha?

Rodrigo Oliveira disse...

O começo ficou show de bola. a primeira frase/parágrafo captura o leitor. Não acho que tenha a mesma força em todo o texto, mas tem outras passagens (ou ideias) interessantes — como o do "e se", o da superioridade distanciar (à la Dr. Manhattan) e as viagens a respeito da contradição da despedida. Talvez o arroubo escolhido como estética é que tenha pesado um pouco no lado plástico do texto...

Marina Melz disse...

Pauleira do começo ao fim.

Félix disse...

Eu reli agora e até quem nem achei tantas tosqueiras e erros de lógica. Se fosse um epitáfio "literário", possivelmente o segundo parágrafo teria ido mais para diante, e haveria uma conectividade maior entre idéias.

Fábio, quanto à superioridade, o texto mostra que, embora seja uma primeira impressão do diferente, não resiste à própria análise que ele faz de tudo, aplicada a si mesmo. São caminhos diferenciados dentro de um labirinto de escolhas possíveis na vida (e o maior engano é achar que tudo o que almejamos é mutuamente compatível). Antes seria o pensamento de "usar o que se tem para se virar do melhor jeito possível". Seja isso cérebro, músculos, dinheiro ou rostinho bonito...