Ok, vocês vão me odiar, mas a idéia cresceu mais que o esperado... Mil perdões e prometo na próxima fazer algo menor...
O Santuário
05/11/07
Com o sol ainda por se levantar, Flávio Galério acordou de um sono inquieto. Sem demora, levantou-se e caminhou para certa distância do acampamento, onde seus guardas e servos ainda dormiam. Da borda de um profundo penhasco, pôde observar a vastidão montanhosa que se estendia pela Anatólia. Tão longe estava de sua casa, na reluzente Roma de tantas glórias... Mas agora os tempos eram outros. Há gerações os romanos não podiam gozar de um longo período de paz e prosperidade como os de outrora. Se um fiapo de esperança surgia com a ascensão de homens poderosos, era apenas para se romper com sua morte, lançando novamente a vastidão imperial em desordem e revolta. Eram tempos de turbulência, tanto material como espiritual. Pois a inconstância das convenções e as rápidas mudanças deixavam as almas irriquietas, titubeantes quanto à firmeza de suas convicções. Almas que por vezes se lançavam para o mundo em busca de respostas, como a de Galério.
Não fazia muito tempo que deixara a capital do Leste, a ancestral Bizâncio, rebatizada Constantinopla em homenagem ao seu reformador. Mais de século já se passara desde que o governo do império fora dividido, e povos bárbaros não cessavam de penetrar em seu território, tornando longas viagens extremamente perigosas. Mas o romano não se intimidava diante dos perigos. Cruzara o Bósforo em um barco e agora transitava por uma terra que fora de muitos reis ao longo dos séculos. Seguia uma estrada tão antiga que suas pedras veriam Roma apenas como uma criança. Lendas diziam que levava à capital de um império de tempos primevos, que guerreava com povos grandiosos muito antes da época em que Tróia fora devastada. Galério seguia esse tortuoso caminho como resultado de suas inquietações e pesquisas. Inquietações ante perguntas capitais sobre o homem e o universo. E pesquisas que indicavam ser aquela a direção de suas respostas.
Voltou para junto de seus seis companheiros, que levantavam e arrumavam as coisas para a partida. Com o sol raiando, as duas pequenas carruagens colocaram-se em movimento. Não podiam estar muito longe do lugar procurado, se este de fato existisse. E bastou apenas mais um dia e meio para que avistassem o pitoresco templo escavado na rocha, cuja visão pareceu aos olhos de Galério mais espetacular que o grandioso Teatro de Jogos de Roma. Se suas pesquisas estivessem certas, aquele era o remanescente de uma antiga ordem de sábios gregos, cujo conhecimento único e enigmático de certos assuntos não encontrava paralelo nem mesmo nos tempos áureos de Atenas.
Galério ordenou que os outros permanecessem do lado de fora, dirigindo-se para o templo apenas acompanhado dos dois servos para auxiliá-lo no transporte de um pesado baú. Deteve-se por um instante à porta da construção. Nada mais era que uma fronte grega esculpida na rocha, ligando o exterior a aposentos interioranos escavados a desconhecidas profundidades. Com seu conhecimento de grego arcaico, conseguiu decifrar parte das gastas inscrições decorativas, mas o estranho e misterioso nome do deus para o qual o santuário era consagrado lhe era inteiramente desconhecido. Nada indicava que o lugar era habitado, mas as duas pesadas portas de madeira ainda mantinham-se de pé. Galério anunciou sua chegada e, não obtendo resposta, bateu nas portas fechadas com força.
Um longo tempo se passou antes que ouvisse uma resposta do outro lado. A pergunta veio em um dialeto latino do leste, facilmente entendível para o erudito romano. Respondeu quem era e quais suas intenções, ao que a porta foi aberta por um surpreso jovem de aparência anatólia. Galério e os carregadores entraram no escuro corredor que se estendia diante deles.
Passando por alguns aposentos e salões, Galério notou a ausência de referências ao panteão grego de deuses. Na verdade, todo o interior parecia acentuadamente austero, com raras pinturas e esculturas. Passaram por poucos objetos e nenhuma pessoa, dando a impressão de um lugar que outrora fora mais habitado. Por fim foram apresentados a um homem de meia idade e fisionomia egípcia, que os olhou de um modo desconfiado quando o jovem fez seu relato. Com poucas palavras, o egípcio passou a conduzi-los em direção a um portal maior, por detrás de onde se abria um grande salão.
Ao aproximar-se da entrada, percebeu que o salão parecia uma mistura de biblioteca com dormitório. Ali sim havia alguma coisa, enfim: vasos para depósito de pergaminhos e suprimentos, além de alguns móveis de madeira e um amontoado de palha e peles num canto. No centro do aposento, uma mesa com algumas cadeiras. Ocupando uma delas, um ancião de aparência tão antiga quanto o pergaminho que lia. O egípcio trocou algumas frases em uma forma de grego arcaico sobre o qual Galério pouco mais pôde fazer além de identificar como tal. Em um tom neutro, o velho convidou-lhe a sentar. O egípcio saiu, assim como os servos, após depositarem o baú ao lado da mesa.
Galério fez a reverência formal que os antigos gregos faziam para os velhos e sábios, antes de tomar seu lugar e falar as primeiras palavras com o homem.
- Saudações, ó sábio das montanhas! Meu nome é Flávio Galério, cidadão de Roma. Viajei de muito longe em busca deste misterioso templo, cujas raras citações ainda existentes indicam como um lugar de profunda e exótica sabedoria.
O ancião respondeu num latim carregado de estranho sotaque, mas perfeitamente entendível para qualquer romano contemporâneo.
- Sou Antígono de Éfeso, o mais velho e líder dos poucos que habitam este local. Há muito ninguém percorre a estrada para Hattusa até chegar neste santuário, viajante. Nossa ordem é antiga, reduzida, e não passamos de uma lembrança nebulosa enterrada nos pergaminhos mais esquecidos das bibliotecas. Muito me admira que alguns ainda consigam unir pequenos cacos de informação e chegar até nós, pois, é claro, não és o primeiro que vejo bater à nossa porta durante minha vida. Entretanto, ninguém faz tal empresa por nada. Então me diga a que vens, e te direi se podemos ou queremos ajudar com nosso conhecimento.
- Procuro por uma resposta, sábio. Muitos poderiam fornecê-la, devido ao caráter da pergunta. Mas seriam respostas vazias e cegas. Procuro por uma resposta de verdade a uma dúvida fundamental, e acredito que só aqui obterei-as - respirou fundo e concluiu, em tom solene - Pois o que se diz nas obscuras referências à sua ordem é que vocês possuem o conhecimento mais profundo da natureza do deus. Ou dos deuses.
O ancião ergueu uma sobrancelha.
- Deuses? Diga-me que tipo de pergunta você tem sobre os deuses, pois assunto que desperta mais dúvidas nos mortais não há.
- Exato, sábio! E minha dúvida é a mais primeva e basal de todas: quem é o verdadeiro, ou os verdadeiros deuses?
Abriu seu baú, revelando uma profusão de pergaminhos de idades variadas, nos quais remexia enquanto falava.
- Desde nossos mais remotos registros, nós, romanos, adorávamos a um panteão divino que compartilhávamos com os gregos. Tal universalidade de culto entre nossas verdadeiras civilizações bastava para mostrar sua veracidade. Tivemos templos dedicados a cada deus, crônicas tecidas em torno de suas peripécias, rituais para que nos olhassem com bons olhos, fosse na colheita, no amor ou na guerra. Por séculos assim foi, de Rômulo a Dioclesiano, passando por reis, cônsules, césares e augustos.
- Porém, uma nova seita nasce, cresce, e um imperador, conhecido por sua força e sabedoria em outros campos, eleva-a a crença única e oficial de nosso império. De um momento para o outro, Roma renega seus deuses e toma para si um deus único, absoluto, que a tudo criou e que tudo governa. Os antigos templos são desmantelados, os altares são removidos dos salões imperiais e o povo gradualmente muda suas crenças, do mesmo modo que mudaria os calçados.
O ancião apenas escutava em silêncio, com olhos frios.
- E há ainda mais, sábio! Na nova religião, mesmo tendo apenas um deus, nasce a discórdia quanto à sua natureza. Alguns chegam a falar que o um na verdade são três, e outros respondem que na verdade os três são um! Assim se passam as décadas, nas quais os sacerdotes se encontram, discutem, concordam e discordam. E agora, sábio, o que ocorre?
Galério retirou uma volumosa pilha de pergaminhos do baú, despejando-os na mesa.
- Os sacerdotes se reúnem e escolhem quais de suas escrituras são verdadeiras, e quais não são. Não é mais qualquer texto que diz a verdade sobre o deus, tampouco os escritos de todos que foram discípulos do seu enviado na terra. São estes, e apenas estes livros, que agora os sacerdotes consideram como verdadeiros. Apenas algumas dezenas, dentre centenas. Não é o que foi escrito que é divino, mas o que foi escolhido!
Parou por um instante, no qual Antígono apenas olhou de soslaio para os documentos sobre a mesa. Então, o romano prosseguiu.
- Me responda, sábio, você que é versado na sabedoria divina: se o que já foi sagrado agora é herético, e se o que já foi verdadeiro pode se tornar falso, como podem os sacerdotes de agora ter tanta certeza de que estes livros que agora têm em mãos não serão renegados no futuro? E como podem ter certeza de que o deus que povoa estes escritos é o verdadeiro? Diga-me, sábio, se tens estas respostas: quem é o verdadeiro deus?
Um longo momento estendeu-se enquanto a pergunta de Galério, tão pesada quanto a própria montanha que os cobria, reverberava pelas galerias de pedra. Não era difícil imaginar que, fossem quais fossem os deuses do mundo, poderiam vir em pessoa responder. Mas a voz grave que soou na sala vinha não de um ente divino, mas do próprio Antígono.
- Muito estudastes sobre aquilo que os homens preferem não pensar, romano. Por conta disto, fazes as perguntas que poucos se atrevem a fazer. Perguntas que são a gênese e o cerne de nossa ordem, desde antes do meu povo sequer pisar nestas terras ancestrais. Por isso vens até nós, pois tens a mesma dúvida que o nosso fundador. E te digo que, em quase mil anos de indagações, nós obtivemos a resposta. E posso fornecê-la.
O coração de Galério acelerou-se. Suas extensas pesquisas e sua longa viagem haviam de, finalmente, ter chegado ao fim, nas palavras de Antígono.
Este se inclinou sobre a mesa, com a lamparina lançando sombras dançantes em sua face enrugada.
- E a resposta é: nenhum.
Silêncio. Durante vários segundos, Galério permaneceu de olhos vidrados, fitando o ancião, como se esperasse por mais alguma coisa. Por fim, piscou e balançou a cabeça, desnorteado.
- Nenhum?..
- Nenhum, viajante. Nenhum destes deuses dos quais me falaste são verdadeiros.
- Mas... então... onde estão os verdadeiros deuses?...
- Não percebes, viajante? A resposta que tenho é que nem estes, nem quaisquer outros, são os verdadeiros deuses, simplesmente por que não existem deuses. Não há nada neste mundo maior do que a substância do qual eu, você, estes pergaminhos, esta montanha, são feitos. As coisas são apenas do modo como elas são, segundo rumos e objetivos que, se existem, são inteiramente desvinculados das nossas impressões. Quando você olha para o oceano, para as florestas, para os céus, não vê nada além do oceano, das florestas, dos céus. Quando uma guerra explode ou uma paixão se consuma, nada mais ocorre além de uma guerra encarniçada ou uma paixão aventurosa.
- Mas, sábio... E por que então este conhecimento está restrito a estas cavernas?? Como podem todas aquelas pessoas lá fora ver fantasmas nos oceanos e florestas, enquanto vocês vêem árvores e águas??
- Os homens não estão preparados para tal conhecimento, romano. Precisam olhar para as coisas e sentir que há algum propósito em tudo. Não foram os deuses, em seus desejos e paixões mundanas ou sobre-humanas, que criaram os homens. Foram os homens, em sua tentativa de dar algum sentido humano ao que lhes cerca, que criaram os deuses. Talvez em algum momento no futuro, possam desprender-se de suas fantasias, assim como uma criança aprende que não existem monstros sob seu leito. Mas, até lá, seguirão louvando seus ídolos, sejam de pedra, ouro - apontou para os pergaminhos - ou papel.
Nada mais foi dito, enquanto Galério assimilava aquilo que o ancião lhe falara. Depois de alguns minutos, pegou seus pergaminhos e colocou de volta no baú. Sem trocar mais palavras, saiu lentamente da sala, enquanto seus servos se apressavam para pegar o baú. Caminhou para fora do templo e observou a entrada, agora compreendendo o que aquele nome dizia. Com o sol alto no céu, voltou a vista para os arredores, e se perguntou se o que via era realmente apenas o sol, o céu e as montanhas. Não era a resposta que ele esperava. Tampouco uma pelo qual ansiava. Sem saber se sentia-se aliviado, insatisfeito ou vazio, abandonou o Santuário de Atheos e iniciou a penosa jornada de volta a Roma.
* * *
NOTA HISTÓRICA: esta história se passa entre o primeiro Concílio de Cartago (397 d.C.) e o saque de Roma pelos bárbaros visigodos (410 d.C.). Nos Concílios de Cartago e Higona (393 d.C.) ocorreram as primeiras padronizações de livros sagrados da religião cristã; pode-se dizer que a Bíblia foi "criada" neles. A Anatólia corresponde à região da atual Turquia asiática. Hattusa foi a capital do império Hitita, que ocupou a região entre 2000 - 1200 a.C.
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2 comentários:
longo demais, tornou-se cansativo. A leitura na internet não favorece esse tipo de conto. mesmo assim - mesmo com muito coisa superflua, que poderia ser cortada para torná-lo mais curto - a história mostra uma certeza em suas palavras, que mais parece fazer parte de um livro d história. Fica com o meu voto.
pois é, sei que pra net ficou grande demais. tentei fazer uma "versão condensada", mas as coisas supérfluas são parte do "efeito histórico". os próximos serão menores, eu espero!
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