domingo, 27 de julho de 2008
Votação: Paranormalidade
Todos os leitores têm até o dia 30 de julho (quarta-feira) para votar em um dos 4 participantes.
Boa sorte!
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Uma sombra na neblina
20/11/02
Lembro-me bem de cada detalhe daquele dia, desde o momento em que acordei. Era uma bela manhã de primavera, o céu estava limpo, pássaros cantavam e uma leve brisa movia as árvores. Nada, nenhum presságio ou circunstância, poderia dizer que seria aquele o dia em que minha vida terrena perderia total e completamente o sentido e a alegria. Mas eu deveria ter me preparado: desde quando eu e Samantha nos isolamos naquelas distantes terras selvagens, sabíamos que nosso onírico mundo perfeito iria desabar com o tempo. Era impossível escapar daqueles opressores implacáveis que aniquilavam todos seus opositores, no frenesi louco do fanatismo religioso, classificando todas as outras fés de heréticas ou pagãs. A religião jamais deveria ser separada da tolerância, jamais se confundir fé com fanatismo...
Samantha... Meu coração ainda se aperta quando lembro de sua imagem ou murmuro seu nome. Ela era minha luz, minha obsessão, minha vida, uma radiante súcubo apenas para meus olhos. Uma encarnação física impecável, alma encantadora, a mais sublime das criaturas que já passaram por esse mundo. Eva, Afrodite, Lilith, Ishtar, Astoreth, Astarte, nenhuma poderia se igualar a ela, mais bela e sedutora que qualquer deusa do amor. Unidos pela fé e pela paixão, fugimos de tudo e todos, buscando um lugar onde pudéssemos viver livres, só nós dois, seguindo nossas crenças e nossos desejos.
Maldito aquele dia quando eu estava fora, caçando nosso sustento e nossas oferendas ao Pai! Como poderia saber, quando saí em meio à alvorada, que aquela seria a última vez em que a veria viva? Aqueles malditos fanáticos vieram, através de boatos dos povoados mais próximos, talvez também das confissões de irmãos de fé sob implacável tortura. Era entardecer, e eu voltava para a cabana com uma gorda caça, mas de longe vi uma espessa nuvem de fumaça negra se levantando de onde deveria estar a cabana. Imediatamente meu coração ficou sabendo da verdade, embora a mente ainda exigisse uma confirmação visual para acreditar. Larguei a presa e corri, corri com a velocidade de Asmodeu, empunhando a lança, o ódio borrando minha visão, misturado ao desespero e a um ilusório pingo de esperança. Quando cheguei à clareira, vi cinco anos de felicidade absoluta e paz reduzidos a um monte de escombros negros, ainda fumegantes.
Alguém mais fraco teria caído de joelhos e perdido um precioso tempo entre torpor e lamentação. Mas não dei qualquer tempo que fosse para a hesitação me dominar. O infernal fogo da fúria subia pela minha garganta, mas eu tinha que correr. Sabia que os desgraçados que haviam queimado minha casa e levado minha deusa já deveriam estar longe. As chances de encontrar Samantha viva diminuíam a cada segundo que se passava, pois eu conhecia os métodos que a Inquisição usava. Nada de julgamentos honestos ou pedidos de redenção benevolentes como eles faziam o povo acreditar. Eles iriam torturá-la imediatamente assim que a colocassem diante do inquisidor chefe designado para aquela missão. Mas por mais medíocre que fosse a chance de eu ver seus olhos cristalinos ao menos mais uma vez, eu iria agarrá-la com toda vontade que ainda me sobrava. E foi o que fiz. Com minha habilidade de caça não demorei a encontrar o rastro da carroça dos cristãos. Meu cavalo fora roubado, então o que fiz foi insano, mas já naquela hora meu equilíbrio estava abalado: apenas dirigi uma prece a Lúcifer, pedindo forças às minhas pernas, e corri com a lança e o arco nas costas.
Não me puno por ter tentado aquilo, mesmo vendo agora que não teria qualquer possibilidade de chegar à cidade em menos de dois dias. Meu cérebro era uma casca vazia que apenas comandava os pés para que avançassem, avançassem... Quando o fôlego para a corrida acabou, prossegui caminhando em ritmo acelerado. Não havia sequer pensamentos de fadiga tentando me dominar, a mente ignorava a agonia do corpo. Eu apenas dava um passo após o outro, depois mais um, e mais um... O sol morreu naquela tarde e, por duas vezes, ainda se levantou assistindo minha caminhada incansável. Foi a luz da lua que me banhou, sujo e cambaleante, quando entrei no perímetro urbano, onde os campos abertos e pastagens dos feudos davam lugar a um aglomerado imundo de choupanas e casas. O débil instinto de preservação própria que ainda me sobrava levando-me pelas sombras e vielas mais desertas para não ser confundido com marginal. E, mesmo ali, alguém poderia me reconhecer como herege.
Pois foi quando atravessei uma grande rua que passei na frente de uma taberna. Já era quase madrugada e os últimos bêbados eram expulsos dos bares. Do casarão saíram quatro homens aos risos e tropeços, vestindo as roupas dos inquisidores e falando alto.
- Ótimo final para um trabalho rentável, não? - disse um.
Risos altos. Uivos selvagens.
Aquele que no primeiro se apoiava respondeu, com a voz embargada:
- A bruxa de cabelos vermelhos já deve estar tendo uma boa conversa com seus amiguinhos lá de baixo! - e estourou numa gargalhada grotesca.
Não.
Não havia qualquer dúvida sobre quem eles falavam.
Chega.
Naquele momento meu espírito gelou e minha racionalidade desabou. Era o fim de qualquer controle que ainda tentara manter. E eu não possuía a menor dúvida sobre o que deveria ser feito. Sob um céu limpo, de onde eu esperava que Deus conseguisse enxergar tudo, fui na direção dos vermes. Azazel insuflou-me com seu poder enquanto eu saía das sombras, trêmulo de ódio.
Os quatro assassinos pararam ao ver minha silhueta em meio ao caminho, a ponta da lança brilhando à luz da lua, sedenta, implorando por sangue cristão. Um deles ainda teve tempo de balbuciar um "saia do caminho, vagabundo", com a típica coragem dos embriagados, antes que eu caísse sobre eles como uma avalanche de fúria e sanguinolência. Não foi uma, nem duas, nem menos de dez vezes que afundei a lâmina de metal na carne macia de cada um deles. Os inquisidores gritavam, gemiam e cambaleavam, sem condições de fugir de minha ira.
Só depois de encharcado do licor vital dos malditos é que comecei a pensar de novo e ver onde estava, no meio de uma das principais ruas de uma cidade. Naquela hora a captura e a morte não me importavam, mas havia coisas que eu desejava saber antes. Arrastei para a ruela um dos corpos dilacerados que ainda agonizava e, na proteção do escuro, falei com os dentes cerrados àquele trapo de carne sangrento:
- O que vocês fizeram com ela, maldito?!?
Por entre olhos quase sem vida o inquisidor me fitou, a compreensão chegando à sua mente embotada pela hemorragia e pelo álcool. Com um esforço imenso, um esgar de crueldade surgiu naquela boca por onde o sangue se esvaía, sussurrando entre dentes tingidos de vermelho:
- Foi lindo... um trabalho digno de um bom homem de Deus... não foi difícil fazê-la confessar... já que ela confessou... abertamente... então foi só mostrar à população... como deve ser tratado uma... um adorador do Demônio...
O inquisidor tossiu e uma grande golfada vermelha escapou de sua boca. Mas continuou:
- Esmagamos seus dedos... furamos seus olhos... Ah, como é bela a redenção pela dor!... ela gritava e gritava... invocando suas entidades satânicas... até a hora em que o fogo... o fogo consumiu suas cordas vocais... ela... ou que sobrou... ainda deve estar fumegando na praça pública... - o sorriso se tornou mais sarcástico que nunca - se você quiser ver...
Foram as últimas palavras dele antes que eu batesse com sua cabeça nas pedras do chão, até transformá-la numa massa informe de carne, ossos e miolos. Corri dali, pois sabia que logo alguém veria os cadáveres e chamaria a milícia. Fugi sem saber para onde e para que, vagando num lugar infestado por aqueles que haviam arrebatado minha amada. Caminhei sem rumo, a mente em torpor e deserta de pensamentos. Eu não determinava para onde meu corpo me levava, sentia-me como uma casca vazia, mas meu inconsciente sabia a mórbida direção que estava tomando.
Oh, Hécate! Foi você a única testemunha a ver aquele farrapo humano, apenas um invólucro oco de carne, se arrastando em direção à estaca queimada no meio da praça principal da cidade! Viste aquela forma decadente cair de joelhos em frente a uma pilha de ossos carbonizados, derramando à luz da lua suas últimas lágrimas mortais! Ouviste aquela sombra do que já foi um homem ter sua fé abalada, duvidar do poder de Lúcifer, que deixava uma de suas filhas se ir tão facilmente! "E todos os sacrifícios, e os rituais, para que serviram?!?", gritava ele. Ouviste-o também erguer seu punho aos céus do impiedoso deus cristão e jurar vingança, pelo tanto que ainda durasse sua inútil existência...
Pois foi aquele o único sentido que ainda achei na minha vida: vingança. A intolerância, algo que sempre combati com todas as minhas forças, me dominou integralmente: criança ou adulto, inocente ou culpado, pobre ou rico... Não importava. Apenas sabia que todos os seguidores do deus único e cruel dos cristãos deveriam ser mortos, massacrados, sofrendo cem vezes o que sofrera Samantha. Tornei-me o assassino mais procurado de todos os reinos, ninguém conseguindo desvendar meus motivos, julgando-me completamente imprevisível. A minha lenda espalhou medo até nos árabes e nos nórdicos, e deixei que continuassem a tremer, pois também não eram de todo inocentes. As pessoas se perguntavam como alguém podia matar com tantos requintes de crueldade, com tanta frieza, enquanto continuavam a assistir pessoas gritando no fogo de suas fogueiras divinas. Ah, tolos hipócritas! Realmente mereciam morrer todos! Eu só não conseguia, de modo algum, matar uma mulher, pois em cada rosto feminino via um resquício da beleza de minha amada.
Aqueles foram anos de sangue, fuga e completo vácuo interior. Minha própria crença no Pai Lúcifer não era um consolo, pois havia virado um ateu, sem nenhuma religião que me desse conforto. Não acreditava mais que a corte infernal pudesse proteger os seus, considerando-os tão fracos quanto os enviados celestiais. E eu teria seguido assim até o fim da minha vida, não fosse por outro dia para sempre gravado em minha memória.
Era uma nebulosa e funesta manhã de inverno, nove anos após aquele fatídico entardecer. Eu pensava sobre minha vida sem rumo e no suicídio, pensamentos vinham constantemente me atormentando. E havia um sentimento de algo se aproximando, como uma leve pincelada de premonição, como se alguma revelação estivesse penetrando lenta e insidiosamente nos abismos da minha mente. Foi quando eu vi uma sombra se aproximando na neblina.
Era só um vulto, andando lentamente em minha direção, mas... Como dizer... Havia uma intensa sensação de familiaridade naquele modo de caminhar. Suas formas foram ficando mais definidas, cada vez mais claras... E então pensei que minha parca sanidade havia ruído de vez, dando lugar à loucura desatinada, transformando lembranças do passado em visões tangíveis. Eu me lembrava em todos os detalhes daqueles cabelos rubros esvoaçantes, os olhos vermelhos como as labaredas avernais, a pele alva como marfim... Oh, Pai Lúcifer! Poderia realmente ser ela quem eu via? Poderiam ser suas mãos que me tocavam? Poderia ser sua voz que me falava?...
"Não apresse as coisas. Afaste essas idéias de sua mente, e acabe com esta louca cruzada de vingança. Não é nada do que sempre acreditamos e defendemos. Não são muitos que devem pagar o preço pelo desatino de poucos."
Ainda atônito, tentei formar alguma frase, dizer alguma coisa, mas da garganta só saíram murmúrios desconexos. Ela colocou um dedo sobre meus lábios, calando-me com aquele sorriso radiante com o qual Lúcifer havia dotado minha deusa...
"Calma... Chegará um dia em que voltarei para buscá-lo, e então viveremos juntos... para sempre!"
Pela última vez nesta vida eu beijei seus lábios, tão doces e suaves como eram há doze invernos. Com aquele sorriso e olhar, aquela atordoante mistura de pureza e lascívia que tanto me fascinava, ela se voltou e sumiu em meio à neblina, sem em nenhum momento olhar para trás, me deixando parado, com um turbilhão de sentimentos em meu interior. Senti minha alma ressuscitar um pouco, novamente o ardor do espírito me invadindo... Um pequeno gole de ar para um corpo quase sufocado.
Ilusão? Sonho? Delírio? Realidade? Nunca soube... O certo é que desde aquele dia nunca mais matei ninguém, isolando-me em terras ainda mais ermas que antes para envelhecer, agora com um pouco de paz. O Caçador de Cristãos virou lenda, muitos foram os que atribuíram a si mesmos a glória de o terem capturado. Por consequênica, muitos foram os irmãos mortos nessas caçadas. Mas eu não me importava mais com as coisas dos homens. Minha alma já não pertencia a este mundo, embora permanecesse presa ao corpo. Só queria seguir minha rotina caçando, rezando e aguardando...
E até hoje estou esperando pelo chamado dela, vindo do paraíso prometido... O Inferno.
sexta-feira, 25 de julho de 2008
Plenos Poderes
Há duas horas, Deus veio até mim e me deu plenos poderes. Eu exterminei as guerras, acabei com a miséria e com a fome, transformei escolas em verdadeiras fontes de conhecimento... enfim, toda aquela babaquice que toda Miss diz que sonha. Aí meus poderes acabaram. Faz duas horas que eu não tenho do que reclamar. Tô de saco cheio. Puta mundo chato.
Eu sei
Estou começando agora o maior desafio de minha vida até hoje: escrever meu primeiro Best Seller. Um livro que vai ser lido por milhões de pessoas no planeta inteiro. Como eu sei disso?
Eu só sei.
Sei, como sei que no jogo de domingo o Palmeiras vai vencer o Grêmio por 3 a 1. Como sei que até o final da tarde de hoje a Petrobrás aumenta 2,36% e as ações do Itaú caem 0,74%. Sei como sei que às 19h37min de hoje um Vectra bordô com placas de Gaspar vai se chocar uma Fiorino branca, placas de Blumenau. Dentro da Fiorino, um cachorro Poodle que voltava de uma tosa vai ser o único ferido no acidente.
Eu simplesmente sei.
Sei que esta noite Ademar Borba será preso pelo assassinato de sua esposa, que vai ser encontrada por ele na cama com o síndico do prédio, o senhor Coelho. Eu simplesmente sei.
No começo, tentei tirar vantagem deste dom recém descoberto. Comecei com apostas em um bolão de futebol entre os amigos, passei a comprar algumas rifas que eu sabia que seriam premiadas e um dia cometi o erro de jogar na Mega Sena.
Depois daquilo, minha vida começou a desmoronar. Quanto mais eu esforçava minha mente para prever os acontecimentos, melhor eu ficava. Sabia tudo, com cada vez mais detalhes e maior previsão. Com R$ 25 milhões na conta bancária, larguei o emprego e mudei de cidade. Não pude conviver comigo mesmo depois do dia em que cumprimentei um amigo na rua e vi que sua mãe iria morrer em menos de duas horas.
Não havia nada que eu pudesse fazer. Meu amigo não sabia. Eu não pude contar.
Naquela noite, eu não dormi. Comecei a raciocinar e logo percebi que se fosse meu amigo, e não sua mãe, a vítima, eu não saberia o que dizer. Eu não tinha como mudar o futuro. Apenas tinha como me aproveitar dele. No começo, eu não conseguia saber bem como se dariam as mortes, apenas sabia que elas iriam acontecer. Hoje, com muito treino, já consigo detalhes bastante claros sobre crimes, acidentes, fatos corriqueiros. Nada passa despercebido.
Há 20 anos eu vivo num tempo que não é meu. Nunca mais trabalhei na vida. Tenho todos os luxos que um homem já sonhou em ter. Consigo a mulher que eu quiser, pois sei exatamente o que elas querem ouvir.
Mas não consigo me relacionar. Talvez por saber, no exato momento em que olho nos olhos de uma pessoa, o dia e a forma de sua morte. Sei se ela irá me trair, se ela vai me amar, se ela vai ficar doente e se ela vai me fazer sofrer.
E em todos os futuros, eu sempre sofro. Agora, como que fugindo do sofrimento iminente, o medo me impede de sair de casa. Fico aqui, zapeando os canais de TV, respondendo as perguntas que os repórteres fazem no jornal, antes mesmo dos entrevistados pensarem no que vão dizer.
E essa manhã eu descobri que serei o autor de um Best Seller, sem nunca ter escrito um texto com mais de duas páginas. Comecei a escrever, pois o futuro nunca mente. Na terceira tecla que apertei, minha visão já ficou mais clara. Esta obra só se tornará um sucesso dessa magnitude pela forma brutal com que seu autor irá morrer, assim que escrever o ponto final da última frase de sua obra.
Eu não sei o que escrever num livro como este. Pela primeira vez em toda minha vida, me deu um branco. Não sei o que escrever. Só sei que preciso escrever. Sem parar. Escrever, escrever, escrever. Pois assim que eu parar, esta terá sido a última coisa que escrevi.
Eu só sei. Eu simplesmente sei.
quinta-feira, 24 de julho de 2008
Laura
- Calma, alguém já vem ajudar.
No orfanato, Laura chorava entre os gritos das outras crianças.
terça-feira, 22 de julho de 2008
Tema da rodada
Mas, enfim, a proposta é: escrever um conto de zoof.....*********
Opa, perdão, tema censurado.
O tema então é PARANORMALIDADE.
Textos até dia 26.
quinta-feira, 17 de julho de 2008
Efêmero
Ah, o homem e suas idades... Como gostamos de olhar para trás e avaliar o que fizemos, o que fizeram, procurar o que já fomos numa vã tentativa de entender o que seremos. Com olhar curioso, observamos remanescentes de uma era esquecida, onde primatas despelados tentavam desesperadamente sobreviver em um mundo de titãs. A nós chegam apenas ossos e pedras, sim, as lascas de um mundo diferente, primitivo e estranho, e nos admiramos com nossa primeva capacidade de moldar o mundo. Ou nos espantamos com a suprema tolice das outras espécies, que jamais tiveram a mesma idéia e assim tiveram seu destino selado em nossas mãos? Seja como for, são as pedras que vemos, e assim a batizamos: Idade da Pedra. Por certo a menos importante das coisas para os daquele tempo, mas é aquilo que nos faz sentido, então interpretamos como quisermos.
Assim nosso espírito primal é incitado quando fitamos armas e invocamos Idades de Bronze, Ferro e sangue, mesmo que sejam apenas algumas das inúmeras invenções de seu tempo. Então, acariciando nossas metralhadoras, mísseis e tanques, pensamos: “como evoluímos!”. Vemos a História como uma escalada inexorável à nossa ascensão, sempre melhorando, aprimorando, dominando, tomados pela visão que o passado é um conjunto de degraus levando ao maravilhoso presente, lar de nossas maiores conquistas, nossos melhores conceitos, nossa maior perfeição. Quem dera aceitássemos que o presente é apenas um resultado fortuito do passado, e que a própria palavra “destino” é uma estupidez sem razão de ser, pois se estamos vivos hoje é apenas porque não morremos ontem. E vice versa.
A ilusão é escancarada pela nossa própria presunção, num tempo em que a Idade Moderna já é ultrapassada e mesmo a contemporaneidade cambaleia para seu obscuro fim. Pobres das pessoas do futuro, se é que alguma haverá, qual o nome que lhes sobra? Idade Presente? Idade do Agora Mesmo, De Verdade? Elas olharão para nós de um pedestal mais alto que o nosso, em irônica superioridade: “de quem os tolos se achavam contemporâneos? Eles riam dos que defecavam em buracos, mas esfregavam papel entre suas nádegas para se dizer ‘limpos’!”. Sem dúvida cometerão o mesmo erro, e acharão que sua Idade é “A Idade”, seus conceitos “Os Conceitos” e sua moral, “A Moral”.
Adoramos fazer isso, whiggistas crônicos: olhar para o passado e interpretá-lo segundo o presente, tanto através dos milênios da espécie como dos anos de cada vida. “Por que não estudei mais, guardei algum dinheiro, paguei minha previdência, bebi menos, deixei ela ir?”, choraminga o ancião decrépito em seu leito de morte. Tolo velho, e que logo cesse sua respiração para parar de proferir besteiras! Que bebam até cair, se lhes é a vontade. Que trabalhem oito horas diárias, se lhes parece importante. Que ignorem o compromisso de amanhã, se o que lhes interessa é o prazer do presente. Podemos mentir para nós mesmos à vontade, mas não conservaremos um futuro para nossos descendentes, pois eles nos serão tão alienígenas quanto os primatas de um mundo de feras e pedras. Cada época é sua época, cada deus em seu contexto, cada geração com sua moral. E nós, “contemporâneos”, assim como todos em todas suas épocas, seguimos nos apegando a valores etéreos como se fossem bastiões sólidos. Sim, a paz está a nosso alcance. Seja tolerante com o diferente. Respeite os outros, todos merecem uma vida digna. Liberdade e direitos iguais. Jesus Cristo vai voltar, aleluia. E o Império Romano nunca cairá...
Ah, o homem e suas idades... Estamos na Idade de Ouro, com certeza. A milésima ducentésima nona, aproximadamente, tão eterna quanto a casa daquele vizinho que esteve ali desde sempre e, num dia qualquer, vejam só: passaram com o trator por cima! Seu brilho refulge em nossos olhos e caminhamos cegamente abraçados em nossas barras reluzentes. Infelizmente nem um abismo encontraremos pela frente, não acordaremos num momento qualquer com um tropeção e baque. Pouco a pouco vamos cansando, caindo, nos transformando, até o dia em que não seremos mais nós. Seremos outra coisa, olhando para trás, jogando dados com a História e apontando: aqui se inicia a Nova Idade. Novos conceitos. Novas verdades. Novas ilusões de uma espécie guiada pela mais maldita de todas as bênçãos, ou a mais abençoada das maldições, como quiser: a capacidade de criar castelos no ar. E jurar de pés juntos que são construídos com os mais nobres blocos de mármore já lapidados neste mundo...
quarta-feira, 16 de julho de 2008
Rememoagem
O tempo dos moinhos se foi, mas ainda me pesa às costas arqueadas. Como as sacas de farinha me pesavam quando garoto, ao entrar e sair por entre as pás ouvindo o gemer da mó. E como as sacas de farinha, os anos se empilham em minhas espáduas e deixam escorrer o branco sobre meus cabelos. Parcos velos que para ceder espaço ao tempo, precipitam-se como de uma ampulheta. E restam-me tão poucos grãos ainda por cair! Grãos alvos de farinha. Alvos do tempo, que os empurra implacável como o vento empurra as pás. Enquanto, dentro do moinho, à pedra resta apenas o vazio por moer e remoer.
Observo a moenda que se rende à idade. E me curvo dócil ao tempo que me arca o corpo. Enquanto o corpo, à última arca, arca. Até que os anos, empilhados todos uns sobre os outros, se desequilibrem e se precipitem junto com os últimos grãos de farinha. Resta-me apenas o tempo que range em migalhas sob a mó.
Muito nova
Quando eu tinha 13 anos e tive que viajar às pressas pra me despedir do meu avô pra sempre, eu pedi pra minha mãe porque as pessoas morriam e porque quando isso acontecia ficava uma sensação de que você poderia ter sentido mais, declarado mais e dito mais. Ela me disse que quando eu crescesse eu entenderia.
Aí, um tempo depois, eu senti um amor morrendo dentro do peito. Eu era amada, amava e conseguia visualizar um futuro nítido e claro pra mim e pra ele. De repente, eu travei. Perguntei pra minha mãe porque o desamor acontece exatamente quando não podia acontecer, ela disse que eu não tinha idade pra entender certas coisas.
Quando, há alguns dias, eu senti um buraco no peito inexplicável e uma vontade quase maluca de ligar pra ele e dizer que eu precisava de um abraço – mesmo sabendo que ele não atenderia a um pedido meu -, eu pedi pra minha mãe porque as pessoas vivem achando que o silêncio resolve tudo. Ela me disse que quando eu fosse maior, talvez entendesse.
Ontem eu perguntei pra minha mãe porque as pessoas que se amam também se afastam, porque quando as pessoas se vão a gente percebe o quanto elas eram importantes, porque o desamor acontece quando ele não podia acontecer e porque o silêncio abre tanto espaço pra dúvidas.
Ela olhou bem no fundo dos meus olhos e disse que quando a gente é pequeno é bom acreditar que as respostas vêm com o tempo. Disse também que quando a gente cresce e percebe que não há explicações pra muita coisa, se arrepende de ter visto os anos passarem e a idade aumentar sem ter buscado as respostas lá dentro do peito.
Ela, aos 42, é a pessoa que eu mais confio no mundo. Eu, aos 19, sigo buscando respostas.
O menino que não podia envelhecer
Curioso, resolveu pegar seu álbum de fotos. Seu medo se mostrou real: fazia pelo menos dois anos que ele não havia envelhecido nada. Seu cabelo continuava exatamente do mesmo tamanho desde a quinta série, e não era a toa que ele era o menor da turma. Ele não havia crescido desde então!
Oscar pensou em muitas possibilidades, mas não conseguiu achar nenhuma saída. Mais cedo ou mais tarde seus pais e amigos iriam reparar. O ano estava quase acabando e ele ia para a oitava série, com cara e corpo de um menino da quinta. Alguém iria notar.
A única saída que encontrou foi fugir de casa. Numa manhã de sábado fugiu com uma mochila nas costas para outra cidade. Lá, entrou em um hotel dizendo que seu pai só conseguiria chegar a noite, e então faria o cadastro. A atendente acreditou e lhe deu a chave do quarto. De lá, ele entrou na internet e alugou um apartamento no Centro, utilizando o nome e o número do cartão de crédito de seu pai. Ninguém suspeitaria.
Meses se passaram e Oscar se matriculou no colégio, sempre dizendo que seu pai, um homem muito ocupado, não podia se fazer presente nas reuniões. Oscar usava a senha do banco de seu pai para fazer sempre pequenos saques, de forma que o pai não reparasse que o dinheiro estava sumindo. Voltou para a quinta série, pois não podia apresentar os documentos dizendo que já estava na sétima, com medo que descobrissem quem ele era, antes que descobrissem que ele não podia envelhecer. Passou a chamar-se Dorian e era o melhor aluno de sua sala.
Na sétima vez que cursava a quinta série, já no sétimo colégio diferente das quatro cidades que já havia morado desde que fugiu de casa, Oscar entediou-se e passou a viver uma vida reclusa dentro de casa. Esqueceu de sua família, seu colegas e das risadas. Não via mais graça em vídeo-games, histórias de terror ou em jogar mata-soldado. Não desenhava mais, não mascava chicletes e não sorria.
Oscar, enfim, envelheceu.
Crescimento
16/julho/2008
Lucas Tomasi, 25 anos, dedicou esforços nos estudos e, passado um ano, é engenheiro elétrico.
Fernando Luiz da Rosa, 16 anos, se controlou para não fazer tanta bagunça nas aulas. Passado um ano, foi aprovado no vestibular e estuda odontologia.
Joana de Campos, 42 anos, arriscou sair de um emprego estável para buscar a realização profissional. Hoje, passado um ano, é guia turística.
Sebastião da Costa Moraes, 79 anos, perdoou seu irmão mais jovem por desentendimentos antigos e, passado um ano, tem no irmão um grande amigo.
Aline Ferreira Lima e Silva, 22 anos. Passado um ano, aumentou sua idade para 23 anos.
sexta-feira, 11 de julho de 2008
Tema da rodada
IDADE
boas viajadas a todos. Menos ao Félix. Se ele viajar mais do que na última rodada, minha mente pode não supoertar.
segunda-feira, 7 de julho de 2008
Votação - Formiga
Participe, indicando seu voto na caixa de comentários, até o dia 10/jul.
As aventuras de uma formiga-homem
06/jul/2008
Ele nasceu num formigueiro comum e foi batizado Homero Antunes. Era uma formiga que passava despercebida por onde quer que caminhasse. Não era o mais forte entre seus irmãos, nem o mais rápido, nem mesmo o mais esperto. Mas foi num domingo à tarde que a sua sorte mudou.
Uma família de humanos chegou para fazer um piquenique no parque onde o formigueiro de Homero estava abrigado. Um filhote de humano, também conhecido como criança, colocou os pés sobre uma parte do formigueiro. Para situações como estas, formigas como Antunes eram bravamente treinadas. A orientação era atacar. Atacar! Atacar! Atacar!
Naquele momento, Homero estava sozinho e não hesitou em cumprir sua obrigação. Atacou prontamente o pé da criaturinha, que saiu aos prantos em direção à sua mãe. No outro dia, pela manhã, Homero se sentia estranho. Percebeu uma leve mudança em seu corpo.
Na verdade, ele adquiriu poderes humanos e tinha tudo para ser o super-herói dos formigueiros. O Formiga-Homem! Achou um nome interessante. Levantou-se em posição ereta, equilibrando-se em apenas duas patas. As patas livres tinham desenvolvido a característica fundamental dos humanos: o polegar opositor. Sim! Homero agora tinha mãos e a capacidade de manusear objetos com precisão, só não entendia qual a vantagem disso.
Em sua pequena cabeça não havia espaço para um encéfalo altamente desenvolvido, sendo então uma característica que não herdou em sua mutação. Aos poucos, Homero começava a ser descriminado por suas grandes habilidades. Ninguém naquele formigueiro precisava de um bípede que manuseasse objetos. Precisavam de alguém que seguisse os outros, dia após dia, carregando alimentos para o formigueiro.
Ele não entendia porque não aproveitavam suas novas habilidades para algo mais útil ou inovador, mas a sociedade já estava profundamente adaptada às habilidades de uma formiga comum. Homero se sentia triste, passara de uma formiga comum a uma super-formiga, mas não podia exercer seu poder sobre as outras. Ele definitivamente estava ficando mais humano do que imaginara.
Inundação
Naquele dia, porém, a tempestade parecia mais forte que o normal. O som das gotas ecoava pelos corredores escuros da construção, tornando os subterrâneos ainda mais assustadores. Por isso mesmo que o pai de Paulo deu o alerta: as obras seriam canceladas até que a chuva cessasse. A umidade não era boa para trabalhar e caso houvesse infiltrações desconhecidas pelos engenheiros, um desmoronamento poderia acontecer dentro do túnel.
Paulo correu até o grande salão que abrigava os funcionários em suas horas de folga e procurou pelos amigos. Guido estava conversando com o pai, e logo falou que não poderia ir brincar. Alberto logo apareceu e trouxe com ele dois primos, que estavam visitando sua casa. Chico logo chegou com a bola embaixo do braço.
Os quatro correram entre operários e esposas preocupadas, afinal as notícias eram de que uma inundação poderia tomar a vila. Os bombeiros foram chamados para preparar uma barricada que impedisse a entrada de água pelos túneis de contenção, o exército estava de prontidão no caso de qualquer emergência. Nada disso importava para eles, que driblavam latas de cola, marmitas e pilares.
Correram pelos corredores já úmidos, até que numa escorregada na lama que se formava no chão com uma goteira no teto, Alberto desequilibrou e chutou longe. Paulo não pensou duas vezes e correu para buscar a bola, que rolava morro abaixo. Em uma curva rápida, perdeu o equilíbrio com o chão molhado e tombou violentamente. Escorregou por uma curta distância e se chocou contra a parede em uma curva acentuada.
Já não achava mais graça quando reparou que uma de suas pernas havia se prendido na lama da parede. A terra estava incrivelmente molhada. Paulo conseguiu desgrudar a perna da parede com alguma dificuldade, e começou a cavar. Como aquela parede poderia estar tão molhada? A umidade era comum nessa profundidade, mas ele nunca havia visto a terra molhada daquele jeito.
Resolveu que era mais seguro procurar algum adulto, quando notou que já era tarde demais. Uma fina camada de água saía de um buraco na parede, e se acumulava aos seus pés. Antes que pudesse tirar seus pés da lama que já o fazia afundar, a fina camada de terra que servia de parede para o mundo exterior se rompeu.
Um rio de água barrenta atingiu violentamente o corpo de Paulo, o lançando pelas galerias de terra. Foi arrastado por alguns segundos quando viu uma raiz no teto, pendendo ao seu alcance.
Conseguiu se segurar, mas sentiu que ela se soltava do teto. Torceu para que agüentasse pelo menos mais alguns instantes, já que o fluxo de água já parecia diminuir, quando notou que era justamente o contrário que iria acontecer.
A raiz se soltou do teto, e com ela, toda a terra que estava sobre sua cabeça veio abaixo. Os túneis não tinham paredes grossas o suficiente para suportar tanta água caindo sobre si ao mesmo tempo, e uma simples rachadura criada pelo impacto de Paulo contra a parede fez com que a água invadisse e inundasse todo o formigueiro.
Operários e soldados foram levados pelas águas e muitas vidas se perderam naquele dia. Com alguma dificuldade o água foi contida e no dia seguinte, com o sol já secando a terra, novas proteções foram feitas, ainda mais resistentes que as de então. Paulo nunca mais foi visto. Mesmo assim, a vida o formigueiro seguiu em frente e o trabalho continuou. Todos sabiam que uma nova tempestade poderia acontecer a qualquer momento, mas precisavam seguir com suas vidas, não havia nada que pudessem fazer. Mas Chico, Alberto e seus primos nunca mais foram jogar bola nos túneis molhados pela chuva.
domingo, 6 de julho de 2008
For me, gás!
Daí o tamanduá encontrou-a e aspirou-a. E foi o fim do neoliberalismo no mundo. Das formigas.
Eu e elas
A partir daquele momento, eu tinha duas alternativas bem simples: ou eu jogava tudo fora ou eu comia as formigas – os japoneses vivem anos, afinal. Acabei lembrando que as formigas não comem só comidinhas gostosas. Esses dias vi uma barata morta cheia delas. Logo, se formiga come baratas mortas e eu fosse comer formigas... Não. Joguei tudo fora.
Dei uma arejada no ambiente, um antídoto contra formiguinhas indesejadas e mais um pouco de tempo. Dois dias e eu cheguei em casa com minhas novas gostosuras. Todas misturadas na prateleira, sonhei com as gostosuras durante a noite toda. Era absolutamente tudo o que eu queria e o que eu desejava naquele momento. Pena que elas, as formigas, tinham descoberto o oásis na minha cozinha. Aliás, não só na minha cozinha. No meu guarda-roupas, na minha gaveta de documentos, no piso de madeira da minha casa e, olhem, até mesmo nos lençóis da minha cama.
Depois de muito veneno para passar nelas e falar nelas, resolvi mudar de apartamento. Afinal de contas, as formigas não podiam acabar com meu bom humor, com meu café da manhã e com a minha vida. Mal sabia eu que na minha próxima casa eu ouviria barulhos estranhos a noite e perceberia uns buracos estranhos na parede.
sábado, 5 de julho de 2008
As formigas do Père-Lachaise
A fila caminhava lentamente, como se as câmeras fotográficas pesassem no pescoço de seus portadores. Uma coluna de formigas seguindo algum traço invisível, a caminho do formigueiro. O céu brilhava azul sobre o leste de Paris, imprimindo manchas redondas de reflexos de lentes nas fotografias que seriam reveladas posteriormente. Seguimos o caminho demarcado por correntes grossas que nos levaram até a amurada de pedra, donde, duas estruturas tórreas se elevavam de cada lado do portão. No alto de cada uma, um disco era sustentado por duas tochas cinzeladas na pedra e, no centro deste, pousava esculpida uma ampulheta alada. Fiquei olhando as esculturas na entrada e a fila foi passando sem que eu percebesse. As ampulhetas, imóveis, não deixavam precipitar nem um grão de areia. Ainda que areia fosse tudo o que eram. Compactada, sólida, mas ainda assim areia. Grãos agarrados uns aos outros temendo a queda. E assim, as ampulhetas não se mexiam. Quando tirei os olhos dos muros para entrar, dei por um garoto de pele parda que me olhava inquisidor em roupas rotas, a certa distância. Devia estar ali há tanto tempo quanto eu, mas só lhe dei conta quando a fila das formigas de bermudas se foi portões a dentro. Com uma mesura lhe cumprimentei de onde estava, ao que ele se aproximou, sorriu e me estendeu uma canequinha de alumínio, falando alguma coisa com um sotaque do outro lado do mediterrâneo, provavelmente argelino. O meu francês de banco de escola não pode decifrar perfeitamente o pedido, mas o gesto de quem pede esmola é decifrável em qualquer idioma de um mundo que não se entende. Dentro da caneca, que devia ter sido estendida já a toda aquela fila, tinha apenas um par de moedas. Dei a entender que não tinha dinheiro, o que, obviamente, ele sabia que era mentira. E cruzei apressado por sob as ampulhetas imóveis e as tochas sem brilho.
De longe avistei a longa fila das formigas fotográficas, com o colorido de idiomas e tecidos contornando as ruelas do Pére-Lachaise. Observei-os de longe e me mantive a alguma distância, seguindo solitário até encontrar algumas figuras conhecidas. Cruzei por Wilde e Bergerac. De longe avistei Proust, mas receei me aproximar e apenas continuei meu caminho sem que me notasse. Cruzei com Balzac e me detive por uns momentos com ele, enquanto as formigas multilíngües andavam à minha volta. Não percebi e já estava novamente no meio delas. E naquele formigueiro, eu era mais uma operária. Molière me chamou a atenção e fui a seu encontro. Ao seu lado, La Fontaine lhe fazia companhia. Cumprimentei-os com um inclinar de cabeça, ao que, aos pés de La Fontaine, um movimento diminuto me chamou a atenção. Sobre a pedra, um círculo de formigas se ocupava em desmembrar uma cigarra. Parte a parte, ela era serrada e levada para dentro do formigueiro. As formigas se preparavam para o inverno. Uma pequena cantoria me chamou a atenção e quando levantei percebi que estava novamente em meio àquela multidão, agora cantarolante, de máquinas na mão. La Fontaine me olhou com os olhos frios de pedra e uma vertigem ameaçou de derrubar. Livrei-me da multidão e parti correndo de volta ao portão, me afastando de todos. Das pedras, das pessoas, das formigas. Já novamente debaixo das ampulhetas de pedra, procurei o garoto que havia me abordado. Rondei por ali uns cinco minutos mas ele já se fora. Com peso na consciência, fui junto ao muro onde o avistei pela primeira vez, saquei algumas notas da minha carteira e coloquei-as no canto da amurada com uma pedra em cima, para que o vento não as levasse. Segui os caminhos das correntes sem olhar para as tochas sem luz ou para as ampulhetas imóveis, e voltei para o meu hotel quatro estrelas de pacote pago em vinte e quatro vezes.