sábado, 28 de fevereiro de 2009

Declaração

- Quero escrever para a minha família.
- Não há aqui papel, nem luz, nem tinteiro. Fique tranqüilo, voltaremos pra casa.
- Não, preciso dizer a eles algo importante.
- E eu posso saber o que?
- Que eu os amo.
- Mas você pode dizer isso quando chegarmos.
- Tenho a impressão que medalhas de honra ao mérito por uma guerra perdida desde o princípio não falam de amor.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

(sem título)

Escrevo apenas para dizer o quanto amo vocês. Aqui as coisas são estranhas, diferentes. Nada é como a gente pensa que é na verdade. Estamos lutando uma guerra que não é nossa, onde não conhecemos sequer o rosto do inimigo. Aqui, todo mundo é culpado até provar o contrário.

Não fazemos amigos entre si. Há, no máximo, um nível de tolerância entre os rapazes. Todos sabemos que em uma noite de combate, todos podemos morrer. E ninguém quer carregar nas costas o fardo de ter perdido um amigo. Mais um amigo.

Nos mantemos com a mente ocupada a maior parte do tempo, para não pensarmos no que está por vir. São treinamentos, competições, apostas e brigas. Temos horários pré-determinados para tudo. Mas somos fortes e resistiremos. Vocês aí podem ficar tranquilos.

Voltarei para casa em breve, com duas medalhas penduradas no lado esquerdo do peito, as mãos calejadas e a pele morena do sol implacável. Mas voltarei e voltarei feliz por estar em casa.

Eu te amo mãe, eu te amo pai. Mandem abraços à Jenny e aos pais dela. Em breve estarei em casa para podermos esquecer que tudo isso um dia aconteceu.

Com amor e saudades,
Tom

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O entrincheirado

Entrincheirado, Vladimir mordia seus próprios lábios enquanto combatia os exércitos da Tríplice Aliança. Urros e dor eram uma constante ao seu redor e ele já não aguentava mais aquilo. “Esta guerra não termina nunca”. No front desde 1914, o jovem não suportava mais a distância daquilo que um dia ele pôde chamar de família. Não conseguia lembrar do cheiro ou sequer das vozes de seus entes. Sobravam-lhe tão somente semblantes, levemente distorcidos pela ausência trôpega. “Malditos sejam os Senhores das Guerras”, bradava, internamente, no silêncio de seus próprios devaneios. Esperava ouvir, lá no fundo, uma voz reverberante, um eco que pudesse concordar com aquilo que ele julgava ser o mais importante de todos os seus pensamentos àquela altura dos fatos. Afastado da frente por um breve período, Vladimir não viu seus companheiros de exército abandonarem as armas. Não acreditou muito quando soube da queda do Czar Nicolau II e da criação do Governo Provisório. Mas foi quando viu Petrogrado sendo cercada pelos bolcheviques que ele teve a primeira certeza em anos. “Desta vez não volto mais para as trincheiras”.

A árvore de Herr Voss.

“Hoje eu explodi em uma bola de fogo. Foi magnífico.”

— Herr Voss, seu Dreidecker está pronto.

O jovem piloto fechou rapidamente o caderno de capa de couro, guardando o lápis e levantando a cabeça para olhar o abastecedor. Mas olhava além dos olhos claros do homem. Atrás dele, o Fokker Dreidecker brilhava prata no sol das cinco do sul da Bélgica.

Era setembro, havia uma estática no ar que passava ligeiro pelas asas do triplano. Em cada asa as cruzes maltadas se destacavam negras contra o céu que começava a trocar de cor. O vôo era calmo e Werner abriu o caderno de couro com uma das mãos. Mais admirava as letras que as lia, mantinha o olhar nos céus. Mesmo depois dos vôos de esquadrilha, deixava o Jasta 10 para manter seus vôos solo, fazendo a ronda. Gostava de pensar lá em cima. Deixava as coisas mais claras, justificava. Tinha apenas vinte anos e já perdera provavelmente mais amigos que o avô; que o pai certamente. Voava comandado pelo maior Ás da Luftstreitkräfte e, como todos os pilotos da Jasta 10, planava sempre sob a sombra do comandante Richtofen. Há alguns meses já conseguira permissão para voltar a voar sozinho em rondas agendadas. Há alguns meses escrevia no caderno de couro tudo o que pensava, lá em cima ou lá embaixo. Sonhava com o som do vento misturado ao som das balas. E quando olhava para baixo, em sonho, confundia a copa das árvores com as explosões das aeronaves abatidas. As copas não eram verdes, eram vermelhas cor do fogo. Cor do Barão.

Viu longe dois pontos contra o horizonte. Fechou o caderno com cuidado, colocou-o entre as pernas e aumentou de altitude. Era um vôo de reconhecimento britânico, mas quando deram por si, Voss já os tinha sob a mira. Um dos adversários não durou mais do que alguns segundos. Uma rajada certeira obrigou o piloto a buscar algum sítio qualquer para uma aterrissagem forçada. O segundo piloto tentou contornar pela esquerda, mas o Dreidecker alemão em uma manobra rápida se pôs novamente em uma altitude superior, expelindo balas das duas metralhadoras contra a fuselagem inimiga. O piloto britânico mergulhou seguido por Voss. Manobrava para evitar maiores avarias mas não pode escapar da chuva de balas que as duas Spandau despejavam. As duas aeronaves perdiam altitude rapidamente na caçada e não perceberam a aproximação de uma esquadrilha inteira que patrulhava a área. A fumaça preta do avariado avião inglês deu a certeza a Voss de mais uma vitória, mas também alertou a esquadrilha inglesa.
Quando Voss percebeu as sete aeronaves bem acima de sua posição percebeu as inscrições B 56 na fuselagem da força de elite da armada inglesa. Fechou os olhos por um instante, sentiu o vento zumbir forte pelas asas do triplano. Lembrou dos amigos, dos inimigos, dos quase cinqüenta abates. Circulou abaixo da esquadrilha que se aproximava, garantindo para que as cores da Jasta 10 fossem notadas. Abriu o caderno de couro na página marcada e leu as últimas frases do último texto que escrevera. “Hoje eu explodi em uma bola de fogo. Foi magnífico.”

Sorriu com graça, fechou o caderno, respirou fundo como quem fosse mergulhar, mas ao contrário, puxou o manche com violência. O triplano empinou como um cavalo xucro e começou a escalar os céus velozmente. A esquadrilha se dividiu, tentando cercar a nave alemã. Voss continuou subindo em uma espiral ascendente, as duas metralhadoras despejando balas que se alojavam nos aviões ingleses. Um, dois, três, quatro naves alvejadas no movimento ascendente, uma delas sangrando uma fumaça preta de óleo queimado. Outra já fora de combate. Do alto sobrevoou a outra metade da esquadrilha. Mais duas rajadas, mais um inimigo atingido. Não se preocupava em derrubar ou inutilizar todos os aviões. Queria apenas marcar cada um deles, pra que quando pousassem pudessem contar a história do piloto que marcara toda uma esquadrilha. Todo o esquadrão B.

Despertou do devaneio com o som das balas contra a própria fuselagem. Antes de despistar o perseguidor, conseguiu ainda disparar mais uma rajada na asa do inimigo a sua frente. Procurou no céu que começava a escurecer a última aeronave. Avistou-a numa altitude um pouco acima da sua, e começou novamente os círculos ascendentes em direção ao único avião que escapara de suas balas. As metralhadoras alemãs disparavam velozes. Não precisavam economizar munição. O inglês à frente sacudia seu avião de um lado para o outro, tentando evitar os projéteis. Todo o restante do esquadrão B estava se alinhando para encaudar Voss. As metralhadoras inglesas tentando um tiro seguro. Até que Voss viu, no centro de metal da mira de suas Spandau, a marca da armada inglesa, em forma de alvo. Uma rajada certeira alojou os projéteis no círculo vermelho na fuselagem inimiga. Relaxou os músculos da face, os ombros, esboçou um leve sorriso de contentamento enquanto continuava a espiral ascendente. Lá no alto, junto às primeiras estrelas, viu, abaixo, as copas das árvores. E entre ele e elas, todo o esquadrão B avariado. Fechou os olhos, agarrou o caderno, ouviu o motor trabalhar barulhento naquela altitude.

Quando o Dreidecker atingiu o cume de sua trajetória, desligou o motor. Por alguns segundos não ouviu nada. Nem o vento soprava contra o avião parado no ar. Podia quase ouvir as estrelas. Ou as copas das árvores. O triplano apontou, silencioso, o nariz para baixo e o vento começou a uivar sonoro, veloz, novamente. Ouviu o zumbir do outros aviões ao passar por eles num mergulho cego. Sentiu o avião vibrar com rajadas inimigas.

Visto de cima, pareceu o nascer de uma nova árvore, vermelha, em meio às copas verdes. Naquele dia, Werner Voss explodiu em uma bola de fogo. Foi magnífico.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Tema da Rodada

Como fica a meu encargo o tema da próxima rodada, os duelistas podem aproveitar o carnaval para pensar no tema: história sobre a primeira guerra, pelo ponto de vista do soldado.

Duelistas têm até o dia 26 de fevereiro para se recuperar da ressaca e postar os textos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Votação - Café

Vote no melhor texto para o tema "Café" comentando este tópico até o dia 20/02/2009.

Expresso longo

A xícara balançava sobre a bandeja e Dênis já alterava seu estado de humor. Não era difícil deixá-lo nervoso, e ver o garçom trêmulo já era o suficiente para uma leve irritação. Não podia ser pior do que o café melado do boteco da esquina, mas mesmo assim ele não podia perdoar. O trajeto da cozinha até a sua mesa parecia durar uma eternidade. Com a xícara à sua frente, olhou fixamente para o jovem que acabara de lhe servir o tão aguardado café preto expresso longo.
- Tua insegurança me dá náuseas!
- Desculpa, senhor, sou novo aqui. – Sussurra o jovem com o queixo quase tocando o próprio peito.
Com um muxoxo e um esboço de sorriso, Dênis pediu que o jovem trouxesse um sanduíche de ricota. Embora estivesse a certa distância, recostado sobre o balcão, o dono da lanchonete percebeu a grosseria do cliente e saiu em defesa de seu novo contratado.
- Posso ajudá-lo, senhor?
- Claro. Saindo da minha frente.
Jônata dá de ombros e atende ao pedido do freguês sem mexer um único músculo da face. Dênis, apesar dos pesares, vinha sendo um bom freqüentador do local nas últimas semanas. Não passava um único dia sem tomar seu café preto e esbanjar um pouco de seu mau-humor. Não falava muito, mas observava tudo atentamente, sem com as pestanas contraídas sobre os olhos.
Nesse dia, parece que ele resolveu não passar despercebido.Esperou o garoto trazer seu lanche e vociferou novamente.
- Não dava pra ser mais lento?
- Desculpa, senhor.
Incomodado com a situação, Jônata caminhou novamente até a mesa de Dênis.
- Há algo que eu possa fazer por você, senhor?
O jovem garçom olhava desconsolado para os dois. Dênis fez um sinal com a cabeça apontando para o jovem.
- Pode ir, garoto, eu cuido desse cliente.
- Bem, agora que estamos a sós posso abrir o jogo contigo. – Comenta Dênis como se nada tivesse acontecido. – Não gosto de pessoas inseguras. Elas me passam uma impressão de fragilidade e incompetência. Pode ver pelo seu garoto. – Apontou.
O jovem estava atrás do balcão lustrando alguns pratos quando Jônatas olhou e, realmente, parecia transtornado e desajeitado.
- Temos que ser um pouco tolerantes. Não faz nem duas semanas que ele começou. É o primeiro emprego dele.
Dênis tinha um ar pensativo. Na verdade ele já havia planejado toda aquela conversa detalhadamente, mas precisava fazer soar como um papo informal de verdade. Foi essa breve pausa que deu a deixa ao garçom, que abriu a caixa registradora, sacou apenas as onças-pintadas, colocando duas notas de vinte reais no lugar, e partiu pela porta dos fundos. Dênis deu um último gole em seu café quase frio, levantou-se lançando o dinheiro da conta sobre a mesa e saiu sem olhar pra trás.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Saudade

Espreguiçava-se lentamente e enquanto o edredon percorria o corpo quase nu. O cheiro de café começava a entrar pelo quarto e acordava num forte impulso. Quase conseguia sentir as mãos acariciando sua nuca. Colocou os pés no chão, abriu os olhos e olhou para o travesseiro intacto ao lado. Adorava a saudade, e ainda mais o cheiro que a trazia forte.

E passava todo o dia, o dia todo, com balas de café na boca. Os intervalos com nicotina tornavam o gosto forte ainda mais forte. 

Almoçava e ia à cafeteria próxima. A cada dia, um café diferente. Com limão, nozes, mate. Quente, frio, morno, batido, com chantilly ou chocolate. O gosto da lembrança a cada gole, que queimava a língua e aquecia o corpo no inverno gelado. 

A tarde voava entre reuniões e cafés ruins, mesmo que cafés. Chegava e antes mesmo que correr para o chuveiro, ligava a cafeteira. Quando saia, com a pele úmida e os cabelos molhados, inspirava o cheiro que já invadia a casa. Sorria, sentindo uma solidão bonita e melancólica. Se saudade fosse café, seria expresso e sem leite. Mas doce, muito doce. Como os dias e as lembranças que acompanham seu dia, todos os dias. 

Amargo

Olhava a xícara fumegante na sua frente, parada sobre a mesa. Via seu reflexo no líquido negro, estático. Uma lágrima corria lentamente pela maçã do rosto, até desprender-se da face e atingir com violência a então calma superfície líquida. As pequenas ondas circulares que se formavam desfiguravam seu rosto, mostrando a ele o monstro que era, mas que era visível apenas assim. De olhos vermelhos e inchados, refletidos na mais negra das superfícies.

Colocou a colher dentro do pote de açúcar e a despejou dentro da xícara, como que tentando disfarçar a queda da lágrima. Apenas uma colher, rala. Mexeu até os cristais dissolverem-se e deu seu primeiro gole. O gosto forte encheu a boca e queimou a língua, descendo fumegante pela garganta. Fez uma cara feia, tão treinada pelas doses de tequila consumidas aos pares, mas sempre sozinho.

Levantou o rosto pela primeira vez desde que se sentou naquele café de esquina, bonito e requintado. Seus olhos se encontraram com os da mulher no balcão, mas assim que ela fez uma menção de lhe tomar um novo pedido, ele desviou o olhar. Os olhos pousaram desta vez num casal que se sentava em um sofá mais à frente. Suas risadas eram apaixonadas, e sua visão mais amarga que o mais forte dos cafés.

Não conseguia fixar o olhar em ninguém. Não tinha coragem para assumir uma proximidade tão grande quanto a de um olhar retribuído. Voltou os olhos novamente ao seu café. Colocou a mão esquerda sobre o ombro direito e apertou. Sentiu o músculo tenso reclamar, mas ao mesmo tempo relaxou com aquele quase-abraço, aquela quase-massagem, aquele quase-carinho. Chacoalhou a cabeça, para tirar-lhe da memória.

Evitava, a cada instante, o pensamento nela. Ela, que freqüentava aquele café com ele. Ela, que nem era muito fã de café, mas adorava os salgados do lugar. Ela, que não gostava do cheiro da cerveja, fazendo com que ele se tornasse um amante de um bom café. Ela, que estava a duas quadras dali, mas a uma eternidade de distância dele. Ela, que se tornara tão amarga quanto aquele café.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Café, sangue e ouro

Longe, longe, trabalhar, trabalhar. Andar, pegar um ramo, puxar. Grãos vermelhos como sangue para beberem o suor do seu trabalho. Bebida negra, negra como a pele marcada. Cicatrizes de sonhos nunca realizados, de fuga e liberdade. Tão negros quanto o líquido que jamais beberá, os restos dos porcos revolvem em seu estômago enquanto trabalha. Do negror ao negror, sem descanso nos píncaros da claridade. Claridade que traz calor, calor e tontura, que o impede de pensar, tornando-o uma marionete ao chicote do feitor. Feitor claro como o sol irradiante, não conseguiria viver um dia sob este, por isso se esconde nas horas infernais.

Ele segue trabalhando, pois não consegue raciocinar. Sua mente alquebrada não compreende aquilo tudo. Não vê o mundo com olhos claros, para ele a vida é ser escravo. Mal se lembra de uma terra distante, do mesmo modo escaldante, onde o sol não sobe ao céu e é a noite que domina. Um mundo não tão diferente, de dor e sofrimento, apenas onde o negro é escravo, mas também senhor.

Ele fraqueja, arqueia pernas e se permite um segundo de descanso. Descansa olhando para a cesta, tão cheia de riqueza. Ao alcance de suas mãos, mas distante de seu cérebro. Não tem noção do que aqueles grãos fazem girar. Em um mundo já pequeno, seu esforço viaja oceanos para agradar a povos longínquos, planetas diferentes compartilhando o mesmo astro. Os senhores se refestelam em rios de café, sangue e ouro, enquanto o negro apenas pode suar. Suar e sorrir com dentes amarelados. Pois, diante de uma trilha sem saídas, lhe resta apenas renegar os sonhos e viver da realidade, sem se render à insanidade, e bailar ao som de antigos delírios tribais. Tribos sem nome perdidas no passado, em uma consciência que não recapitula ancestrais.

O feitor não se furta a enfrentar o sol para checar quem está parado. Ele volta a trabalhar com vigor, quando o sol se aproxima. O branco não enxerga humanos, cuida de seus animais como faria com as reses. Escravo e senhor, não se vêem como irmãos, pois sabem que não o são. Incompreendidos pela história, tanto Yin quanto Yang, condenados e beatificados em um futuro que não se importa com contexto. A mesma história em todos os tempos, tempos que se repetem, ciclos naturais. Café, sangue e ouro, dominador e dominado, um universo de desiguais.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O Último Café de Peter.

— Olá, Peter.
— Hã...desculpa, nós nos conhecemos?
— Sim, claro. Eu conheço você.
— Como assim?
— Peter, nós precisamos conversar. Você não se importa se eu me sentar com você, não é? Bom.
— Olha, amigo, desculpa mas... tem alguma coisa que eu posso fazer por você?
— Não, Peter. Infelizmente já não há nada que você possa fazer por mim. Nada.
— Então com licença que o meu café tá esfriando, beleza?
— Calma, rapaz. Eu só quero falar com você.
— Mas eu não tenho certeza se quero falar com você. Nem te conheço e você já vem sentando na minha mesa. Dá pra fazer o favor de escolher outra mesa? O lugar tá vazio. Escolhe qualquer mesa. Aquela lá perto da janela. Aproveita e aprecia a vista.
— Não. Eu prefiro aqui no canto. É bem mais aconchegante. E mais... discreto.
— Péra lá! Você não tá me cantando, tá?
— Ah, ah, ah! Não. Pode ficar tranqüilo, Peter. Não é nada disso.
— Você vem aqui, senta na minha mesa e começa a falar um monte de coisas sem sentido. Dá pra fazer o favor de explicar? Eu to tentando tomar o meu café em paz. Aliás, como você sabe o meu nome?
— Ah, Peter. Eu sei muitas coisas sobre você. Na verdade, acho que eu sei tudo sobre você.
— Olha, cara. Não sei qual é a sua, mas se você não vai trocar de mesa, me dá licença que eu vou...
— Sente-se! Sente-se e tome seu café. Você não vai a lugar nenhum.
— Eu, er... olha, quem é você? Se é dinheiro que você quer...
— Eu não quero dinheiro. Na verdade não quero mais nada de você. É por isso que estou aqui.
— Olha, senhor, eu não tô entendendo nada. Quem é você, como me conhece, como sabe o meu nome?
— Como eu disse, Peter, eu sei tudo sobre você. Do seu nome ao seu endereço. Sei que você gosta de duas colheres de açúcar no seu café. E sei que a segunda é sempre menos cheia do que a primeira. Sei que você vem aqui quase todos os dias ao fim da tarde, pede um café e fica lendo revistas. Eu sei tudo sobre você. Eu sei coisas sobre você que nem você sabe. Assim como no fundo eu sabia que eu dia nós teríamos que ter essa conversa.
— Quem, quem é você? Você tá me seguindo?
— Eu não preciso seguir você para saber dessas coisas. Peter, eu sou seu Criador.
— Meu o quê!?
— Eu sei que você não acredita em mim e acha que sou louco. Mas eu sei disso justamente porque eu o criei um cético. Fui eu quem criou você e todo esse mundo a sua volta.
— Você quer dizer... você é... Deus? Rá! Eu devo estar maluco!
— Hum... É, talvez seja assim que você me veja. Eu não esperava esse ponto de vista... Mas, não. Eu não sou Deus. Sou simplesmente seu Criador.
— Criador? Como assim?
— Esse café que você está tomando, você próprio, até esse corpo que eu estou usando agora. Tudo isso é obra minha. Minha criação. Você é minha criação. Eu criei você!
— Ih, acho que não, hein! Quem me criou foi minha mãe, lá no Paraná.
— Tem certeza?
— Claro que sim. Do que você tá falando?
— Essas suas lembranças... da sua infância, do seu passado... você tem certeza que as viveu? Que elas realmente aconteceram?
— Claro, ué? Você acha que eu inventei isso?
— De forma alguma. Eu sei que você não inventou nada. Eu as inventei. Fui eu quem criou essas suas memórias, o seu passado. Fui eu quem lhe implantou essas lembranças. Lembranças que você tem, mas jamais viveu. Lembranças que eu criei e lhe dei.
— Hã?
— As suas lembranças de criança, por exemplo. Cada passo seu foi arquitetado por mim. Eu criei essas lembranças para que você tivesse um passado. Peter, você nunca foi criança. Você nunca teve que aprender a andar, você nunca quebrou seu braço quando caiu do trepa-trepa na segunda série. De fato, você nunca caiu daquele trepa-trepa. Que por sinal, também nunca existiu. São apenas lembranças. Um passado criado por mim para você. Para que você tivesse uma história.
— Do que você tá falando?! Você fez alguma coisa comigo? Algum tipo de experiência? É isso? Eu sou só um rato de laboratório pra você?
— Não, não. Não foi nenhuma experiência. Essas lembranças já foram criadas com você. Veja: você não poderia existir sem um passado, sem uma história. Ninguém simplesmente existe. Por isso quando criei você também criei a sua história.
— Tá. Você não é Deus, nem um cientista e também não parece nenhum alienígena que me abduziu. Quem é você, afinal?
— Seu Criador.
— Meu Criador.
— Seu Criador.
— E você também criou todo o resto.
— Tudo que você conhece.
— E você quer que eu acredite nisso?
— Você não precisa acreditar. Mas sim, eu gostaria que você entendesse.
— Como é que eu vou entender? O que é o “Criador”, afinal? Você é um tipo de força superior que criou a existência e agora está aqui tomando um café comigo.... peraí, da onde veio o seu café? A moça não trouxe.
— Não ela não trouxe.
— Então...
— Sim. Eu criei isso também.
— Por quê?
— Porque eu gosto de café.
— Não, não. Porque você me criou. Porque você criou o mundo, a existência, sei lá. E o que você tá fazendo aqui?
— Na verdade o princípio é o mesmo. Eu criei tudo isso porque eu gosto. Porque me dá prazer. Assim como esse café. Porque simplesmente gosto de criar.
— Então eu só sou um joguete num teatro cósmico?
— Meio melodramático, você, não?
— Ué, não foi você que me criou assim?
— Talvez eu tenha exagerado na dose de sarcasmo. Mas sim. Que bom que você está começando a compreender.
— Tudo bem. Digamos que eu engula esse papo todo, que você me criou, criou a existência...
Essa existência. A sua existência.
— Então existem outras?
— Mas é claro! Uma infinidade.
— E você criou todas elas?
— Não, não. Apenas algumas.
— E quem criou as outras?
— Não sei. Algumas delas foram criadas por outros como eu. Mas outras, ou ao menos outra, não sei quem criou.
— Outra? Você quer dizer a sua?
— Isso.
— Então existem outros como você e outros ainda acima de você nessa história de criação, de existência e tudo mais?
— Creio que sim, mas não sei se há como ter certeza.
— E eu? Então eu sou a base da pirâmide? O último elo da cadeia?
— Não necessariamente. Você também poderia ser um Criador.
— Como assim? Tipo ter um aquário de peixes?
— Não, nada disso. Veja: com um aquário, você estaria dando condições dos peixes viverem em um ambiente. Mas você não criou os peixes. Você apenas os colocaria no aquário.
— Então como?
— Você gosta de ler, certo?
— Certo.
— Qual seu escritor favorito?
— Você já não deveria saber isso?
— Eu já sei: Pedro Mondebaján. Só estava tentando criar um clima de conversa normal.
— Desculpa aí, seu Criador, mas de normal essa conversa não tem nada.
— Tem razão, deve ser bem estranho para você. Voltemos ao seu escritor favorito então, que também é uma criação minha, se é isso que você está imaginando.
— Ele é?
— É, mas isso não vem ao caso.
— Quando Mondebaján escreve suas narrativas, ele cria sua própria história. Seu próprio universo, seus personagens, as personalidades destes personagens, toda aquela existência.
— Quer dizer que se eu escrever uma narrativa, eu também seria um Criador?
— Exatamente. Dentro daquele pequeno universo, daquela pequena existência, você seria o Criador. E seus personagens provavelmente veriam você assim como hoje você me vê.
— Então os personagens de Pedro Mondebaján são criações dele? E ele é o criador daquele universo?
— Em teoria. Mas veja, Pedro Mondebaján também é minha criação. Assim como a personalidade e a história dele. Logo as histórias criadas por ele, são na verdade, minha criação. Entendeu?
— Putz, pior é que entendi. Então, se eu criar alguma coisa, um romance por exemplo, eu seria o Criador daquele universo, certo?
— Isso.
— Mas se, como você disse, você me criou, a minha imaginação, os meus anseios e personalidade, também seriam fruto da sua criação.
— Você está pegando o jeito, Peter.
— Logo as minhas criações são na verdade, suas criações!
— Hum, de certa forma...
— Logo eu não posso ser um Criador, porque minhas criações na verdade são suas.
— Raciocínio interessante...
— Você parece surpreso.
— Na verdade estou um pouco.
— Mas como? Se, teoricamente, foi você quem me criou? Você deveria saber que eu chegaria a esse raciocínio. Ou não?
— Não sei... Talvez de alguma forma, as criações tenham certo livre-arbítrio afinal de contas...
— Tipo, um destino não traçado?
— Mais ou menos. Como se os personagens que criamos para viver as histórias criadas por nós, tivessem alguma forma de vida própria, uma pseudo-independência.
— Você quer dizer que a relação é mais ou menos essa? Tipo, você como Criador, é como se fosse um escritor e eu, supostamente sua criação, seria um personagem que vive uma história que você criou?
— Exatamente. Finalmente você entendeu.
— Bom, confesso que ao menos é uma analogia interessante.
— Não é não.
— Não é?
— Não.
— Por quê?
— Porque não é uma analogia.
— ?
— Não é como se um fosse um escritor e você meu personagem. É exatamente isso. Você é um personagem. Não há analogia alguma nisso. Nenhuma metáfora nem qualquer outra figura de linguagem. Você é um de meus personagens.
— Você quer dizer que você é um escritor e eu sou um personagem criado para algum romance.
— Um texto, na verdade. Um diálogo de poucas páginas. Não sei se vai ser uma peça, um conto ou só mais um arquivo perdido no meu HD. Mas definitivamente não um romance.
— Então quer dizer que eu não existo?
— Olhe a sua volta. É claro que você existe!
— Mas eu sou real?
— Se você pensar bem, o que é real? A cor da minha roupa, por exemplo, chega a você através dos seus olhos, que enxerga os raios de luz refletidos nela como sendo marrons. Mas na verdade, você não tem como dizer se ela é de fato marrom, tem?
— Acho que não?
— Claro que não. Mas você diz que é real. Veja, quando eu coloco a sua colher dentro deste copo com água, (não faça essa cara. Eu já criei uma xícara de café na sua frente. Qual o problema de criar um copo d’água?) ela parece estar partida. Os seus olhos a enxergam partida. Mas será que ela realmente está?
— Ilusão de ótica?
— A idéia é essa. Mas estenda o conceito a todos os sentidos. A tudo. Digamos que assim como os seus olhos podem lhe enganar e faze-lo perceber as coisas diferentes, todos os sentidos façam o mesmo. Logo você não poderia saber se uma parede realmente é lisa, se o café realmente já esfriou, se seu cheiro realmente continua exalando ou se os sons que você ouve, são realmente como você os ouve. Dessa forma, o que é real?
— Não entendi.
— Você é tão real quanto qualquer coisa. Afinal, ninguém sabe o que é realmente real. Depende de como você, e qualquer objeto, interage com o universo no qual está inserido.
— Então nada é real.
— Nada, tudo. Qual a diferença? O que importa é que você é tão real quanto qualquer coisa.
— Tanto quanto qualquer coisa neste universo, nessa existência, você quer dizer.
— Pode ser.
— Bom, se eu sou seu personagem, você deve ter me criado para viver alguma história.
— Certamente.
— Que tipo de história?
— Esse é o problema. Na verdade é por isso que eu queria falar com você desde o começo.
— Sobre a minha história?
— Na verdade o problema é que não há história. Não consegui criar nenhuma história para você. Estou sem idéias. Pode chamar de um “bloqueio”.
— Como assim? Tem que ter uma história, não tem? Não pode ter um personagem sem uma história, pode?
— Receio que não, Peter. Sinto muito.
— O que quer dizer? Que cara é essa?
— Receio que sem histórias não possam haver personagens.
— Ei! O que você vai fazer? Péra aí!
— Sinto muito. Não é algo que eu queira fazer, Peter. Mas toda história precisa de um ponto final. Mesmo essa.
— Espera! Não!
— Adeus, Peter. Sinto Muito.

FIM.

Tema: Café

E o tema da próxima rodada é Café.

Duelistas têm até o dia 16 de fevereiro para postar os textos. 

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Votação - Casamento

Está aberta a votação para os textos com o tema Casamento.

Você tem até o dia 10 de fevereiro para votar.

Participe!

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A Noiva

Depilou as pernas cuidadosamente. Fez o mesmo embaixo do braço. Penteou os cabelos para trás e prendeu com um grampo. Colocou a meia calça branca, e a prendeu com um laço branco no topo da coxa esquerda. Vestiu a lingerie sexy, também toda branca, comprada especialmente para a noite de núpcias. A cinta liga, o espartilho, tudo meticulosamente bem cuidado.

Olhou-se no espelho e se maquiou. Maquiagem prata, para combinar com a ocasião. Casamento é uma só vez na vida, a noiva precisava estar impecável. Abriu o armário e perdeu-se olhando para o belíssimo vestido. Vestiu-o e sentiu que ficava meio apertado, justo demais. Mesmo assim, não perderia o glamour por nada nesse mundo.

Teve alguma dificuldade em subir no salto alto, e para colocar o véu sem usar ajuda de ninguém. Estava deslumbrante. Não existia nenhuma noiva mais bonita, para seus olhos.

Passou o batom vermelho e deu uma volta olhando-se no espelho, quando percebeu que alguém abria a porta, que havia esquecido de trancar.

- Nelson, o que é isso?

Glorinha soluçava enquanto corria pelas escadas, apavorada com a cena que acabara de ver. Nelson tentou correr atrás dela, para explicar que era tudo um mal entendido, mas não conseguia correr por causa dos saltos. Nunca ninguém soube o motivo de o casamento entre Glorinha e Nelson ser cancelado naquela noite.

Uma breve discussão

- Foi tudo um erro.
- Sim, eu sei.
- Não devíamos...
- Sim, sim, eu sei.
- E agora, o que faremos?
- Ah, isso eu não sei.
- Vamos nos sentir culpados por muito tempo?
- Talvez. Ou só até chegar a hora de decidir de novo.
- É isso que eu detesto na vida. Sempre temos que tomar decisões.
- Mas claro, geralmente as suas são equivocadas mesmo.
- Na hora me pareceu sensato.
- Bem dito. Na hora. Naquela hora.
- Tudo bem, na próxima vez eu presto mais atenção nas possibilidades.
- Isso. E não se deixe levar pela aparência ou pelo prazer imediato.
- Sabes que sou imediatista mesmo, né?
- Por isso mesmo devias pensar um pouco mais antes de decidir.
- Ok. Não quero mais discutir.
- Sempre acaba nisso. Fugindo pra não dar o braço a torcer.
- Mas que tava gostoso. Ah, se tava!
- Moça! Moça. Me dá mais um casadinho.
- Pronto. Começou a repetir os mesmo erro. Depois quem ouve sou eu.

União

Ele, negro como as noites eternas de uma noite polar
Como as profundezas misteriosas de um imenso mar
O pano de fundo do palco onde as galáxias bailam
Os monstros incognoscíveis que a tudo devoram

Ela, alva como as neves eternas de uma crosta polar
Como os resplendores misteriosos de um roto quasar
O pano de fundo do palco onde as palavras bailam
Os sonhos incompreensíveis que a tudo deformam

Um casamento perfeito, na alma e no peito
Um uno de opostos, mesclado e perfeito
Reunidos até o pó, salpicados em diamantes
Consumidos sem dó, entre pobres e galantes

A não história

A música que você não fez sobre o nosso amor que nunca existiu foi minha trilha sonora todo o dia. Senti uma saudade quase louca de todas as noites que eu não passei olhando você dormir e da sensação de paz que nunca senti ao teu lado. Vi as fotografias que não tiramos das viagens que não fizemos e senti saudades do cheiro da sua nuca. 

Lembrei daquela festa bacana que nós não fizemos. Os amigos que não tivemos, o som que não ouvimos juntos e os cafés bacanas que nunca concretizamos. E aquele casamento? Acho que a festa do casal de melhores amigos que nunca tivemos foi a festa mais divertida da nossa falta de história. Sua gravata e meu vestido, que nunca existiram, combinavam tanto quanto o seu gosto musical e o meu.

A cara que você não fez no primeiro dia que você acordou na minha casa que nunca existiu não poderia estar de fora dessas lembranças. Aquele dia das horas se espreguiçando que nunca existiram, da guerra de travesseiros que não tivemos e da decisão que não tivemos de assistir um dos filmes que nunca compramos comendo um dos brigadeiros que você nunca fez.

Impossível esquecer também aquele show que você não fez. A sua declaração de amor de que nunca existiu seguida dos versos que você nunca cantou e o público, aquele público que nunca esteve em lugar algum, aplaudindo quando eu disse sim ao seu pedido que não existiu. Aí eu lembrei sabe do que? Daquelas pegadas que não ficaram na areia no dia que nos não trocamos alianças do nosso jeito, sozinhos e com todo amor do mundo, que nunca sentimos. 

Eu lembro perfeitamente da nossa casa que nunca existiu. Os quadros que nunca tivemos dos nossos ídolos misturados com os discos, filmes e livros que eu nunca soube se eram meus ou teus, e que no final nunca foram de ninguém. A nossa vontade que nunca existiu de aproveitarmos o nosso final de semana em casa recebendo amigos, comendo pizzas assistindo as comédias nacionais que nunca vimos.

E aí, quando me bateu um medo violento do mundo, seu abraço que nunca existiu era o único capaz de conseguir me fazer acreditar. O jeito intenso de me fazer perceber que você sempre estaria ali nunca foi sua marca mesmo. E eu levava o computador para a cama grande que nunca tivemos e nós escrevíamos juntos aqueles textos bonitos que nunca existiram. 

Lembro exatamente do dia em que eu não descobri que você seria o homem perfeito pra mim. Quando eu não peguei na sua mão, nem olhei no fundo dos seus olhos que não pareciam ainda mais azuis, e não disse que te amava. De quando você não me pediu perdão por ter medo de amar, mas não falou que mesmo assim não queria mais viver longe de mim. 

Nossa história é aquela que nunca existiu. É uma quase não história. Mas eu vivi na cabeça tantas vezes cada um desses momentos, que eu até esqueço que só aquela que eu não fui, acompanhada daquele que você nunca foi, seriam capazes de viver um conto de fadas de verdade.

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Escrito em 03/12/2008.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Casório

O verão sempre foi quente naquela cidadezinha. Enfiada num buraco cercado de montanhas, vento também não havia para aliviar o meu calor. Suava às bicas, tinha os cabelos grudados na testa por baixo do chapéu claro e o suor me corria salgado pelos bigodes. Um calor dos diabos, como só fazia lá. E nós ali, esperando do lado de fora da igreja. Deus que me perdoe tamanha falta de respeito, mas eu juro por todos os meus santos que me deu uma vontade braba de aplacar a sede na pira de água benta; fresquinha, abençoada que nem se fora do rio Jordão. Sabe lá o Senhor o esforço que fiz pra me conter. Mas era o grande dia e padrinho que é padrinho não ia se deixar abater pelo calor. Mesmo que aquela gota maldita insistisse em continuar escorregando pelas minhas costas.


Acordaste com os olhos ardendo pela luz que entreva pelas cortinas abertas. O estômago ainda embrulhado dos gin tônicas da noite anterior. E das cervejas. E também das doses de tequila. Na boca o gosto do sal e de algo entre sebo e cabo de guarda-chuva, ainda que nunca tenhas provado da iguaria. O quarto cheirava a anteontem, uma mistura de cinzeiro, bebida e suor. Tinhas suado a noite toda e o sol da manhã já te cozinhara ao ponto de te acordar. Por que o maldito verão era sempre tão quente? Descolaste a cabeça da fronha molhada e o movimento trouxe uma breve náusea e uma dor de cabeça infernal. Parecia que tinhas um sino dentro da cabeça. Um sino! Olhaste para o smoking pendurado na porta do guarda roupa, estavas atrasado. Terrivelmente atrasado.


As crianças berrando no quintal pareciam não se importar com o sol que castigava a casa suburbana. As árvores ao redor ajudavam um pouco com a sombra, mas o telhado sem forro transformava a casa num forno. Divertia-se sem camisa lendo a página de garotas de programa, recheada de kellys, amandas, completas e turbinadas. Riu com uma pena daquelas meninas perdidas, precisando de um caminho mais reto, inda que duro. Mas a salvação, aprendeu, vinha a muito custo. Olhou o relógio da sala, na penteadeira ao lado da Palavra. Fez o sinal da cruz em respeito, ao passar os olhos pelo tomo, mas viu que devia apressar-se. Foi em busca da mulher, que até agora não havia trazido as roupas prontas.


Deu um grito alto, pra ver se ela aparecia logo, mas não teve resposta. Foi ao quarto pra ver se ao menos ela tinha separado o terno. Nada dela. Nada do terno. Era só o que faltava. Não pretendia atrasar-se. Deu mais um grito deixando o cômodo. Chegou à cozinha e nada da infeliz. Só uma panela apitando louca, competindo com a algazarra do jardim. Com a barulheira, nem adiantava gritar. Foi ao jardim mandar as crianças se calarem, ou que fossem procurar a mãe. Lá fora é que foi achar a esposa. Sentada nos degraus da escada.

— Mas por Deus, mulher! Onde tu tava que não veio com as roupa pronta?!
— Eu já ia levar. Tá tudo pronto na lavanderia. Só tava terminando de lustrar os sapato.
— Ora, me dá isso aqui que não tenho tempo pra perder. E anda pegar lá as roupa que já tô atrasado. Onde já se viu chegar assim tarde na cerimônia?


Passaste correndo por baixo do chuveiro. Só o suficiente para a água gelada lavar o suor e carregar o cheiro para o ralo. As gotas caiam retumbantes na cabeça, parecendo fazer eco dentro do crânio. O sabonete parecia áspero à pele. O estômago, por um momento ao menos, tinha melhorado. Desligaste o chuveiro e passas-te à toalha, que lembrava uma lixa às costas e uma betoneira à cabeça. Usaste uma dose maior de desodorante, para disfarçar qualquer odor remanescente, e sentiste o estômago revirar ao cheiro. Seguraste a respiração para borrifar o perfume ao redor do pescoço. Mesmo assim, dessa vez, com o cheiro o estômago se rendeu e inundaste a pia ali mesmo, com uma mistura quase toda líquida, que bem poderia abastecer teu carro e fazê-lo pegar. Por sorte, com a ausência de sólidos, a pia logo esvaziou-se. Escarraste uma vez, preparaste a escova de dentes e, para disfarçar melhor, aplicaste uma boa dose de enxaguante bucal. Depois de tudo, já de smoking, mal se percebiam as olheiras. Estavas pronto, apresentável, mas ainda atrasado. A caminho do carro sacaste o celular com os olhos ardendo sob o sol forte.


Eu juro por tudo quanto me é sagrado que, Deus que me perdoe, se não tivesse tanta gente ali eu já teria bebido a água benta. Misericórdia! Já estava me preocupando com o horário. Leopoldo deveria estar chegando. Aliás, não demoraria a própria noiva chegaria. O meu celular tocou por baixo do terno cáqui. Levantei a aba para pegar e pude ver a rodela de suor embaixo do braço. Agora mesmo é que eu não poderia tirar o terno. Peguei o celular pra ver o nome de Leopoldo piscando. “Chegas logo?”, perguntei.

— Atrasei-me!
— Isto percebo eu — respondi.
— Elisabete chegou?
— Ainda não, mas não tarda. Quase todos estão aqui.
— Não deixe que chegue antes de mim. Estou a caminho.
— Que queres que eu faça? Que me atire em frente ao carro?
— Se preciso for. Estou a caminho.

Desligou sem despedir-se. Havia atrasado de nervoso, decerto. Estas incertezas sempre abatem-se aos quase noivos. É o que dizem, ao menos, os mais experientes. Não bastasse o calor, tive de descer a ruela que ligava a entrada da igreja à rua principal e, sob o sol que só arde daquele jeito no vale, me pus a esperar o sedan da noiva. Ajeitei o chapéu para que o sol não me ofuscasse mais, aliviei-me do terno, que ali já não havia mais ninguém a esperar — que ninguém em sã consciência o faria sob tal sol — e afrouxei só um tiquinho a gravata, que tinha medo de desfazer o nó e não conseguir refazê-lo.


Vestiu o terno cinza, ajeitou a gravata vinho sobre a camisa clara, penteou os cabelos com gel e calçou os sapatos lustrados. Usou o lencinho de lapela para enxugar um fio de suor que escapou pela costeleta decepada. Conferiu a Bíblia com os marcapáginas já encaixados. Passando pela cozinha a mulher perguntou-lhe:

— Vai demorar a cerimônia, lá? Vai vir almoçar, né?
— Ah, é! Vou almoçar lá. Aproveitar o bufê.
— Mas podia ter falado, homem de deus, que eu não preparava tudo.
— To falando agora. Vou comer lá.

E saiu porta a fora só pra ver as crianças correndo em sua direção rindo, com as mãozinhas levantadas para ele.

— Não! — gritou. — Não vão sujar o terno que acabei de colocar. — Continuou, esquivando-se da primeira criança.
— E chega dessa gritaceira. Vão pra dentro já!

Nem ouviu o muxoxo das filhas enquanto caminhava para o carro. O veículo deixou para trás um rastro de poeira e fumaça no ar enquanto o subúrbio ia ficando para trás. Na traseira, na lataria, o símbolo de um peixe feito com dois arcos cromados.


O sedan preto virou a curva lá atrás e veio na minha direção. Pensei numa desculpa enquanto colocava o terno e esperava o carro embicar na ruela que levava à igreja. Tirei o chapéu em cumprimento e o carro parou ao meu lado. O vidro baixou e eu me reclinei na janela para falar com o motorista. A brisa que escapou lá dentro foi com um sopro do bom deus. O ar condicionado me acertou no rosto como um beijo mágico e eu quase enfiei a cabeça toda janela a dentro. No banco de trás Elisabete estava bastante bonita, com o vestido branco, bem maquiada e envolta por aquele ar fresco e revigorante. Vestia ainda um sorriso de alegria sincera mas o olhar deixou escapar uma centelha de dúvida ao me ver. Foi então que me dei conta da expressão do motorista, seu pai, mais de dúvida que de alegria, ao me ver ali a barrar o caminho à igreja.

— Bom dia, seu Alfredo, Dona Marta, Elisabete. Chegou o grande dia então!
— Estão todos nos esperando? — perguntou seu Alfredo, com uma flexão inconfundível no todos.
— Todos, mas nós só vamos ter que dar uns minutos a Leopoldo para que se recomponha ao chegar. Acabou de trocar o pneu a duas quadras daqui, que furou. Mas já está a caminho.

Um “coitadinho” escapou do banco de trás, uma cara de pena do banco do passageiro e do banco do motorista nada.

— Só mais uns minutos que ele logo chegará, daí mais uns cinco minutos para que se recomponha e tudo estará acertado. Porque não estacionam naquela sobra sob a árvore? Faz um calor dos diabos aqui fora.

O vidro da janela tornou a subir e o sedan se movimentou em marcha lenta até a sombra. Saquei do celular novamente, agora mais suado pelo nervosismo, e disquei o número de Leopoldo.


Aceleravas trocando de faixas sem dar sinal. Furaste o último sinal ao ver que não havia muito movimento. Já vias a torre da igreja com o relógio acusador quando o celular no console tocou. Dirigindo com uma mão, atendeste a ligação. Do outro lado a voz familiar:

— Estavas a trocar pneus.
— Ótimo, já estou virando a quadra. Chego em dois minutos.

Antes de virar a última esquina encostaste o carro e, sem desligar o motor, saltaste para tirar a calota da roda dianteira direita, e a jogaste no banco de trás. Tornaste a entrar no carro e contornaste a curva para ver, mais adiante, o sedan preto sob a árvore, e uma figura esguia de branco na esquina da ruela da igreja.


Desliguei e acenei um sorriso amarelo ao olhar que me mirava pelo retrovisor esquerdo do carro preto. Não demorou e o carro de Leopoldo despontou mesmo à esquina. Passou em velocidade normal e fez um aceno breve para o sedan. Olhou-me com um sorriso ao passar por mim e subi a ruela logo em seguida. Antes, me virei para o motorista-pai-da-noiva. Com o indicador bati duas vezes no meu relógio e mostrei os cinco dedos da mão espalmada.


Já estava ficando impaciente. Os convidados na porta conversavam mas ele ouvia apenas a carola repassando as músicas no teclado eletrônico de batida pré-programada. O estômago roncava e as pernas se cansavam. Ao menos na nave era mais fresco e os ventiladores afugentavam o pior do calor. Olhou em reprovação quando viu o jovem de smoking chegar apressado acompanhado pelo outro de roupas claras. Nem se dignou a tirar o chapéu na Casa do Senhor! Foram à recepção da igreja e fecharam a porta. Distraiu então o pensamento observando de forma discreta os vestidos floridos de alguma jovens senhoras mais próximas.


— Estás louco? É teu casamento, por deus! O que estavas pensando?
— Desculpe. Atrasei-me, apenas. Está tudo bem agora. Como estou?
— Estás bem melhor que eu, que tive que esperar-te neste sol de rachar cocos na companhia do teu sogro.
— E Elisabete como está?
— Está bem. Alegre. Bastante bonita e feliz.
— Ótimo. Deixe que eu vá cumprimentar as tias e parentes e vamos começar logo com isso.


Passaste cumprimentando tias e primas e primos e tios e sobrinhos e amigos e parentes. Mais dela do que teus. Todos maquiados, purpurinados e arrumados para o grande dia. Viste a nave guardada pelo pastor de gravata vinho e cabelo engomado, meio impaciente. E foste te preparar para tua entrada.


Observou os convidados se assentarem e a igreja silenciar para dar sinal à velha do teclado. Ouviu a música soar, encobrindo o ronco do estômago, e a igreja inteira levantar-se, inclusive as jovens senhoras de vestidos floridos. Da porta principal viu a delegação de testemunhas, noivo, mães, damas de honra chegarem. A marcha nupcial trouxe a noiva em um vestido branco com um decote discreto mas que, do alto do altar, já propiciava uma visão satisfatória. Pregou como se falasse realmente com os noivos, sem tirar os olhos deles — especialmente da noiva, que excepcionalmente bonita não era, veja bem, mas trazia uma bela maquiagem e vestido condizente — o que deixou as futuras sogras lisonjeadas. Pregou sobre o casamento e a comunhão, sobre tornar-se um só espírito. Sobre a fidelidade, de corpo e pensamento, sobre auxiliar-se mutuamente. Pregou sobre filhos e como estes devem ser amados no seio — seio! — da família.


O discurso não terminava...


O discurso não terminava...


...e eu não conseguia parar de olhar pra pira de água benta, fresca, jordaniana, sagrada para aplacar minha sede.


...e tu já pressentias a dor de cabeça que começava a despertar. Ao menos o estômago, já vazio, havia parado um pouco de reclamar.


Finalmente mandou que os noivos se beijassem. Viu os presentes aplaudirem e todos se prepararem para deixar a igreja, depois de muitas congratulações. Fechou a Bíblia, virou-se para a cruz atrás de si, fez o gesto sacro e retirou-se à sacristia, pensando em quais iguarias encontraria no bufê, visto que suas funções sagradas haviam terminado — e muito bem cumpridas, sim senhor.


Despediste-te dos convidados, do teu padrinho e dos pais de ambos com um “até a recepção”. Tomaste tua noiva pela mão e entraste no carro com ela. As latas amarradas no parachoques fizeram um estardalhaço que te fez badalar os sinos da cabeça. Tua agora esposa deu-te um beijo no rosto, ao pé do ouvido, e com uma cara que não pudeste compreender disse:

— É gliter, que tens no pescoço?
— Deve ser, cumprimentei tuas tias há pouco — respondeste rapidamente.


Fiquei assistindo o sedan preto dobrar a ruela e acenei com o chapéu, só para sentir o sol escaldar-me os miolos. A maior parte dos convidados já se ia para a recepção atrás do carro e achei por bem fazer o mesmo, afinal padrinho que é padrinho não se atrasa para a recepção dos noivos. E o sol também já me fazia suar embaixo do terno novamente. Antes de ir, claro, fui benzer-me, que modos me ensinaram para deixar a igreja. Bom deus não me permita deixar a Casa do Senhor sem fazer o sinal da cruz com água benta.