sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Macunaã

Lá estavam eles novamente. Na campina roçada, sentados em frente àquelas duas toras amarradas. Macunaã não entendia aquela gente. Cantavam com uma tristeza doída. Não como seu povo, que cantava alegre e dançante. Era um canto grave, solene, lamurioso. Um canto triste que choramingava para o homem de chapéu pontiagudo que segurava alto aquele artefato retangular que eles curiosamente veneravam.

— É a Palavra — diziam. Mas Macunaã não entedia. Como se pega a palavra? E porque ela deixava aqueles homens tão tristes?

— É na Palavra que mora Deus — explicavam. Mas Macunaã ainda não entendia. Porque aquele deus deixava os homens tão tristes?

Os deuses de seu povo o deixavam alegre. Com a chuva, com o vento, com comida em abundância. E seu os veneravam felizes, com danças, festas, músicas. Seus deuses não vivam em artefatos tão pequenos. Viviam nas grandes árvores, nos rios, no céu e entre animais. Eram deuses livres. E então Macunaã compreendeu. Ele também ficaria triste se seu deus ficasse preso para sempre. Deuses devem ser livres.

À noite, esgueirou-se silencioso entre as tendas dos homens-de-longe e tomou o pequeno cárcere onde aquele deus triste estava preso. Foi para a campina, onde os estrangeiros oravam pelo seu deus-refém, determinado a libertá-lo para alegria dos visitantes.

Colocou no chão o objeto que se assemelhava a um pequeno caixote, em cuja tampa escura cintilavam dourados ornamentos. Mas não era de madeira ou de barro, nem osso ou pedra. Era macia, como um punhado de folhas retangulares sobrepostas. Só aquela tampa ornamentada era um pouco mais grossa que as demais. Arrancou-a com força esperando ver aquele deus encarcerado lançar-se ao ar; mas nada aconteceu. Notou, no volume que restou, intrincadas pinturas diminutas. Mas na escuridão da campina sem luar era impossível distinguir qualquer sinal. Acendeu uma fogueira e aproximou aquele incomum artefato das chamas. Então pôde ver que as pinturas se repetiam. Mas onde estaria aquele

— Deus! Ele vai queimá-la! — O grito do batedor alertou os jesuítas e capitães-do-mato, que viram chocados o selvagem que destruía as Sagradas Escrituras.

O estrondo do mosquete disparou ruidoso e o cheiro da pólvora tomou a noite na campina envolvendo os europeus. Aos pés das duas vigas cruzadas Macunaã jazia com a bíblia na mão. Não pôde libertar o deus dos visitantes, mas naquela noite, visitaria os seus.

2 comentários:

Unknown disse...

uau! que soturno!

Fábio Ricardo disse...

boa visão da religião, pelo povo que mesmo oprimido, quis ajudar e fazer parte da nossa história.