segunda-feira, 31 de março de 2008
Novo tema: Amnésia
Tema: Amnésia.
Os participantes têm até o dia 6 de abril para postarem seus textos.
quarta-feira, 26 de março de 2008
Votação
É só comentar este tópico de votação até o dia 30 de março.
Walden III
26/mar/2008
Nasceu em um círculo social meio perturbado. Cercado de intelectuais e intelectualóides, aos cinco anos já tinha ouvido falar em diversos conceitos que, talvez, nem os adultos à sua volta compreendessem. Mas eles gostavam de falar sobre aquilo. E principalmente de fingir que entendiam muito bem cada conceito. Era semiótica pra cá, positivismo pra lá, e por aí trilhavam o caminho da mediocridade pseudo-intelectual. Obviamente, alguns daqueles seres sabiam o que estavam falando, mas a maioria era só pose mesmo.
Aos seis anos, aprendeu a escrever e resolveu que criaria sua própria utopia. Começou: “Para uma jovem mente livre como a que vos escreve, nada pode ser mais utópico que uma Páscoa que dure o ano todo. Ganharíamos chocolates e nos esbaldaríamos com o delicioso sabor dos mesmos. Vale lembrar que na Espanha não existem ovos de Páscoa, logo a Espanha não é um bom lugar para crianças”. Entregou o manuscrito aos adultos e saiu sorrindo, esperando que eles percebessem que estavam na semana santa.
Páscoa
A Páscoa é o cúmulo do nonsense...
Sentimento de Páscoa
É nas horas que eu percebo como tudo na nossa vida é de mentira. E, porra, a Páscoa é só mais uma delas. Os ovos são chocolates, os coelhos não são coelhos – nem nunca foram -, a semana santa não tem nada de santa (e parece até que os diabos envolvem as pessoas de forma ainda mais conquistadora). Ainda não acredito que existem pessoas que não se rendem aos prazeres da carne.
Pelo menos os ovos podiam ser de verdade pra todos, se é que vocês me entendem.
Sobre a Páscoa e outros bichos (as)
Tem um homem sentado no meu sofá da sala, comendo chocolate. Eu não sei o que é pior nesse caso: passar o domingo inteiro comendo chocolate, ou começar uma frase com “tem um homem”.
O fato é que já passam das quatro da tarde e eu ainda não almocei. Tô aqui, sentado, comendo chocolate. E essa merda faz uma sujeira danada. Quando dei a primeira mordida, um pedaço de doce já se soltou do restante e caiu bem no meio das minhas pernas. Nesse movimento de cruza-e-descruza, já estou com uma mancha marrom bem do lado do saco.
Eu admito, que apesar disso tudo, me considero um cara bem inteligente, dono de minhas próprias decisões. Mas é uma merda entrar no supermercado nessa época do ano, com aquele monte de ovo pendurado sobre as nossas cabeças e a gente lá, com cara de pato, olhando pra cima até arrumar um torcicolo. É pior que Natal! No Natal, pelo menos, eles tentam nos empurrar tanta coisa que fica mais fácil de negar. Já na Páscoa, é simplesmente chocolate para tudo quanto é lado. É praticamente impossível não comprar ao menos um. Impossível também achar um por menos de R$ 20.
Mas o lance é que eu fui ao supermercado comprar um maldito chocolate para o meu vizinho. Pedi o cortador de grama dele emprestado faz uns três meses. Estraguei aquela porcaria quando passei com a lâmina em cima de uma latinha de cerveja que estava escondida no meio do mato. Ela me fodeu a canela também, mas o pior foi o cortador. Prometi que ia consertar, mas até agora nada. Daí que me sinto culpado. E daí que com essa merda de modo de ver a religião que a gente tem hoje, me convenci que para não me sentir tão culpado eu tinha que dar um ovo de chocolate pro cara.
A merda maior é que acabei comprando um pra mim também. Agora tô aqui, gordo, todo babado e com uma mancha marrom do lado do saco. Parece até que tô cagado.
Mas é engraçado esse lance de Páscoa. Porra, o mundo tá cada vez menos cristão. Sério, é foda. O pessoal fala de Páscoa, o lance da ressurreição, mas só quer saber mesmo de ovo de chocolate. É só reparar: ninguém mais dá bola pro que está escrito na Bíblia. Sem contar que o mundo é dos viados, cara. Isso é totalmente não cristão. Pode ver, os caras mais fodas e admirados que a gente lembra são todos viados. Tem o Freddie Mercury, o Cazuza, o Renato Russo, o Almodovar, o Andy Warhol, o Bill Gates. Porra, será que o Bill Gates é viado? Acho que não faz muita diferença mesmo, já que nerd não come ninguém. Mas ta aí, a nossa Páscoa é isso. Um monte de chocolate, um monte de viado e nada da porra da ressurreição. Ah, merda, mais um. Agora, além da calça, tenho que ir lá trocar a camisa também.
terça-feira, 25 de março de 2008
A Páscoa do Faraó
Era meia-noite quando um som rompeu o silêncio do palácio. Potoc, po-toc. Potoc, po-toc. Lento, constante, se aproximando. Potoc, po-toc. Uma tênue luz rompia a escuridão dos corredores. Como um archote que se aproximava passo a passo. Potoc, po-toc. Um suave cheiro de sangue fresco acompanhava o visitante. O som ou o odor acabaram por despertar um galgo jovem, primeiro da ninhada, presente que Hapuseneb ganhara do pai. O cão ensaiou um rosnado, mas um golpe poderoso o silenciou. Tudo o que conseguiu produzir foi um ganido baixo, antes que um segundo golpe lhe partisse as vértebras do pescoço.
O visitante se aproximou da porta onde jazia o animal. A luz se projetou nos umbrais limpos. Demorou-se admirando os batentes. Só depois entrou, devagar. Potoc, po-toc. Aproximou-se do leito. Potoc, po-toc. A luminosidade se derramou sobre a criança. Uma grande mão espalmada caiu pesada sobre a boca do infante enquanto dedos fortes comprimiam a face como um torno. Hapuseneb acordou sobressaltado, mas não pôde se mexer sob o peso que o comprimia contra a cama. Não conseguiu emitir nenhum ruído, pedir ajuda ou desvencilhar-se. Os braços magros tentavam em vão afastar as mãos do agressor. Os olhos saltados de terror se destacavam na cabeça calva e olhavam com pânico aquele que trazia a luz sobre o seu leito.
— Não há sangue nos umbrais... — Foram as únicas palavras do invasor e as últimas que Hapuseneb ouviria.
Debateu-se o quanto pôde até que um joelho pesado aterrissou abaixo do abdômen, pouco acima do sexo. Balançava as pernas e tentava com os braços se desvencilhar. O assaltante cerrou o punho esquerdo, que estava livre, recolheu o braço para tomar impulso e precipitou a mão como um aríete contra o primogênito do faraó. Os bracinhos magros nem sequer desviaram o golpe, que atingiu o tronco um pouco acima do estômago, no lado direito. A criança gemeu sob as costelas trincadas. Com a dor nem percebeu que a mão de chumbo se precipitava em outra carga, partindo as costelas que, estilhaçadas, tornaram-se pequenas lanças dentro do corpo miúdo. Uma ponta rompeu a pele e ficou espetada para fora, refletindo em vermelho e branco a pouca luz que a iluminava. Ainda com a mão direita amordaçando a vítima, o visitante tomou com a esquerda aquela ponta que se projetava de Hapuseneb e a empurrou para baixo, qual uma alavanca. O garoto gritou histérico, os olhos esbugalhados jorrando lágrimas, o corpo estropiado jorrando sangue, enquanto a mão pesada não deixava escapar mais que um choro cortado e dolorido, enquanto a costela abria caminho por pele e carne como uma adaga cega, até se chocar contra a borda dura da cama e partir-se mais uma vez. O esforço em gritar desenhava no pescoço fino da criança todas as veias e tendões, projetando a traquéia num esforço inútil para ser ouvido. O assaltante aproveitou e, com o polegar e o indicador em pinça, envolveu a traquéia do menino e pressionou com força sobre-humana. Um som estalado da cartilagem silenciou a criança e um puxão brusco rompeu o duto, dilacerando a garganta já puída. O corpo jovem caiu inerte na cama, alquebrado, vermelho, deixado no escuro enquanto a luz se afastava devagar, coxeando baixo pelos corredores do faraó. Potoc, po-toc.
sexta-feira, 21 de março de 2008
Tema: Páscoa
domingo, 16 de março de 2008
Votação: Morte
Num dia qualquer
25/05/05
Estava eu sentado ao pé da porta da sala de aula, esperando pelo professor que não chegava, as salas próximas vazias em meio à véspera de feriado. Pensava na vida, na morte, enfim, em todos aqueles devaneios que, livre do alcance de curiosos, a mente se permitia considerar. Nunca chegava a muitas conclusões, naturalmente, mas era uma boa forma de passar o tempo.
Ergui os olhos para o vasto pátio da universidade e vi uma pessoa ao longe, caminhando lentamente pelo tapete de concreto. Um pouco mais próxima e a reconheci. Era ela. Seu nome era o de uma mortal, mas a beleza a de uma deusa. Laura, a luz de todos os meus dias, que com sua presença tornava paradisíacas mesmo as mais cinzentas e enregelantes manhãs de inverno.
Ela estava trajada magnificamente, o que não deixava de ser estranho para um dia de aula como outro qualquer. Qualquer que fosse o motivo, o fulgor de sua presença pareceu empalidecer o brilho do sol no céu sem nuvens. O longo vestido de um branco imaculado balançava a cada passo, delineando perfeitamente suas formas esculpidas em mármore. Os cabelos negros e brilhantes emolduravam seu leve e tentador sorriso, lábios que eram um convite à perdição. Mesmo à distância era possível perceber o brilho de seus olhos, verdes e cintilantes como esmeraldas cuidadosamente lapidadas, os olhos enfeitiçantes de um anjo... ou um súcubo.
Com um terremoto de passos pesados vindos do nada, Ana correu até mim, a face contorcida e enrubescida pela dor.
- Marcos... preciso falar... a-aconteceu uma coisa terrível!...
Fiz um esforço para romper o estado hipnótico em que estava e prestar atenção nela. Laura agora parara e acenava para mim à distância, com uma expressão de absoluta tranquilidade no rosto. O que poderia ser tão terrível em um dia daqueles?...
- Laura... e-ela... - Ana mal conseguia falar em meio às lágrimas - Oh, meu deus... Foi horrível!...
Minha expressão era de completa incompreensão enquanto Ana despejava suas palavras e eu assimilava seu significado. Diante de meu olhar aturdido, Laura deu meia volta e, com passos calmos e nobres de uma rainha, caminhou languidamente para o horizonte.
Poema
16/03/2008
Mais do que um pesadelo, realidade.
Mais do que um medo, certeza.
Mais do que palpável, insuportável.
Segurar as lágrimas, impossível.
Segurar o peso, insuportável.
Segurar o grito, doloroso.
Nada é tão fúnebre quanto a dor.
Nada é tão inatingível quanto o peito.
Nada é tão silencioso quanto o gélido sabor da morte.
Pior do que matar é morrer por dentro.
Pior do que morrer por dentro é carregar o peso.
Pior do que carregar o peso é deixá-lo ir.
Sobre a vida, pouco.
Sobre a realidade, muito.
Sobre a morte, poema.
sábado, 15 de março de 2008
Em paz
15/03/08
Os olhos abertos fitavam o céu sem se prender a uma nuvem em especial. As gaivotas temiam em se aproximar, mas já pousavam cada vez mais perto, acostumadas com sua presença. Os braços abertos recebiam as primeiras rajadas do sol que aquecia sua pele naquela manhã úmida e fria. Ele estava lá, deitado, os braços esticados na areia, uma perna dobrada para o lado e o cabelo ainda molhado do último mergulho na água do mar. As roupas estavam encharcadas, mas ele não se preocupava com isso. Não se preocupava com nada, apenas ficava lá, largado na areia da praia sentindo a brisa que vinha do mar se abrigar em seu corpo. Não se preocupava com o tempo, não se preocupava com sua semi-nudez, não se preocupava com o que os outros poderiam pensar dele, ali, deitado na areia da praia às seis horas da manhã. Poderiam pensar que era um vagabundo, um bêbado, qualquer coisa. Para ele, isso não importava mais. Ele sequer piscava. A primeira pessoa a caminhar pela areia naquela manhã gelada o viu já à distância. Fez todos aqueles pré-julgamentos que poderiam ser feitos. Podia ser um bêbado, um drogado, um mendigo. Apenas quando se aproximou mais, notou que não era nada disso. Era um homem comum. Um trabalhador, um senhor de meia idade, que adorava pescar, nadar e ler o jornal todos os dias de manhã. A pessoa viu que ao contrário de seus pré-julgamentos, ele não estava bêbado, não estava drogado. A pessoa gritou e correu assustada em direção à avenida, quando viu que ele estava simplesmente morto.
quinta-feira, 13 de março de 2008
Morre Maira Maíra
Media métodos. Mutilação metia-lhe medo. Machucava muito. Mirava morte mais melancólica, menos moderna. Mítica, misteriosa. Mais marcante. Merecia melhor mortalha. Maquiou-se, meteu meias macias, malha marfim, melhores miçangas. Marchou.
Mediu meia milha marcando mata. Mãos miúdas mexiam moitas. Manipulavam morte. Mato mortal Maira Maíra mordeu. Mastigou mais. Movia molares mastigando morte. Menta maligna matava Maira. Maira morria.
Morreu, Maira Maíra.
terça-feira, 11 de março de 2008
Em-fim!
Thiago Floriano
07/fevereiro/2008
cede-me o fôlego
que ora me tomas
procura o outro
se é brasa ou chamas
um novo lado
para o todo abstrato
sem sede, sem fome
enrijeço calado
e nada me toca
insensível o tato
outrora estivera em caminho ousado
não vira que a terra, carne consome
perdera mormente sentidos, de fato
mas a consciência também se desfoca
se vou pr’outro lado
já não te percebo
não tenho nenhum elixir encantado
talvez uma água tomo, placebo
mas nem absorve este corpo inerte
somente idéias à mente compete
devolve-me o fôlego
ó, certeza ingrata
se ficas na espreita
és vil e poderosa
deixa-me ir dessa vida barata
num simples regresso de passo trôpego
a partida se faz, ao menos, honrosa
percebo uma história de glória já feita
e volto anuente à singela nulidade
de minha própria finitude...
... mais nada
Tema: Morte
Rodada apertada! Assim dá gosto de ver!
Bem, na última rodada notei a recorrência de um assunto que vem sendo amplamente abordado desde o início do Duelo de Escritores. E ele será o tema desta nova rodada.
Tema: Morte.
Os Duelistas têm até o dia 16 de março (domingo) para publicarem seus textos.
sábado, 8 de março de 2008
sexta-feira, 7 de março de 2008
Intuitivo
07/03/2008 (Desculpem o atraso!)
Ela estava lá para esquecer do mundo. Já não agüentaria um segundo mais pensando em vivendo freneticamente cada uma de suas emoções. Fez a vigem em sete vezes no cartão de crédito, mas não queria pensar em como ia pagá-la. Deixou em casa roupas para lavar, pisos para limpar e uma vida inteira para botar em ordem. Estava sentada degustando um de seus principais vícios, o café, seu cheiro e seu gosto.
Ele, ao contrário, estava ali por pura obrigação. Detestava pessoas, detestava viagens e não conseguia ver beleza alguma em qualquer das paisagens. Mas alguma coisa o dizia que deveria estar ali. Um instinto, um ímpeto, uma quase intuição. Na falta de outro lugar sentou-se ao lado dela.
“Charmoso”. “Deve puxar papo, saco”.
Uma comunicação se tornou inevitável. Pensamentos eróticos também. Foram duas horas de papo quando descobriram que ficariam no mesmo andar do hotel. Ela tentando não pensar, ele imaginando que a viagem poderia não ser tão chata como o esperado.
“Dane-se”. “Eu sabia que meu instinto não me enganaria”.
Ela bebia, ele observava. Ela bebia mais, ele pensava mais. Ela já não pensava, ele arquitetava pensamentos. Precisava achar a maneira certa.
“Agora não quero pensar, amanhã terei tempo”. “Agora não quero pensar, amanhã escondo o corpo em algum lugar”.
quinta-feira, 6 de março de 2008
Dormentes
Passando pelas cabines você vê pela porta de vidro uma moça sozinha, olhando pela janela. O cabelo castanho amarrado para cima revelava a nuca e o pescoço longo e delicado. A bagagem parecia de apenas uma pessoa. Você estava com sorte. Com duas batidinhas no vidro, para não assustar a moça, você abre a porta e pergunta com umsorriso — que você acreditava sedutor e ela achou meio bobo — se o assento estava vago. Ela respondeu que sim com outro sorriso. Ela era uma estudante de música de pouco menos de trinta anos. Interessante, bonita. Vocês conversaram e logo se deram bem. Lá fora o sol continuava a iluminar a paisagem e dentro da cabine o clima estava ainda melhor. Você anda voltou algumas vezes a sua antiga cabine para visitar os recém-casados, mas quando o trem parou numa estação no meio do caminho e você viu, pela janela, os dois na plataforma de desembarque, uma tristeza repentina lhe apertou o peito. Eles acenaram cercados pela bagagem volumosa enquanto o trem se afastava seguindo viagem. Ao menos lhe restava ainda a companhia da sua nova colega de cabine. Masfaltavam ainda algumas estações para você descer quando ela disse que havia chegado a sua parada. Da plataforma da estação ela mandou-lhe um beijo e foi ficando para trás enquanto o vagão retomava a viagem. Na cabine apenas você e a sua mala, que afundava pesada no estofado do banco a sua frente. Olhando a paisagem, com a testa contra o vidro, você adormeceu ao embalo do trem. A paisagem continuava lá. Os túneis surgiram e se foram, escureceu e tornou a clarear. E a paisagem continuava lá. Mas você não percebeu porque havia adormecido. Só acordou quando um funcionário, de uniforme negro impecável, veio lhe chamar. Chegara a sua estação.
Você desceu meio desajeitado, com todas as suas malas, a bagagem caindo aqui e ali. Algumas provavelmente tinham até ficado para trás. Vendo a sua cara de atordoado na plataforma, cercado pela própria bagagem, o funcionário não se conteve e riu. “Pobre, homem. Não deve nem saber onde está”. Com o orgulho ferido e achando-se mais esperto você ainda respondeu “Ao menos posso ir aonde quiser, que não tenho trilho algum que seguir”. E só com a cabeçapara fora do trem o funcionário concluiu: “Meu senhor, esse trem não corre sobre trilhos”.Só então você percebeu a falta dos dormentes, do metal, da linha reta e previsível dos trilhos. E o trem saiu serpenteando em todas as direções, como se cada passageiro pudesse escolher o caminho a seguir. E você ficou na plataforma, cercado por toda a sua bagagem e coberto pela fumaça preta que saía da chaminé enquanto o trem ia se afastando.
A Viagem
Thiago Floriano
06/fevereiro/2008
A viagem
05/03/08
Na estação lotada, as pessoas se acotovelavam e empurravam, loucas para garantir seu lugar e começar a viagem. Pacientemente, segui o fluxo e embarquei no veículo. Por pura sorte, consegui uma vaga na janela e acomodei-me enquanto o motor começava a funcionar. O trecho seguia por terras ermas, mas ligava algumas importantes metrópoles locais. Assim, o vagão lotou rapidamente. Seria um longo e tortuoso passeio.
O trem iniciou seu caminho pela pacífica planície. Aquela paz lá fora, em contraste com o barulho do interior, me fez lembrar de minha infância. Bons tempos de inocência e inconsciência, quando o mundo parecia mais simples e todos eram pessoas nas quais podíamos confiar... E a juventude, então? A inocência saía de cena, dando lugar à inconseqüência. Inconseqüência e inconsciência... Tempos de aprendizados, revoluções e sonhos. Sim, muitos sonhos. O futuro era glorioso e o mundo, uma incógnita a ser desbravada. E eu me impacientava com minhas limitações, mas sabia que meu tempo iria chegar.
Conforme a locomotiva engolia os trilhos, a planície ficava para trás e entrávamos em território montanhoso. Logo à frente, uma negra boca se abria em meio à montanha. Fomos engolidos e apenas duas luzes não queimadas no vagão espantavam a escuridão. O matraquear da locomotiva, enquanto isso, ecoava assustadoramente pelo túnel. Uma criança encolheu-se nos braços da mãe, choramingando de medo, provavelmente fazendo o caminho pela primeira vez. Olhando para ela, senti-me novamente a criança solitária e assustada que fora arrancada de sua terra pela vida, sem braços de mãe para consolá-la. Um órfão sem amigos e amores, sem raízes e famílias, a transitar cegamente pelo mundo em busca de um lugar que pudesse chamar de casa. Expulso, infeliz, irrequieto, solitário, jamais me sentindo realmente bem onde quer que estava. E eu apenas podia seguir sendo feliz pela metade, esperando meu tempo chegar.
A saída foi anda mais enervante que o túnel em si. A íngreme serra se descortinou diante de nós, fantástica e assombrosa. Os trilhos escorregavam por um declive acentuado, quase uma queda livre num penhasco. Não era uma sensação para estômagos fracos. Uma mulher na minha frente começou a passar mal e a discutir com seu marido, que não quisera pagar pelo avião. Ele respondeu rispidamente que dinheiro não dava em árvores e uma pesada discussão se iniciou. Uma acusava outro de negligência, e outro lamentava ter casado com uma. Lembrei então de quantas vezes já não tinha passado por aquilo. Quantas frustrações, quantas brigas. Inúmeras paixões idealizadas e amores eternos despedaçados, seus momentos agradáveis obliterados pelas amargas lembranças de finais cruéis. E eu chorava minhas desilusões, tentando acreditar que meu tempo iria chegar.
Depois de minutos que pareceram eternidades, atingimos o fundo do rochoso vale entre os montes. O terreno ficava pedregoso e as rochas faziam os vagões saltarem em solavancos. Um homem se impacientou com a tremedeira, tentando inutilmente manter seu computador portátil parado, enquanto mantinha duas ligações simultâneas no celular. Em uma delas, falava desculpas suplicantes e monossílabos afirmativos, com os olhos faiscando. Na outra, a faísca virava chama e gritava furiosamente com quem estava do outro lado, cuspindo ordens impossíveis e prazos inviáveis. Sua atitude ambígua me fez lembrar das infinitas vezes que eu enfrentei a arbitrariedade e hipocrisia dos outros. Quantas vezes tinham me falado que eu deveria abaixar a cabeça, acatar a realidade e deixar o romantismo de lado, enquanto fosse um peão num jogo de reis (e quantos, dos que se corrompiam, resgatavam o idealismo quando ascendiam aos tronos)? Quantos me aconselharam a vender a alma, a ser esperto e tirar vantagem de sistemas falhos. E quantas as vezes em que fui condenado e crucificado por tentar me manter fiel, não às palavras da serpente, mas aos meus próprios ideais? Oportunidades perdidas, facadas pelas costas, conflitos desgastantes... E eu podia apenas amargar minhas derrotas, me perguntando em meio à raiva: será que meu tempo iria chegar?
Finalmente, o trem reiniciou a subida, lenta e penosamente. Após algumas horas, deixávamos a serra para trás e novamente deslizávamos com velocidade na planície. O trem chegou à próxima parada e as pessoas jorraram por suas portas. Saí do mesmo modo que entrei, calmo e sem pressa. Enquanto os outros brigavam por táxis ou se socavam nos ônibus, deixei a estação para trás a pé. Olhei ao meu redor e saudei a paisagem, velha conhecida, mas que mesmo assim ainda conseguia me fascinar. Eram apenas alguns quilômetros antes de chegar em casa e, finalmente, ter ela em meus braços outra vez. Queria lhe contar as novidades, dizer que tudo dera certo na viagem e como as coisas iriam melhorar.
Olhei para os trilhos e sorri. O trem ainda tinha uma longa jornada pela frente, mas eu não precisava mais me preocupar com seus futuros solavancos. Pois sabia que meu tempo havia chegado.
quarta-feira, 5 de março de 2008
A Última Viagem
05/03/08
Caminhou até a porta e olhou para o relógio. A madrugada já estava avançada e ele tinha a infeliz certeza de que aquele 13 de março não sairia de sua memória. Desabotoou o sujo macacão, tirou-o e o pendurou no ombro, depois de trocar as botas pelo par de chinelos já cansados pelo tempo.
Desceu a escada de ferro, caminhou poucos passos e parou. Não costumava fazer isso, mas uma tristeza súbita fez com que se virasse e lançasse um último olhar à velha locomotiva 331, já castigada pelas inúmeras viagens.
Dentro daquele monstro metálico, circundado pelos ruídos característicos e envolvido pelo sacolejar constante, seu José passou boa parte de sua vida. Lembrava-se como seu pai o ensinara a limpar os trilhos, emprego que teve até o dia de sua morte. O então mirrado Zezinho entrou para a empresa como entregador de recados. Tudo que ele precisava fazer era levar o malote de correspondências até o vagão, e deixar que as cartas tomassem seu rumo.
Passou pelos mais diversos cargos dentro da Companhia, até chegar ao posto que ocupava naquele 13 de março: maquinista. Seu pai, que nunca tivera o privilégio de ocupar cargos além da limpeza, estaria orgulhoso de seu primogênito. Com todos esses pensamentos, uma lágrima escorreu pelo rosto daquele homem, que em frente da locomotiva mais parecia um menino, aquele menino que aprendeu com o pai a limpar os trilhos do trem.
Virou-se de costas e falou baixinho uma breve despedida. Não entendia o motivo que fazia os homens modernos adorarem tanto seus carros e ônibus, seu trânsito caótico. Não entendia o motivo dessa mudança radical, de viajar apenas nos rios de asfalto, enquanto haviam tantos trilhos a serem percorridos.
Naquele 13 de março, seu José enxugou a lágrima que insistia em avançar por seu rosto, torcendo que um dia a velha – e agora triste – locomotiva voltasse a apitar.
*O conto é uma ficção e não tenta reviver uma história verídica, mas serve de homenagem à Locomotiva a Vapor 331 e a José Pacheco, maquinista que dedicou tantas horas àquelas viagens entre Blumenau e Trombudo Central. A História conta que a última viagem oficial da locomotiva teve fim às 17h do dia 12 de março de 1971, mas testemunhas afirmam ter visto o trem passar por volta das 2h pela estação do Encano, fazendo um retorno silencioso a Blumenau, onde seria, para sempre, silenciada.
sábado, 1 de março de 2008
Tema da rodada
Viagem de trem
Os participantes têm até o dia 6 de março para postarem seus textos.
ps: O duelista Rodrigo está de aniversário neste dia 2 ;) Parabéns!