quinta-feira, 6 de março de 2008

Dormentes

O sol mal subiu e você já estava na plataforma. Estação cheia. Um desfile de malas, mochilas e sacolas. Lá de trás uma fumaça preta anunciava a chegada. O povo se aproximou da beirada da plataforma. E lá no meio você. Com apenas uma maletinha de mão, praticamente vazia, embarcando numa viagem que sabe-se lá quanto tempo ia levar. Mas, enfim, você entrou. É bem verdade, meio assustado. Passar pelos corredores estreitos com um trem em movimento se balançando de um lado para o outro talvez não tenha sido o melhor dos começos. Mas logo você encontrou uma cabine com espaço. Lá dentro apenas um casal de uns trinta e poucos anos. Depois de instalado, você se apresentou. Ele era maestro, ela professora. Estavam em lua-de-mel. Talvez por isso tivessem bem mais bagagens que você. Eram um casal divertidos e fizeram os primeiros quilômetros da viagem passarem rápido. O único incômodo era a sensação de estar atrapalhando. Os dois ali, em lua-de-mel, e você atrapalhando ali na cabine. Mas eles pareciam não se importar. Pela janela você apreciava a paisagem exuberante na tarde ensolarada enquanto conversava e sentia o balanço dos vagões sobre os trilhos. Com o tempo, porém, a companhia do casal começou a ficar meio cansativa. Provavelmente pela proximidade constante. Com uma desculpa qualquer você pegou a mala e saiu a procura de outra cabine, prometendo voltar para retomar a conversa.

Passando pelas cabines você vê pela porta de vidro uma moça sozinha, olhando pela janela. O cabelo castanho amarrado para cima revelava a nuca e o pescoço longo e delicado. A bagagem parecia de apenas uma pessoa. Você estava com sorte. Com duas batidinhas no vidro, para não assustar a moça, você abre a porta e pergunta com umsorriso — que você acreditava sedutor e ela achou meio bobo — se o assento estava vago. Ela respondeu que sim com outro sorriso. Ela era uma estudante de música de pouco menos de trinta anos. Interessante, bonita. Vocês conversaram e logo se deram bem. Lá fora o sol continuava a iluminar a paisagem e dentro da cabine o clima estava ainda melhor. Você anda voltou algumas vezes a sua antiga cabine para visitar os recém-casados, mas quando o trem parou numa estação no meio do caminho e você viu, pela janela, os dois na plataforma de desembarque, uma tristeza repentina lhe apertou o peito. Eles acenaram cercados pela bagagem volumosa enquanto o trem se afastava seguindo viagem. Ao menos lhe restava ainda a companhia da sua nova colega de cabine. Masfaltavam ainda algumas estações para você descer quando ela disse que havia chegado a sua parada. Da plataforma da estação ela mandou-lhe um beijo e foi ficando para trás enquanto o vagão retomava a viagem. Na cabine apenas você e a sua mala, que afundava pesada no estofado do banco a sua frente. Olhando a paisagem, com a testa contra o vidro, você adormeceu ao embalo do trem. A paisagem continuava lá. Os túneis surgiram e se foram, escureceu e tornou a clarear. E a paisagem continuava lá. Mas você não percebeu porque havia adormecido. Só acordou quando um funcionário, de uniforme negro impecável, veio lhe chamar. Chegara a sua estação.

Você desceu meio desajeitado, com todas as suas malas, a bagagem caindo aqui e ali. Algumas provavelmente tinham até ficado para trás. Vendo a sua cara de atordoado na plataforma, cercado pela própria bagagem, o funcionário não se conteve e riu. “Pobre, homem. Não deve nem saber onde está”. Com o orgulho ferido e achando-se mais esperto você ainda respondeu “Ao menos posso ir aonde quiser, que não tenho trilho algum que seguir”. E só com a cabeçapara fora do trem o funcionário concluiu: “Meu senhor, esse trem não corre sobre trilhos”.Só então você percebeu a falta dos dormentes, do metal, da linha reta e previsível dos trilhos. E o trem saiu serpenteando em todas as direções, como se cada passageiro pudesse escolher o caminho a seguir. E você ficou na plataforma, cercado por toda a sua bagagem e coberto pela fumaça preta que saía da chaminé enquanto o trem ia se afastando.

Um comentário:

Fábio Ricardo disse...

o tipo d eocnto que tem que se ler ao menos duas vezes para captar os detalhes.