terça-feira, 25 de março de 2008

A Páscoa do Faraó

Hapuseneb brincava com alguns gafanhotos que tinham sobrado da infestação. Cutucava os insetos, que estavam numa gaiola de palha, com um graveto. As amas já o haviam mandado dormir. Queria despedir-se de seu pai, mas elas disseram que ele não devia ser incomodado, que tinha muitos problemas para resolver ultimamente. O herdeiro acabou se cansando dos insetos e foi dormir. No dia seguinte poderia ver o pai.

Era meia-noite quando um som rompeu o silêncio do palácio. Potoc, po-toc. Potoc, po-toc. Lento, constante, se aproximando. Potoc, po-toc. Uma tênue luz rompia a escuridão dos corredores. Como um archote que se aproximava passo a passo. Potoc, po-toc. Um suave cheiro de sangue fresco acompanhava o visitante. O som ou o odor acabaram por despertar um galgo jovem, primeiro da ninhada, presente que Hapuseneb ganhara do pai. O cão ensaiou um rosnado, mas um golpe poderoso o silenciou. Tudo o que conseguiu produzir foi um ganido baixo, antes que um segundo golpe lhe partisse as vértebras do pescoço.

O visitante se aproximou da porta onde jazia o animal. A luz se projetou nos umbrais limpos. Demorou-se admirando os batentes. Só depois entrou, devagar. Potoc, po-toc. Aproximou-se do leito. Potoc, po-toc. A luminosidade se derramou sobre a criança. Uma grande mão espalmada caiu pesada sobre a boca do infante enquanto dedos fortes comprimiam a face como um torno. Hapuseneb acordou sobressaltado, mas não pôde se mexer sob o peso que o comprimia contra a cama. Não conseguiu emitir nenhum ruído, pedir ajuda ou desvencilhar-se. Os braços magros tentavam em vão afastar as mãos do agressor. Os olhos saltados de terror se destacavam na cabeça calva e olhavam com pânico aquele que trazia a luz sobre o seu leito.

— Não há sangue nos umbrais... — Foram as únicas palavras do invasor e as últimas que Hapuseneb ouviria.

Debateu-se o quanto pôde até que um joelho pesado aterrissou abaixo do abdômen, pouco acima do sexo. Balançava as pernas e tentava com os braços se desvencilhar. O assaltante cerrou o punho esquerdo, que estava livre, recolheu o braço para tomar impulso e precipitou a mão como um aríete contra o primogênito do faraó. Os bracinhos magros nem sequer desviaram o golpe, que atingiu o tronco um pouco acima do estômago, no lado direito. A criança gemeu sob as costelas trincadas. Com a dor nem percebeu que a mão de chumbo se precipitava em outra carga, partindo as costelas que, estilhaçadas, tornaram-se pequenas lanças dentro do corpo miúdo. Uma ponta rompeu a pele e ficou espetada para fora, refletindo em vermelho e branco a pouca luz que a iluminava. Ainda com a mão direita amordaçando a vítima, o visitante tomou com a esquerda aquela ponta que se projetava de Hapuseneb e a empurrou para baixo, qual uma alavanca. O garoto gritou histérico, os olhos esbugalhados jorrando lágrimas, o corpo estropiado jorrando sangue, enquanto a mão pesada não deixava escapar mais que um choro cortado e dolorido, enquanto a costela abria caminho por pele e carne como uma adaga cega, até se chocar contra a borda dura da cama e partir-se mais uma vez. O esforço em gritar desenhava no pescoço fino da criança todas as veias e tendões, projetando a traquéia num esforço inútil para ser ouvido. O assaltante aproveitou e, com o polegar e o indicador em pinça, envolveu a traquéia do menino e pressionou com força sobre-humana. Um som estalado da cartilagem silenciou a criança e um puxão brusco rompeu o duto, dilacerando a garganta já puída. O corpo jovem caiu inerte na cama, alquebrado, vermelho, deixado no escuro enquanto a luz se afastava devagar, coxeando baixo pelos corredores do faraó. Potoc, po-toc.

2 comentários:

Félix disse...

bem brutal... o único a construir uma história, até agora. não sei se pelo feriado ou por si só, esse tema foi complicado...

Fábio Ricardo disse...

Caralho. Seu bicho doente. Li o texto inteiro com os olhos apertados, vontade de se afastar do computador. Enjôo, náuseas. O fato de ser uma criança, indefesa, deixa tudo ainda mais complicado.