No ártico o ritmo é liquefeito. Não se pode partir com o nascer do sol onde o sol não se põe por meses. Na luz difusa, as horas são tão diáfanas quanto o sol. No ártico, o que dita o ritmo é a vida. E a morte. E a busca incessante por uma e por outra. No gelo ou na água, o que dita o ritmo é a caça. E para quem sobrevive no ártico, a temporada de caça está sempre aberta.
Reunimo-nos à beira do gelo. Caçadores. Os melhores. Nômades, desgarrados. Parentes pelo sangue ou pelo frio. Pela caçada. A água fria nos recebeu como nos recebia todas as vezes. Lançamo-nos por aquelas águas como se pudéssemos realmente ver as correntes. Nativos, tão naturalmente adaptados àquele ambiente como se fossemos peixes. Mas não éramos. Éramos caçadores. Treinados pelos anos, pelo ambiente, uns pelos outros. Éramos os melhores.
Seguindo as correntes víamos longe miúdos cardumes de atuns ou salmões. Mas a caçada previa algo mais. Estava no ar, fresco, podíamos sentir. O dia era de focas. Carne, pele e gordura. O ouro do ártico. Rumamos à costa, em busca do gelo fino. O cheiro da antecipação no ar. Mas não era apenas a antecipação que se podia sentir. Era o cheiro de sangue. Fresco. Aos montes. De longe foi possível ver a chaga vermelha no gelo. A própria água, escura, cheirava a sangue. Haviam chegado antes de nós.
À beira do gelo, fino e trincado, os restos do abate. Gordura espalhada, órgãos desprezados e pegadas na neve. Amadores. Abateram fêmeas jovens e filhotes. Mataram a caça de amanhã. Restamos apenas nós, caçadores. Famintos de volta às águas profundas, mergulhando em busca de cardumes. Uniformes negros e estômagos pálidos. Na água que nos cerca, o gosto do sangue desperdiçado. E é a nós que chamam de assassinos.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
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4 comentários:
e as coitadas são chamadas assim só tendo um caso de "assassinato" comprovado até hoje...
boa perspectiva, até o terceiro parágrago eu achei que era o ponto de vista das próprias focas.
Fiquei na dúvida também, mas adorei o enfoque.
Foi sutil e chocante ao mesmo tempo.
Parabéns!
Se não for irônico, é chocante. Ou vice-versa. Ou os dois juntos. Acho que cabem bem no seu texto. Além disso, a descrição foi bem apurada. O que nos permitiu sentir o gosto e o cheiro do sangue. Òtimo!
"Uniformes negros e estômagos pálidos."
como sempre, todo texto teu tem uma frase de efeito, hehehe.
eu curti principalmente a construção do personagem, na afimação q ele faz sobre eles mesmos.
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