Mais um mês começando, mais uma nova rodada começando com ele.
O tema desta rodada é:
CASAMENTO
Os duelistas têm até o dia 6 de fevereiro para postar seus textos.
Boa sorte a todos!
sábado, 31 de janeiro de 2009
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
Votação - 7 palavras
Participe!
Vote no melhor texto da rodada comentando aqui até o dia 30 de janeiro.
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Minhas férias
Primeiro dia de aula. Fotolito chega na sala na expectativa de reencontrar seus colegas e correr pela escola.Entra um pouco atrasado para a primeira atividade. A professora já está falando.
- Este ano tive uma idéia brilhante. Cada um de vocês vai escrever uma redação contando suas férias. Como ninguém pensou nisso antes?
As crianças olhavam umas para as outras, desconsoladas. Fotolito já pensava além. Ele sabia que não se contentaria em contar seu passeio à praia ou ao parque aquático, precisaria inovar. Pegou seu Minidicionário de Língua Portuguesa e começou a escolher palavras aleatoriamente. Seria ele, o dicionário, um guia, como um sacerdote que, com suas palavras orienta multidões.
- Este ano tive uma idéia brilhante. Cada um de vocês vai escrever uma redação contando suas férias. Como ninguém pensou nisso antes?
As crianças olhavam umas para as outras, desconsoladas. Fotolito já pensava além. Ele sabia que não se contentaria em contar seu passeio à praia ou ao parque aquático, precisaria inovar. Pegou seu Minidicionário de Língua Portuguesa e começou a escolher palavras aleatoriamente. Seria ele, o dicionário, um guia, como um sacerdote que, com suas palavras orienta multidões.
Nessas férias eu fugi de casa. Eu fugi pra não aturar meus pais caducos e manipuladores. Eu peguei o dinheiro pra comprar pão, entrei num ônibus e sumi pro campo. Um camponês gostou de mim. Ele me ofereceu uma bala e um trabalho escravo. Eu não aceitei a bala. A lida na roça não era uma das situações mais incômodas, mas o que me chateava mesmo era estar naquele lugar recôndito, longe de todos os meus amiguinhos. Quando minhas forças já estavam se extinguindo eu fugi de volta pra casa. Meu pai me deu uma surra. Fim
Papo (maluco) de mesa de bar
No ambiente, inebriado pela fumaça, ouviam-se apenas vozes animadas e quase gritos.
Na primeira mesa, já na entrada, ouvimos uma fervorosa discussão sobre sacerdotes manipuladores. Dois amigos visivelmente embriagados falam de catolicismo e de todas as lendas sobre a igreja. Eu e Thiago começamos a rir, já que temos em comum amigos que poderiam muito bem ocupar aquelas duas cadeiras.
Dois passos à frente, uma equipe de atletas uniformizados discutia pólo aquático. Falavam sobre a roupa incômoda, riam. Outro amigo, Rodrigo, comenta comigo que esses, sim, eram assexuados.
“Homens são todos escravos. Acabam extinguindo as verdadeiras raízes da humanidade. Eles têm que mandar nos relacionamentos”. Recônditos, eu e Fábio comentamos que, no mínimo, esses caras eram os mais pau-mandados da história dos relacionamentos.
Chegamos a última mesa, a nossa. Félix se dirige a nós e indignado, pergunta: “Se vocês fizerem um anti-doping nos meus textos ou comentarem mais uma vez que sou eu quem bebe nesse mundo, todos esses temas vão ser publicados no Duelo”. Os quatro se entreolham. É claro que coisa boa não poderia sair.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
Makila
Estava de férias. Só podia tirar uma semana de férias por ano, todo o restante dos dias ele passava dentro da mina, suando ao lado de outros homens tão fortes quanto ele. Makila era baixo e atarracado. Seu pescoço era quase tão grosso quanto seu braço, e o corpo parecia entalhado na rocha. Não saberia relembrar a última vez que alguém conseguira derrubar ele em uma briga. Mas agora ele estava de férias.
Largou as ferramentas em casa, foi ao porto e pediu que o levassem para o lugar mais deserto que pudessem encontrar. Como Makila constantemente ajudava os estivadores a carregar e descarregar os barcos, fizeram esse favor de bom grado. O largariam em uma ilha, possível de se ver da praia, mas completamente deserta. O barco só voltaria até a ilha para buscá-lo na semana seguinte.
Nas primeiras horas, Makila já sentia uma felicidade da qual não queria se livrar nunca mais. Não era mais aquele escravo que trabalhava de 10 a 12 horas por dia dentro das minas, procurando por metais que pudessem dar algum dinheiro para seus patrões. Tentou lutar por melhores condições de trabalhos algumas vezes. Mas a soma do baixo nível intelectual de seus colegas de trabalho com o poder de convencimentos de seus chefes manipuladores fazia com que nada acontecesse.
Mas agora ele estava de férias e não queria mais pensar em nada. Tinha apenas um par de roupas e comida para uma semana. Ninguém por perto, apenas aquele mar repleto de vidas escondidas nos recônditos esquecidos da escuridão.
Makila mergulhou entre os seres aquáticos e se sentiu um deles. Passou diversos dias se alimentando de peixes, água de coco e quase esqueceu que havia levado ração suficiente para mantê-lo com saúde por toda a semana. Makila esqueceu das roupas, da cabana que havia construído na mata, das fogueiras e provisões. Makila queria viver sob as águas, junto dos peixes e plantas. Encontrou uma caverna submarina que guardava um pouco de ar, onde ele conseguia respirar e dormir.
O local, úmido e repleto de fungos e algas, logo deixou Makila com falta de ar e dificuldades para mergulhar grandes profundidades. Depois de dias, Makila já não tinha forças para nadar até a ilha. Passou a se alimentar de peixes crus, mas logo não conseguia mais nem pescar. Se alimentava das algas do interior da caverna, e logo os fungos tomaram também o corpo forte, mas já não mais tão resistente do mineiro.
Os dias se passaram e se transformaram em semanas. Ele foi procurado por dias em toda a ilha, mas seu corpo nunca foi encontrado. Sentia sua vida se extinguindo enquanto os fungos, que no início eram apenas uma situação incômoda, agora já se espalhavam pela parte interna de seu pulmão.
Makila chorava sôfrego, por não ter forças para gritar. Logo ele, o mais forte mineiro daquelas terras, tinha sido derrotado por um simples fungo. Justo quando saiu de férias, ele foi vencido por um inimigo minúsculo, contra o qual ele não sabia lutar. E longe da mina, não podia pedir ajuda aos seus patrões, ao sacerdote da vila ou aos outros mineiros. Ali ele estava sozinho. Apenas ele e o mar. Ele e a caverna. Ele e sua dor.
Largou as ferramentas em casa, foi ao porto e pediu que o levassem para o lugar mais deserto que pudessem encontrar. Como Makila constantemente ajudava os estivadores a carregar e descarregar os barcos, fizeram esse favor de bom grado. O largariam em uma ilha, possível de se ver da praia, mas completamente deserta. O barco só voltaria até a ilha para buscá-lo na semana seguinte.
Nas primeiras horas, Makila já sentia uma felicidade da qual não queria se livrar nunca mais. Não era mais aquele escravo que trabalhava de 10 a 12 horas por dia dentro das minas, procurando por metais que pudessem dar algum dinheiro para seus patrões. Tentou lutar por melhores condições de trabalhos algumas vezes. Mas a soma do baixo nível intelectual de seus colegas de trabalho com o poder de convencimentos de seus chefes manipuladores fazia com que nada acontecesse.
Mas agora ele estava de férias e não queria mais pensar em nada. Tinha apenas um par de roupas e comida para uma semana. Ninguém por perto, apenas aquele mar repleto de vidas escondidas nos recônditos esquecidos da escuridão.
Makila mergulhou entre os seres aquáticos e se sentiu um deles. Passou diversos dias se alimentando de peixes, água de coco e quase esqueceu que havia levado ração suficiente para mantê-lo com saúde por toda a semana. Makila esqueceu das roupas, da cabana que havia construído na mata, das fogueiras e provisões. Makila queria viver sob as águas, junto dos peixes e plantas. Encontrou uma caverna submarina que guardava um pouco de ar, onde ele conseguia respirar e dormir.
O local, úmido e repleto de fungos e algas, logo deixou Makila com falta de ar e dificuldades para mergulhar grandes profundidades. Depois de dias, Makila já não tinha forças para nadar até a ilha. Passou a se alimentar de peixes crus, mas logo não conseguia mais nem pescar. Se alimentava das algas do interior da caverna, e logo os fungos tomaram também o corpo forte, mas já não mais tão resistente do mineiro.
Os dias se passaram e se transformaram em semanas. Ele foi procurado por dias em toda a ilha, mas seu corpo nunca foi encontrado. Sentia sua vida se extinguindo enquanto os fungos, que no início eram apenas uma situação incômoda, agora já se espalhavam pela parte interna de seu pulmão.
Makila chorava sôfrego, por não ter forças para gritar. Logo ele, o mais forte mineiro daquelas terras, tinha sido derrotado por um simples fungo. Justo quando saiu de férias, ele foi vencido por um inimigo minúsculo, contra o qual ele não sabia lutar. E longe da mina, não podia pedir ajuda aos seus patrões, ao sacerdote da vila ou aos outros mineiros. Ali ele estava sozinho. Apenas ele e o mar. Ele e a caverna. Ele e sua dor.
A praia
Eu desfrutava a praia alva, ladeada pelo negro oceano que envolve as terras imortais. As exóticas plantas lançavam sombras na areia, pela luz das estrelas e nebulosas a dominar o céu. Aquele que se põe a apreciar o céu terrestre, mesmo na mais escura e distante noite, só poderá ironizar a sua pobreza após contemplar um céu de sonho. Foi o que aconteceu comigo, pois há tempos eu ignorava os pálidos prazeres daquele mundo insípido. Naquela costa perdida no tempo e espaço, o firmamento não era uma mera cúpula escura pontilhada de luz. Não, havia um desfile de cores e objetos celestes, o próprio universo dançava diante dos meus olhos. Galáxias colidiam, supernovas explodiam, estrelas nasciam e morriam, criando e extinguindo incontáveis mundos e sabe-se lá quais fabulosas formas de vida. Nestes momentos, eu podia andar sobre as ondas, vendo o reflexo dos astros se torcer com meus passos, efeito este imitado pelos próprios no céu. Afinal, em nem todos os universos é o reflexo que se submete ao objeto...
A paz do momento foi quebrada quando o sacerdote pousou ao meu lado. Não o tinha visto chegando ao longe, apenas me virei um momento e a suntuosa liteira estava ali, carregada por seus escravos. Eram homens estranhos, de feições distorcidas, que ficavam menos humanos conforme se olhava de mais perto. O sacerdote, entretanto, nenhuma pista fornecia de sua aparência. Seus trajes cobriam a silhueta que poderia, talvez ser humanóide. O rosto permanecia escondido por uma máscara plana, sem nenhuma abertura. Como enxergava, não era possível especular, pois seus movimentos eram tão precisos que em nada indicavam cegueira. Mas o mais temível de tudo foi a voz, quando usou um chiado vindo de esferas celestiais ignotas para articular palavras.
O sibilo infernal questionava a minha presença ingrata em suas terras, tão pouco visitadas por aqueles que mantinham um mínimo de sanidade. Respondi-lhe petulantemente, falando que os riscos daquele mundo eu não hesitava em encarar, pois já havia passado pela mais horrenda de todas as experiências: uma vida desprovida de sabor. A criatura soltou algo que só minha imaginação poderia interpretar como uma risada, perguntando se eu conhecia todos os segredos daquele universo que julgava conhecer. Havia muito que eu não sabia e existiam certas coisas escondidas nos recônditos de cada mundo que poucas formas de vida estavam aptas a encarar.
Enquanto ele falava, começou a nascer a incômoda sensação de que aquela praia não era tão paradisíaca quanto eu julgava. Aqueles sacerdotes eram conhecidos nas distantes vilas como Manipuladores de Sonhos e, dizia-se, eram capazes de dobrar a vontade de qualquer viajante e transformar sua jornada em um verdadeiro pesadelo. As nebulosas no céu começaram a tomar formas estranhamente sugestivas, completamente fora do padrão aleatório natural que deveriam ter. O negro oceano pareceu ficar oleoso e observei-o começar a se arrastar na minha direção, as ondas como se fossem tentáculos à minha procura, enquanto a criatura declarava que ia dar uma pequena mostra do que é o verdadeiro sentido da palavra horror.
Tentei fugir, mas simplesmente não consegui me mover. Eu estava subitamente enterrado na areia até acima dos joelhos. Tentei usar minha força de vontade para me livrar, mas o poder do sacerdote era superior. O mar me envolveu e me arrastou com uma força inacreditável, quase separando as pernas do resto do corpo. Fui tragado por aquele oceano vivo, berrando até que as ondas me empurraram para baixo e minha boca e pulmões se encheram de água.
E então eu estava submerso, diante de um panorama emudecedor. As águas, antes tão escuras, se descortinavam límpidas em minha frente. Eu enxergava as profundidades submersas como se fossem penhascos, montanhas e vales. Eu vi estranhas criaturas nadando, e a sombra de algum leviatã escondido sob cavernas. De repente, a voz do sacerdote ecoou em minha mente, mandando-me olhar adiante. Lá, em um enorme abismo há quilômetros de profundidade, eu vi o que parecia ser uma cidade submersa, coberta de algas e incrustações, atestando uma idade prodigiosa. Mas não era uma cidade qualquer. Seus prédios não eram construídos com os ângulos corretos. Eu não conseguia apreender totalmente sequer uma única construção, pois seus contornos e vértices não pareciam nítidos, suas formas sempre escapavam da minha visão, em aberrações antieuclidianas que nenhuma matemática humana conseguiria compreender. O sacerdote sibilava, para meu completo terror, de que aquele túmulo aquático não existia só naquele mundo, mas em outros... incluindo o meu.
No centro daquela cidade maldita, havia um prédio de proporções ciclópicas, para onde fui arrastado implacavelmente. Com a velocidade que eu estava, eu jurava que meu fim viria com o impacto. Porém, quando estava para me chocar com a parede limosa, coberta de inscrições ilegíveis, um ângulo incompreensível se abriu de modo bizarro e fui engolido pela construção.
Eu estava em um salão, ou ao menos assim parecia. Conseguia enxergar um teto, mas sua estranheza metafísica fazia ser impossível estimar sua altitude. No momento em que eu pensava ser um determinado valor, o teto parecia muito mais distante. Quando eu estimava muito alto, ele não parecia tão imenso assim. O espaço, entretanto, era colossal. Eu não conseguia enxergar limites para nenhum dos lados. Tudo se perdia em uma névoa de negrura, onde meu único indicativo de perspectiva era as colunas que se erguiam por todos os lados, aparentemente sem lógica alguma. Suas propriedades eram tão curiosas quanto as do teto, o que me deixava perdido em uma enormidade incalculável, que podia ser definida apenas com uma palavra: massacrante.
Minhas conjecturas não puderam durar muito tempo, pois um estrondo ecoou pelas profundezas invisíveis, logo seguido por outro. Não era possível dizer de onde vinham, às vezes era da frente, às vezes parecia da direção oposta. Eram pancadas fortes, misturadas a uma miríade de ruídos misteriosos, fora de qualquer padrão natural, sugerindo uma interação de matérias estranhas e texturas alienígenas. Entretanto, o pior do som foi o que notei depois de alguns instantes: sua regularidade. Eram estrondos regulares e pareciam cada vez mais altos. Um arrepio correu pela minha espinha quando eu percebi que aquilo só poderia ser - deuses, que tipo de abominação cósmica poderia estar gerando aquilo?? - passos. Passos que estavam se aproximando...
E então eu vi.
Acordei gritando, com uma gargalhada sibilante ainda a soar nos ouvidos. Nunca o quarto fedorento do cortiço onde morava tinha me parecido tão reconfortante. Normalmente eu odiava ver as tábuas velhas do teto, pois indicavam que mais uma noite de aventuras tinha acabado. Daquela vez, porém, foi minha salvação. Um leve vislumbre daquela coisa gigantesca que se arrastava pelo salão já havia trincado minha sanidade, sem dúvida um segundo a mais e ela teria se despedaçado inteiramente. Mas meu cérebro doentio não conseguia deixar de recapitular aquele vislumbre demoníaco, misturando-o sempre às terríveis últimas palavras do maldito sacerdote...
Desde aquela fatídica noite, passei a ter medo de dormir. E jamais me aproximei novamente de qualquer mar ou oceano.
A paz do momento foi quebrada quando o sacerdote pousou ao meu lado. Não o tinha visto chegando ao longe, apenas me virei um momento e a suntuosa liteira estava ali, carregada por seus escravos. Eram homens estranhos, de feições distorcidas, que ficavam menos humanos conforme se olhava de mais perto. O sacerdote, entretanto, nenhuma pista fornecia de sua aparência. Seus trajes cobriam a silhueta que poderia, talvez ser humanóide. O rosto permanecia escondido por uma máscara plana, sem nenhuma abertura. Como enxergava, não era possível especular, pois seus movimentos eram tão precisos que em nada indicavam cegueira. Mas o mais temível de tudo foi a voz, quando usou um chiado vindo de esferas celestiais ignotas para articular palavras.
O sibilo infernal questionava a minha presença ingrata em suas terras, tão pouco visitadas por aqueles que mantinham um mínimo de sanidade. Respondi-lhe petulantemente, falando que os riscos daquele mundo eu não hesitava em encarar, pois já havia passado pela mais horrenda de todas as experiências: uma vida desprovida de sabor. A criatura soltou algo que só minha imaginação poderia interpretar como uma risada, perguntando se eu conhecia todos os segredos daquele universo que julgava conhecer. Havia muito que eu não sabia e existiam certas coisas escondidas nos recônditos de cada mundo que poucas formas de vida estavam aptas a encarar.
Enquanto ele falava, começou a nascer a incômoda sensação de que aquela praia não era tão paradisíaca quanto eu julgava. Aqueles sacerdotes eram conhecidos nas distantes vilas como Manipuladores de Sonhos e, dizia-se, eram capazes de dobrar a vontade de qualquer viajante e transformar sua jornada em um verdadeiro pesadelo. As nebulosas no céu começaram a tomar formas estranhamente sugestivas, completamente fora do padrão aleatório natural que deveriam ter. O negro oceano pareceu ficar oleoso e observei-o começar a se arrastar na minha direção, as ondas como se fossem tentáculos à minha procura, enquanto a criatura declarava que ia dar uma pequena mostra do que é o verdadeiro sentido da palavra horror.
Tentei fugir, mas simplesmente não consegui me mover. Eu estava subitamente enterrado na areia até acima dos joelhos. Tentei usar minha força de vontade para me livrar, mas o poder do sacerdote era superior. O mar me envolveu e me arrastou com uma força inacreditável, quase separando as pernas do resto do corpo. Fui tragado por aquele oceano vivo, berrando até que as ondas me empurraram para baixo e minha boca e pulmões se encheram de água.
E então eu estava submerso, diante de um panorama emudecedor. As águas, antes tão escuras, se descortinavam límpidas em minha frente. Eu enxergava as profundidades submersas como se fossem penhascos, montanhas e vales. Eu vi estranhas criaturas nadando, e a sombra de algum leviatã escondido sob cavernas. De repente, a voz do sacerdote ecoou em minha mente, mandando-me olhar adiante. Lá, em um enorme abismo há quilômetros de profundidade, eu vi o que parecia ser uma cidade submersa, coberta de algas e incrustações, atestando uma idade prodigiosa. Mas não era uma cidade qualquer. Seus prédios não eram construídos com os ângulos corretos. Eu não conseguia apreender totalmente sequer uma única construção, pois seus contornos e vértices não pareciam nítidos, suas formas sempre escapavam da minha visão, em aberrações antieuclidianas que nenhuma matemática humana conseguiria compreender. O sacerdote sibilava, para meu completo terror, de que aquele túmulo aquático não existia só naquele mundo, mas em outros... incluindo o meu.
No centro daquela cidade maldita, havia um prédio de proporções ciclópicas, para onde fui arrastado implacavelmente. Com a velocidade que eu estava, eu jurava que meu fim viria com o impacto. Porém, quando estava para me chocar com a parede limosa, coberta de inscrições ilegíveis, um ângulo incompreensível se abriu de modo bizarro e fui engolido pela construção.
Eu estava em um salão, ou ao menos assim parecia. Conseguia enxergar um teto, mas sua estranheza metafísica fazia ser impossível estimar sua altitude. No momento em que eu pensava ser um determinado valor, o teto parecia muito mais distante. Quando eu estimava muito alto, ele não parecia tão imenso assim. O espaço, entretanto, era colossal. Eu não conseguia enxergar limites para nenhum dos lados. Tudo se perdia em uma névoa de negrura, onde meu único indicativo de perspectiva era as colunas que se erguiam por todos os lados, aparentemente sem lógica alguma. Suas propriedades eram tão curiosas quanto as do teto, o que me deixava perdido em uma enormidade incalculável, que podia ser definida apenas com uma palavra: massacrante.
Minhas conjecturas não puderam durar muito tempo, pois um estrondo ecoou pelas profundezas invisíveis, logo seguido por outro. Não era possível dizer de onde vinham, às vezes era da frente, às vezes parecia da direção oposta. Eram pancadas fortes, misturadas a uma miríade de ruídos misteriosos, fora de qualquer padrão natural, sugerindo uma interação de matérias estranhas e texturas alienígenas. Entretanto, o pior do som foi o que notei depois de alguns instantes: sua regularidade. Eram estrondos regulares e pareciam cada vez mais altos. Um arrepio correu pela minha espinha quando eu percebi que aquilo só poderia ser - deuses, que tipo de abominação cósmica poderia estar gerando aquilo?? - passos. Passos que estavam se aproximando...
E então eu vi.
Acordei gritando, com uma gargalhada sibilante ainda a soar nos ouvidos. Nunca o quarto fedorento do cortiço onde morava tinha me parecido tão reconfortante. Normalmente eu odiava ver as tábuas velhas do teto, pois indicavam que mais uma noite de aventuras tinha acabado. Daquela vez, porém, foi minha salvação. Um leve vislumbre daquela coisa gigantesca que se arrastava pelo salão já havia trincado minha sanidade, sem dúvida um segundo a mais e ela teria se despedaçado inteiramente. Mas meu cérebro doentio não conseguia deixar de recapitular aquele vislumbre demoníaco, misturando-o sempre às terríveis últimas palavras do maldito sacerdote...
Desde aquela fatídica noite, passei a ter medo de dormir. E jamais me aproximei novamente de qualquer mar ou oceano.
Torpe Torpor
Alexándros, o mais jovem dos ácolitos, aguardava ansioso pela chegada do deus. Seria o seu primeiro encontro com aquele que aprendera a venerar sem conhecer. No átrio posterior do templo, o sacerdote se preparava para o ritual. Com auxílio de mais dois escravos, o acólito envolvia o homem santo com as pesadas e incômodas vestes sacerdotais. O deus, no entanto, ainda não chegara.
Com a mal disfarçada ansiedade, admirava, no centro do ambiente, a pitonisa já levemente inebriada, amparada por outros dois jovens discípulos enquanto aguardava o arrebate do deus em um pequeno altar de pedra. Mas o deus, ainda, se recusava a aparecer.
Ao aproximar do sacerdote, já vestido conforme a tradição, os escravos se retiraram e os discípulos se afastaram para o recôndito das sombras que cobriam as paredes do templo. Alexándros observou os dois manipuladores retirarem as lajes de pedra que revelaram as fissuras no solo, enquanto o sacerdote entoava os cantos evocando o deus da verdade. Mas o deus, ainda, não respondia ao chamado.
Das fendas expostas emergiam vapores aquáticos, secretos, ancestrais, que iam, aos poucos, envolvendo a jovem pitonisa e extinguindo-lhe o que lhe restava da consciência. Mas o deus, ainda assim, não aparecia.
Foi só quando os vapores já quase inebriavam todos os presentes, que a pitonisa foi arrebatada pelo êxtase do deus. Pois os deuses, aprendeu Alexándros, revelam-se apenas aos entorpecidos.
Com a mal disfarçada ansiedade, admirava, no centro do ambiente, a pitonisa já levemente inebriada, amparada por outros dois jovens discípulos enquanto aguardava o arrebate do deus em um pequeno altar de pedra. Mas o deus, ainda, se recusava a aparecer.
Ao aproximar do sacerdote, já vestido conforme a tradição, os escravos se retiraram e os discípulos se afastaram para o recôndito das sombras que cobriam as paredes do templo. Alexándros observou os dois manipuladores retirarem as lajes de pedra que revelaram as fissuras no solo, enquanto o sacerdote entoava os cantos evocando o deus da verdade. Mas o deus, ainda, não respondia ao chamado.
Das fendas expostas emergiam vapores aquáticos, secretos, ancestrais, que iam, aos poucos, envolvendo a jovem pitonisa e extinguindo-lhe o que lhe restava da consciência. Mas o deus, ainda assim, não aparecia.
Foi só quando os vapores já quase inebriavam todos os presentes, que a pitonisa foi arrebatada pelo êxtase do deus. Pois os deuses, aprendeu Alexándros, revelam-se apenas aos entorpecidos.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
Tema da rodada
Salve, amiguinhos. Vamos colocar um novo tema nessa rodada. E ele é:
Aquático
Escravo
Incômoda
Extinguindo
Sacerdote
Manipuladores
Recônditos
A lógica é escrever um texto coerente que inclua estas palavras escolhidas aleatoriamente. A única variação permitida é de número (singular e plural).
Textos postados até dia 26.
Aquático
Escravo
Incômoda
Extinguindo
Sacerdote
Manipuladores
Recônditos
A lógica é escrever um texto coerente que inclua estas palavras escolhidas aleatoriamente. A única variação permitida é de número (singular e plural).
Textos postados até dia 26.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
Votação
Nesta rodada, o duelista Thiago não participará com texto por motivo de viagem. Então serão apenas quatro textos.
Podem votar postando nos comentários deste tópico até o dia 20.
Podem votar postando nos comentários deste tópico até o dia 20.
Declaração
16/01/09
O detetive Freitas olhou com certa frieza para a cena do crime. Não importava o sangue, as lacerações, a monstruosidade deliberada com o qual a mulher fora morta. O que o fazia ver uma triste ironia naquilo tudo era o fato de que jamais haveria tantos oficiais ali se a vítima fosse uma pessoa comum. O próprio Freitas, ocupando um cargo de alto status por conta apenas de seus méritos, não seria tirado do escritório por "qualquer" crime.
Mas Ursula de Mendonça Aguiar não era uma mulher comum. Era a gerente de negócios de uma poderosa agência de modelos. Mulher rica, poderosa, madura, mas ainda conservando a beleza que lhe rendera fama na juventude.
Seu auxiliar de confiança entrou no quarto carregando uma pasta. Diante da cena, baixou os olhos, respirou fundo, e permaneceu de costas para a cama ensanguentada.
- Mofar no gabinete lhe tirou o estômago, Marcos? - perguntou Freitas, observando o trabalho dos peritos.
- Eu nunca vou me acostumar a ver crueldades como essa, Roberto.
- Fique feliz, meu amigo. É triste alguém perceber que precisou largar mão da sua humanidade para realizar seu trabalho direito.
- A humanidade certamente lhe agradece, desumano Freitas.
O detetive sorriu.
- Alguma novidade nesses papéis?
- Sim, é algo que pode estremecer até um coração gelado.
- Fale e vamos ver se eu me arrepio.
- Não é um caso isolado.
Freitas voltou-se para o companheiro.
- Como assim?
- Elise Lara Araújo, vinte e três anos, estudante, mora na cidade. Menina linda, classe média, grande futuro pela frente. Encontrada morta em casa há três dias. Crime chocante, recebeu alguma atenção nos jornais.
- Qual a conexão?
- Veja as fotos tiradas pelo rapaz que avaliou o caso.
Os olhos experientes do detetive não precisaram de mais do que alguns instantes para captar as informações. A cena era diferente, é claro, mas os requintes de crueldade eram facilmente reconhecíveis.
- Merda.
- Sim, mais um louco à solta.
- Loucos todos somos de viver nesse mundo pirado, Marcos. Alguns apenas não conseguem se conter.
- O que faremos, Vossa Insanidade?
- Quero todas as informações pertinentes aos dois casos na minha mesa o mais rápido possível. Estou assumindo pessoalmente as duas investigações. Tente dar a esfumaçada usual para a imprensa, não queremos ninguém em pânico... ainda.
* * *
- O cara é esperto.
Freitas anuiu. Andava em círculos pela sala, o que sempre lhe ajudava a pensar, enquanto Marcos sentava na beirada da mesa. A perícia nada tinha encontrado na casa de Ursula, nenhuma pista indicando quem poderia estar por trás dos dois assassinatos.
- Se o primeiro crime não tivesse sido analisado por um novato, poderia haver alguma pista, Roberto. Os erros são mais facilmente cometidos na primeira vez...
- ... mas a cidade é muito grande, e a menina não era tão importante - interrompeu o detetive, num amargo sarcasmo.
Foi a vez de Marcos concordar silenciosamente.
- Viu o resultado da perícia? - finalmente falou o auxiliar.
- Sim. Uma pena não terem encontrado pistas que auxiliem na identidade, mas deixa tudo ainda mais intrigante. Uma garota atraente e uma ex-modelo bem conservada. Entretanto, nem o mínimo sinal de abuso sexual. A motivação mais óbvia não é a verdadeira.
- Crime ritualístico?
- Não. O único padrão é o modo de torturar e matar. Não necessariamente implica em um ritual. Pode ser apenas o meio mais conveniente que o sujeito achou para atingir seus fins.
- É realmente difícil ver padrões com apenas dois crimes... mas quem desejaria esperar pelo terceiro?
- Ninguém, por certo.
O telefone tocou ao lado de Marcos.
Os dois homens se entreolharam. A mesma coisa passou pelas duas mentes.
O auxiliar atendeu ao telefone. Sua expressão logo se tornou angustiada. Com apenas mais algumas palavras, passou de angustiada a simplesmente aterrorizada.
Um "estamos a caminho" encerrou a ligação.
- Mais uma? - questionou o detetive.
- Não - respondeu o outro, pálido - Mais duas.
* * *
Freitas não era gélido, apenas frio. Era um meio de se desligar do desespero humano diante de situações horríveis e poder trabalhar melhor. Com a mente serena, sua contribuição para a sociedade seria muito maior do que se ficasse enjoado e proferindo pragas aos quatro ventos, como fazia agora Marcos.
- Filho duma puta desgraçado, como pode ser capaz de uma coisa dessas?
Freitas ignorava o amigo. Não deixava de sentir um choque interno diante da situação, mas preferia manter-se focado nos documentos que manipulava.
- Ticiane Pinheiro Cardoso, dezenove anos, e Eliane Pinheiro Cardoso, quinze. Parece que os pais gostavam de nomes que rimam - bufou Marcos, tentando mascarar a angústia com ironia.
- Sem dúvida eles não apreciariam a sua piada nesse momento.
- Me dá um tempo, Roberto. Em vinte anos de trabalho eu nunca tinha visto uma coisa dessas.
- Sorte sua ter ficado doente durante o caso do Juquinha Empalador.
- Tinha vontade de vomitar só com as notícias. As crianças não são mais as mesmas.
Não havia empalamento naquela cena, mas não era menos chocante. As duas irmãs foram mortas na sala do próprio apartamento. Foram encontradas às sete da noite pelos pais, que voltavam juntos do trabalho. Nenhum vizinho ouvira nada, possivelmente cortesia da garganta degolada da mais velha e das mãos do matador na outra. Freitas se perguntava qual das meninas tivera o pior destino: morrendo sufocada em seu próprio sangue, ou assistindo à agonia da outra enquanto o assassino procedia com maior diligência. A resposta não seria tão fácil, se a maioria das pessoas soubesse que a morte por traquéia dilacerada, sem o corte das carótidas, não é tão rápida quanto os filmes fazem pensar.
- Eu consegui trocar algumas palavras apenas com a mãe - disse Freitas - pois o pai colapsou e não consegue parar de chorar até agora. O que descobri pode fazer o seu enjôo indignado virar imediatamente uma bela golfada.
- Espere-me pegar meu saquinho de vômito e pode contar.
- As duas meninas, lindas e geneticamente abençoadas, eram contratadas da Beautx. A agência de modelos de você sabe quem.
- Não fod...
Um dos peritos que analisava o corpo da irmã mais nova chamou o detetive.
- O que encontrou, Boris?
- Veja, senhor.
O detetive se abaixou para enxergar o delicado material que o perito raspava das unhas da adolescente.
- Bendita a vaidade das garotas de hoje em dia e suas longas garras - comentou Marcos.
- Ela conseguiu lutar mais do que Ursula. Não é tão fácil lidar com dois alvos ao mesmo tempo - observou o detetive.
- Não sei se poderemos tirar muita informação de algumas células epidérmicas, senhor. Mas ao menos algumas informações básicas poderemos obter.
- Já é um começo, meu caro. Bom trabalho.
- Isso se tivermos tempo - concluiu Marcos, sombrio.
* * *
Estavam de volta ao escritório, entre papéis e mais papéis. Era quatro da manhã, sete horas após o homicídio duplo. Marcos tinha os olhos vermelhos, Freitas tomava refrigerantes sem parar.
- Roberto, não aguento mais. Eu preciso dormir.
- Vá lavar a cara e continue a pensar.
- Você não está cansado?
- Refrigerantes de cola, tome cinco vezes mais e tenha toda a cafeína de uma dose de café.
O detetive continuava a caminhar em círculos na sala.
- Não temo um padrão de tempo estabelecido. O primeiro crime ocorreu três dias após o primeiro. O outro apenas dois dias depois. Não temos abuso sexual, não temos ritual, não temos motivação. Apenas uma conexão clara: a agência de modelos.
- E a primeira vítima?
- Um interrogatório mais elaborado com os pais verificou que a moça tinha feito um teste para a agência. Aparentemente tinha ficado bem colocada e poderia ser chamada em breve.
Marcos soltou um assobio.
- A morte de Ursula mobilizou uma série de recursos para o caso, não é, Roberto? A mulher tinha amigos influentes.
- É uma sorte para os próximos alvos.
- Sim, pois esse cara não vai parar até ser pego. Se fosse esperto, daria uma pausa agora, os crimes já ganharam todas as manchetes.
- Esse tipo de animal não pensa tão racionalmente, Marcos. Podem ser frios e espertos. Mas matar é um vício ao qual eles não podem fugir.
O auxiliar remexeu novamente nos papéis. Não tinha sido possível encobrir mais o caso, que ganhara a capa de todos os jornais.
- "O Maníaco das Modelos". Se não fosse tão trágico, eu teria vontade de rir dos jornalistas.
- Há um problema maior que este nessas manchetes.
- Qual seria, Roberto?
- Nada nos diz que seja um homem.
O auxiliar parou para pensar.
- É verdade.
- Pode ser uma das modelos da agência eliminando concorrência. Ou uma menina com altos sonhos que foi rejeitada.
- Isso se encaixaria bem com a ausência de violência sexual.
- Quero todas as informações pertinentes a todas as agenciadas, e de todas as seleções feitas no último ano. Coloque todos aqueles que estiverem disponíveis em busca de conexões. E alguns homens de plantão naquela bendita agência.
- Todas as agenciadas? A Beautx é uma das maiores agências da cidade, inclusive com filiais e agenciadas em outras cidades.
- Não temos outro ponto de partida. E se preocupe apenas com a central da cidade. Nada ainda nos indica que esse ou essa maluca tem interesses intermunicipais.
* * *
Quatro horas depois, Freitas se agachava para observar um novo cadáver.
- Esse cara é completamente louco, Freitas! Ou louca, que seja! Quanto mais atenção seus crimes recebem, mais rápido está matando!
- Sim, Marcos. E agora pare de agitar os braços e me diga a novidade - foi a resposta seca.
O auxiliar ficou calado. Conhecia bem o bastante o amigo para reconhecer aquele tom de voz ríspido. As mortes estavam sendo mais rápidas que o esperado e o detetive não conseguia ter tempo para pensar e agir. Os testes e laudos demoravam, a polícia era simplesmente lerda demais para o assassino. E aquilo não o deixava nada feliz.
Amanda Rodrigues estava estirada no chão de seu quarto. Desta vez, a morte foi rápida. A casa da família era relativamente isolada, na tranquila periferia de uma cidade do interior onde a garota vivera seus vinte e dois anos. O assassino entrou na madrugada, quando todos na casa dormiam, possivelmente pulando uma janela aberta. A cena do crime sugeria pouca luta antes do degolamento, desta vez rompendo as artérias principais do pescoço e dando um fim sucinto à vida da jovem. Quando os pais ouviram o barulho de um abajur caindo ao chão, adentraram no quarto apenas a tempo de ver a filha tendo as últimas convulsões. O pai, desesperado, saiu correndo pelo terreno atirando com a espingarda, mas não havia mais sinal do agressor.
- Isso acaba com nossa teoria?
- Nem tanto, Roberto. A garota tinha acabado de ser contratada por uma agência de modelos. Foi selecionada para um primeiro trabalho e em breve pretendia se mudar para a capital. Não preciso dizer qual a agência, certo?
O celular de Freitas tocou.
Ouviu atentamente o que lhe falavam, respondendo apenas com rápidos monossílabos. Fez uma pergunta e esperou longamente pela resposta. Quando esta veio, se deu por satisfeito. Ao desligar, Marcos esperava pelo pior.
- Mais uma, já?
- Não, ao menos desta vez - respondeu - Nós temos um suspeito.
* * *
- Um dos rapazes que enviamos para pegar os dados na Beautx ficou sabendo que um dos empregados não apareceu no trabalho nos últimos sete dias, sem dar satisfação - Freitas dirigia em alta velocidade na rodovia que levava de volta à capital - José Carlos Silveira Júnior, vinte e seis anos, auxiliar de serviços gerais. Rapaz solitário, veio de outro estado, a família mora longe.
- É um perfil atraente, mas a princípio não nos diz nada.
- Seria apenas uma suspeita, se não fosse pelo laudo relativo ao material encontrado nas unhas daquela garota.
- O laudo chegou e você não me avisou?
- Ficou pronto quando estávamos vindo para cá e você roncava alto no carro. As horas gastas convencendo um perito preguiçoso a fazer hora extra na alta noite podem ter custado a vida de alguém.
- Malditos funcionários públicos. Quero dizer, aqueles que se tornam folgados antiéticos, não nós. E o que o laudo revelou?
- Que nossa suspeita de ontem não se fundamenta. Temos um assassino com um cromossomo Y. Isso significa um homem, caso você tenha escapado das aulas de ciências. E, acima de tudo, o tipo de sangue bate.
- Isso realmente torna o sujeito muito suspeito.
- Mais do que você imagina. O sangue dele é O negativo.
- Filho da mãe! É ele, sem dúvida! Para onde estamos indo agora?
- Para a residência do Zeca. Fiz o nosso sistema moroso chacoalhar e o mandado de busca já está a caminho.
- Talvez não o tenhamos em mão na hora certa, essas coisas sempre atrasam.
- Então arrombamos a porta primeiro e mostramos o mandato depois. Estamos numa corrida e não estou disposto a perder mais nenhum segundo - respondeu, pisando ainda mais fundo no acelerador.
* * *
Às dez da manhã, a dupla chegava à porta da pequena casa alugada no subúrbio. Dois policiais se encontravam próximos de entrada. Dirigiram-se a Freitas.
- Senhor, estamos aqui há uma hora, segundo seu pedido. Nem sinal do sujeito na casa.
- E por que não entraram ainda?
- Bem, não recebemos confirmação da expedição do mandato e...
- Jovens... - resmungou Marcos, indo em direção a uma janela. Com uma coronhada, quebrou o vidro e abriu-a por dentro.
Os dois policiais vasculharam a casa sem encontrar nenhum ser vivo além de um gato magro, que se escondeu embaixo do sofá, miando. A casa estava em ordem e parecia estar sendo usada na última semana.
- Ele não está aqui agora, Roberto.
- O que só pode significar uma coisa: ou ele estava doente e foi trabalhar nesta manhã e devemos desculpas ao Sr. Silveira...
- ... ou já está atrás da próxima vítima. Temos que localizá-lo imediatamente!
Enquanto Marcos remexia móveis e papéis em busca de qualquer pista, Freitas pegou o telefone. Discou para o setor de comunicações da polícia.
- Alô, aqui é o detetive Roberto Freitas, identificação 0032123-978-7. Preciso que você localize com urgência todas as ligações feitas por este número nas últimas seis horas.
- Sim senhor, estarei encaminhando o pedido para...
- Meu rapaz, cheque a minha patente e consiga estes dados agora. Passe para o detetive Robson no ramal 5674 e diga-lhe para cruzar com os números que ele têm à disposição. Se ele não me ligar de volta em dez minutos, creia que amanhã os únicos números que você estará checando serão os de alguma empresa de telemarketing!
Desligou e Marcos o encarou.
- Crueldade com os mais novos, hein?
- Odeio fazer isso, mas às vezes é necessário berrar com os moleques para mostrar-lhes o significado da palavra "urgente".
- Mal entram e já começar a amolecer o corpo... Aprendem com os mais velhos.
- Agora temos que esperar pelo Robson. Ele estava com os dados das agenciadas da Beautx e, com sorte, irá achar um número que bata.
- E esta será o próximo alvo?
- Sem dúvida. Notou que todos os crimes foram executados na casa das vítimas?
- Sim, é verdade...
- Qual a melhor forma de saber se seu alvo está em casa do que ligando para o telefone fixo?
- Genial.
Em menos de dez minutos, o celular tocou. Freitas atendeu e pegou um papel qualquer em cima da mesa para anotar.
- Certo... Michelle Luize Bistroff... me passe o endereço e os telefones dela... Sim, ok, obrigado, Robson. Mande os carros que conseguir para lá, estamos indo agora mesmo.
Mesmo antes do detetive desligar, Marcos estava ligando para o telefone celular anotado.
- Não atende.
- E o telefone de casa?
Nova ligação.
- Ocupado.
- Merda. Mas isso quer dizer que ela está em casa. Vamos!
Os dois saíram em disparada para o carro, acompanhados pelos jovens policiais. O apartamento da modelo era relativamente próximo de onde estavam, mas precisavam voar por entre as ruas apinhadas ruas da cidade, pois cada minuto poderia fazer a diferença.
Chegaram ao prédio quase simultaneamente com outra viatura. Os homens pularam dos carros, praticamente arrombando a portaria para entrar. Dois policiais permaneceram embaixo para vigiar as saídas, enquanto outra dupla corria pelas escadas. Marcos e Freitas subiram pelo elevador.
Os quatro se encontraram no andar do apartamento. Correram para a porta e Freitas tentou a maçaneta: trancada. Encostou o ouvido na porta e ouviu um gemido feminino.
- Ele está aí! Vocês dois, entrem comigo. Marcos, vigie a porta - não havia mais um resquício de frieza em sua expressão furiosa - Eu mesmo quero pegar o desgraçado!
Os policiais arrombaram a porta com chutes e entraram no confortável apartamento. Nada na sala. De repente, um terrível berro estrangulado veio de uma porta. Marcos observou os companheiros correrem para o que parecia ser um quarto. Gritos vieram dos policiais e de uma voz desconhecida. Barulho de coisas quebrando e dois disparos. E então, silêncio.
Freitas saiu do quarto cambaleante, com ferimentos no rosto e um corte no braço. Desabou no sofá da sala. Marcos correu para ajudar o amigo.
- Não, pode deixar. Eu estou bem...
- Tem certeza?
- Sim, vou sobreviver.
- E então?
- É o fim da linha para o maldito... e...
Parou de falar por um instante. Marcos percebeu então algo que não via há décadas: os olhos do amigo estavam marejados.
- E...? - perguntou ao detetive - Fale, Roberto!
- ... e para a garota também...
* * *
A central permanecia silenciosa na madrugada. A maioria dos escritórios estavam escuros, mas uma luz de mesa e a tela do computador iluminavam a sala do detetive Roberto Freitas. Há dois dias atrás, ele estava dando entrevistas sobre a captura do Maníaco das Modelos. Agora, sua ansiedade o impedia de aguardar a possibilidade de interrogar o assassino, baleado em sua última tentativa de escapar e à beira da morte. Ele não conseguia parar de pensar nas motivações por trás da psicose. Não o satisfazia a solução fácil dos jornais, de que era um maníaco frustrado e sexualmente enrustido se vingando contra as mulheres bonitas que, dia após dia, o ignoravam nos corredores da Beautx. Não, havia algo a mais ali que lhe incomodava, lhe dando uma desconfortável sensação de trabalho inacabado.
Abriu mais uma cola, tentando estimular os pensamentos com gás e cafeína. Matar em casa era um padrão, mas não uma motivação. Pensou que cada uma das meninas podia ter lhe dado um motivo especial para vingança, mas a tese não se sustentava. A garota da outra cidade, Amanda, sequer passara pela central da Beautx durante seu rápido primeiro trabalho. Não havia um padrão de aparência, cor de cabelo, pele, olhos ou qualquer outra característica física. As idades, talvez? Olhou para a lista na tela luminosa:
Elise Lara Araújo, 20 anos
Ursula de Mendonça Aguiar, 47 anos
Ticiane Pinheiro Cardoso, 19 anos
Eliane Pinheiro Cardoso, 15 anos
Amanda Rodrigues, 25 anos
Michelle Luize Bistroff, 22 anos
Não, não fazia o menor sentido, a não ser que houvesse uma lógica matemática bizarra envolvida, e...
De repente, ele viu.
Ficou estático, com a lata a meio caminho da boca entreaberta.
- Filho da... - não conseguiu terminar a frase balbuciante.
O padrão saltou para seus olhos em toda sua obviedade. A lógica estava ali, sem sombra de dúvida. Freitas começou a se punir internamente por não tê-la visto. Afinal, era clara. Tão clara quando o fato de que, muito provavelmente, aquilo ainda não havia acabado.
* * *
FINAL 1
A respiração do homem era fraca e suave, tanto quanto seus sofridos batimentos cardíacos. O coração ainda lutava para bombear sangue para o resto do corpo, irrigando um cérebro transitando entre a consciência e o oblívio. Seus ferimentos eram graves, mas a alma parecia relutante em abandonar o corpo, como se alguma coisa ainda a prendesse ao mundo. Uma tarefa por acabar, ou um sonho a realizar, talvez.
O policial sentado no quarto do hospital se perguntava por que tanto trabalho para salvar uma aberração daquelas. Certamente a vida de cada uma das garotas valia muito mais do que a daquele traste inumano, e não houvera consideração nenhuma por parte deste na hora de tirá-las.
Balançou a cabeça e voltou-se para a televisão, sua única distração naquela guarda inútil. Esperava ansiosamente pelas notícias esportivas, quando surgiu a chamada: um rapaz fora encontrado morto há poucas horas em seu apartamento. Apenas mais um acontecimento insignificante numa megalópole, não fosse pelo fato de Orlando de Mattos Bonfim, vinte e seis anos, ser modelo da Beautx, a agência que há apenas dois dias ainda sofria com o terror de um psicopata que a polícia dizia agora estar preso.
O policial voltou-se transtornado para o homem deitando na maca, e podia jurar ter visto um débil sorriso surgir em seus lábios antes do bipar do monitor cardíaco se tornar um assobio contínuo.
FINAL 2
A respiração do homem era fraca e suave, tanto quanto seus sofridos batimentos cardíacos. O coração ainda lutava para bombear sangue para o resto do corpo, irrigando um cérebro transitando entre a consciência e o oblívio. Seus ferimentos eram graves, mas sua mente parecia relutante em abandonar o corpo. Alguma coisa o prendia àquele mundo, e ele não podia se deixar morrer ainda.
O policial sentado no quarto do hospital se perguntava por que tanto trabalho para salvar uma aberração daquelas. Certamente a vida de cada uma das garotas valia muito mais do que a daquele traste inumano, e não houvera consideração nenhuma por parte deste na hora de tirá-las. Balançou a cabeça e voltou-se para a televisão, sua única distração naquela guarda inútil.
A mente entorpecida do homem emergiu mais para a realidade ao captar a palavra "Beautx". O jornal noticiava que um rapaz fora encontrado morto há poucas horas em seu apartamento. Apenas mais um acontecimento insignificante numa megalópole, não fosse pelo fato de Orlando de Mattos Bonfim, vinte e seis anos, ser modelo da agência que há apenas dois dias ainda sofria com o terror de um psicopata que a polícia dizia agora estar preso.
Com aquelas palavras, seu corpo pôde relaxar inteiramente. Agora não precisava mais se preocupar com seu estado crítico. Sabia que sua declaração fora aceita e que alguém lá fora também o amava. Com um débil sorriso no rosto, ouviu o bipar do monitor cardíaco se tornar um assobio contínuo antes de soltar sua última expiração.
O detetive Freitas olhou com certa frieza para a cena do crime. Não importava o sangue, as lacerações, a monstruosidade deliberada com o qual a mulher fora morta. O que o fazia ver uma triste ironia naquilo tudo era o fato de que jamais haveria tantos oficiais ali se a vítima fosse uma pessoa comum. O próprio Freitas, ocupando um cargo de alto status por conta apenas de seus méritos, não seria tirado do escritório por "qualquer" crime.
Mas Ursula de Mendonça Aguiar não era uma mulher comum. Era a gerente de negócios de uma poderosa agência de modelos. Mulher rica, poderosa, madura, mas ainda conservando a beleza que lhe rendera fama na juventude.
Seu auxiliar de confiança entrou no quarto carregando uma pasta. Diante da cena, baixou os olhos, respirou fundo, e permaneceu de costas para a cama ensanguentada.
- Mofar no gabinete lhe tirou o estômago, Marcos? - perguntou Freitas, observando o trabalho dos peritos.
- Eu nunca vou me acostumar a ver crueldades como essa, Roberto.
- Fique feliz, meu amigo. É triste alguém perceber que precisou largar mão da sua humanidade para realizar seu trabalho direito.
- A humanidade certamente lhe agradece, desumano Freitas.
O detetive sorriu.
- Alguma novidade nesses papéis?
- Sim, é algo que pode estremecer até um coração gelado.
- Fale e vamos ver se eu me arrepio.
- Não é um caso isolado.
Freitas voltou-se para o companheiro.
- Como assim?
- Elise Lara Araújo, vinte e três anos, estudante, mora na cidade. Menina linda, classe média, grande futuro pela frente. Encontrada morta em casa há três dias. Crime chocante, recebeu alguma atenção nos jornais.
- Qual a conexão?
- Veja as fotos tiradas pelo rapaz que avaliou o caso.
Os olhos experientes do detetive não precisaram de mais do que alguns instantes para captar as informações. A cena era diferente, é claro, mas os requintes de crueldade eram facilmente reconhecíveis.
- Merda.
- Sim, mais um louco à solta.
- Loucos todos somos de viver nesse mundo pirado, Marcos. Alguns apenas não conseguem se conter.
- O que faremos, Vossa Insanidade?
- Quero todas as informações pertinentes aos dois casos na minha mesa o mais rápido possível. Estou assumindo pessoalmente as duas investigações. Tente dar a esfumaçada usual para a imprensa, não queremos ninguém em pânico... ainda.
* * *
- O cara é esperto.
Freitas anuiu. Andava em círculos pela sala, o que sempre lhe ajudava a pensar, enquanto Marcos sentava na beirada da mesa. A perícia nada tinha encontrado na casa de Ursula, nenhuma pista indicando quem poderia estar por trás dos dois assassinatos.
- Se o primeiro crime não tivesse sido analisado por um novato, poderia haver alguma pista, Roberto. Os erros são mais facilmente cometidos na primeira vez...
- ... mas a cidade é muito grande, e a menina não era tão importante - interrompeu o detetive, num amargo sarcasmo.
Foi a vez de Marcos concordar silenciosamente.
- Viu o resultado da perícia? - finalmente falou o auxiliar.
- Sim. Uma pena não terem encontrado pistas que auxiliem na identidade, mas deixa tudo ainda mais intrigante. Uma garota atraente e uma ex-modelo bem conservada. Entretanto, nem o mínimo sinal de abuso sexual. A motivação mais óbvia não é a verdadeira.
- Crime ritualístico?
- Não. O único padrão é o modo de torturar e matar. Não necessariamente implica em um ritual. Pode ser apenas o meio mais conveniente que o sujeito achou para atingir seus fins.
- É realmente difícil ver padrões com apenas dois crimes... mas quem desejaria esperar pelo terceiro?
- Ninguém, por certo.
O telefone tocou ao lado de Marcos.
Os dois homens se entreolharam. A mesma coisa passou pelas duas mentes.
O auxiliar atendeu ao telefone. Sua expressão logo se tornou angustiada. Com apenas mais algumas palavras, passou de angustiada a simplesmente aterrorizada.
Um "estamos a caminho" encerrou a ligação.
- Mais uma? - questionou o detetive.
- Não - respondeu o outro, pálido - Mais duas.
* * *
Freitas não era gélido, apenas frio. Era um meio de se desligar do desespero humano diante de situações horríveis e poder trabalhar melhor. Com a mente serena, sua contribuição para a sociedade seria muito maior do que se ficasse enjoado e proferindo pragas aos quatro ventos, como fazia agora Marcos.
- Filho duma puta desgraçado, como pode ser capaz de uma coisa dessas?
Freitas ignorava o amigo. Não deixava de sentir um choque interno diante da situação, mas preferia manter-se focado nos documentos que manipulava.
- Ticiane Pinheiro Cardoso, dezenove anos, e Eliane Pinheiro Cardoso, quinze. Parece que os pais gostavam de nomes que rimam - bufou Marcos, tentando mascarar a angústia com ironia.
- Sem dúvida eles não apreciariam a sua piada nesse momento.
- Me dá um tempo, Roberto. Em vinte anos de trabalho eu nunca tinha visto uma coisa dessas.
- Sorte sua ter ficado doente durante o caso do Juquinha Empalador.
- Tinha vontade de vomitar só com as notícias. As crianças não são mais as mesmas.
Não havia empalamento naquela cena, mas não era menos chocante. As duas irmãs foram mortas na sala do próprio apartamento. Foram encontradas às sete da noite pelos pais, que voltavam juntos do trabalho. Nenhum vizinho ouvira nada, possivelmente cortesia da garganta degolada da mais velha e das mãos do matador na outra. Freitas se perguntava qual das meninas tivera o pior destino: morrendo sufocada em seu próprio sangue, ou assistindo à agonia da outra enquanto o assassino procedia com maior diligência. A resposta não seria tão fácil, se a maioria das pessoas soubesse que a morte por traquéia dilacerada, sem o corte das carótidas, não é tão rápida quanto os filmes fazem pensar.
- Eu consegui trocar algumas palavras apenas com a mãe - disse Freitas - pois o pai colapsou e não consegue parar de chorar até agora. O que descobri pode fazer o seu enjôo indignado virar imediatamente uma bela golfada.
- Espere-me pegar meu saquinho de vômito e pode contar.
- As duas meninas, lindas e geneticamente abençoadas, eram contratadas da Beautx. A agência de modelos de você sabe quem.
- Não fod...
Um dos peritos que analisava o corpo da irmã mais nova chamou o detetive.
- O que encontrou, Boris?
- Veja, senhor.
O detetive se abaixou para enxergar o delicado material que o perito raspava das unhas da adolescente.
- Bendita a vaidade das garotas de hoje em dia e suas longas garras - comentou Marcos.
- Ela conseguiu lutar mais do que Ursula. Não é tão fácil lidar com dois alvos ao mesmo tempo - observou o detetive.
- Não sei se poderemos tirar muita informação de algumas células epidérmicas, senhor. Mas ao menos algumas informações básicas poderemos obter.
- Já é um começo, meu caro. Bom trabalho.
- Isso se tivermos tempo - concluiu Marcos, sombrio.
* * *
Estavam de volta ao escritório, entre papéis e mais papéis. Era quatro da manhã, sete horas após o homicídio duplo. Marcos tinha os olhos vermelhos, Freitas tomava refrigerantes sem parar.
- Roberto, não aguento mais. Eu preciso dormir.
- Vá lavar a cara e continue a pensar.
- Você não está cansado?
- Refrigerantes de cola, tome cinco vezes mais e tenha toda a cafeína de uma dose de café.
O detetive continuava a caminhar em círculos na sala.
- Não temo um padrão de tempo estabelecido. O primeiro crime ocorreu três dias após o primeiro. O outro apenas dois dias depois. Não temos abuso sexual, não temos ritual, não temos motivação. Apenas uma conexão clara: a agência de modelos.
- E a primeira vítima?
- Um interrogatório mais elaborado com os pais verificou que a moça tinha feito um teste para a agência. Aparentemente tinha ficado bem colocada e poderia ser chamada em breve.
Marcos soltou um assobio.
- A morte de Ursula mobilizou uma série de recursos para o caso, não é, Roberto? A mulher tinha amigos influentes.
- É uma sorte para os próximos alvos.
- Sim, pois esse cara não vai parar até ser pego. Se fosse esperto, daria uma pausa agora, os crimes já ganharam todas as manchetes.
- Esse tipo de animal não pensa tão racionalmente, Marcos. Podem ser frios e espertos. Mas matar é um vício ao qual eles não podem fugir.
O auxiliar remexeu novamente nos papéis. Não tinha sido possível encobrir mais o caso, que ganhara a capa de todos os jornais.
- "O Maníaco das Modelos". Se não fosse tão trágico, eu teria vontade de rir dos jornalistas.
- Há um problema maior que este nessas manchetes.
- Qual seria, Roberto?
- Nada nos diz que seja um homem.
O auxiliar parou para pensar.
- É verdade.
- Pode ser uma das modelos da agência eliminando concorrência. Ou uma menina com altos sonhos que foi rejeitada.
- Isso se encaixaria bem com a ausência de violência sexual.
- Quero todas as informações pertinentes a todas as agenciadas, e de todas as seleções feitas no último ano. Coloque todos aqueles que estiverem disponíveis em busca de conexões. E alguns homens de plantão naquela bendita agência.
- Todas as agenciadas? A Beautx é uma das maiores agências da cidade, inclusive com filiais e agenciadas em outras cidades.
- Não temos outro ponto de partida. E se preocupe apenas com a central da cidade. Nada ainda nos indica que esse ou essa maluca tem interesses intermunicipais.
* * *
Quatro horas depois, Freitas se agachava para observar um novo cadáver.
- Esse cara é completamente louco, Freitas! Ou louca, que seja! Quanto mais atenção seus crimes recebem, mais rápido está matando!
- Sim, Marcos. E agora pare de agitar os braços e me diga a novidade - foi a resposta seca.
O auxiliar ficou calado. Conhecia bem o bastante o amigo para reconhecer aquele tom de voz ríspido. As mortes estavam sendo mais rápidas que o esperado e o detetive não conseguia ter tempo para pensar e agir. Os testes e laudos demoravam, a polícia era simplesmente lerda demais para o assassino. E aquilo não o deixava nada feliz.
Amanda Rodrigues estava estirada no chão de seu quarto. Desta vez, a morte foi rápida. A casa da família era relativamente isolada, na tranquila periferia de uma cidade do interior onde a garota vivera seus vinte e dois anos. O assassino entrou na madrugada, quando todos na casa dormiam, possivelmente pulando uma janela aberta. A cena do crime sugeria pouca luta antes do degolamento, desta vez rompendo as artérias principais do pescoço e dando um fim sucinto à vida da jovem. Quando os pais ouviram o barulho de um abajur caindo ao chão, adentraram no quarto apenas a tempo de ver a filha tendo as últimas convulsões. O pai, desesperado, saiu correndo pelo terreno atirando com a espingarda, mas não havia mais sinal do agressor.
- Isso acaba com nossa teoria?
- Nem tanto, Roberto. A garota tinha acabado de ser contratada por uma agência de modelos. Foi selecionada para um primeiro trabalho e em breve pretendia se mudar para a capital. Não preciso dizer qual a agência, certo?
O celular de Freitas tocou.
Ouviu atentamente o que lhe falavam, respondendo apenas com rápidos monossílabos. Fez uma pergunta e esperou longamente pela resposta. Quando esta veio, se deu por satisfeito. Ao desligar, Marcos esperava pelo pior.
- Mais uma, já?
- Não, ao menos desta vez - respondeu - Nós temos um suspeito.
* * *
- Um dos rapazes que enviamos para pegar os dados na Beautx ficou sabendo que um dos empregados não apareceu no trabalho nos últimos sete dias, sem dar satisfação - Freitas dirigia em alta velocidade na rodovia que levava de volta à capital - José Carlos Silveira Júnior, vinte e seis anos, auxiliar de serviços gerais. Rapaz solitário, veio de outro estado, a família mora longe.
- É um perfil atraente, mas a princípio não nos diz nada.
- Seria apenas uma suspeita, se não fosse pelo laudo relativo ao material encontrado nas unhas daquela garota.
- O laudo chegou e você não me avisou?
- Ficou pronto quando estávamos vindo para cá e você roncava alto no carro. As horas gastas convencendo um perito preguiçoso a fazer hora extra na alta noite podem ter custado a vida de alguém.
- Malditos funcionários públicos. Quero dizer, aqueles que se tornam folgados antiéticos, não nós. E o que o laudo revelou?
- Que nossa suspeita de ontem não se fundamenta. Temos um assassino com um cromossomo Y. Isso significa um homem, caso você tenha escapado das aulas de ciências. E, acima de tudo, o tipo de sangue bate.
- Isso realmente torna o sujeito muito suspeito.
- Mais do que você imagina. O sangue dele é O negativo.
- Filho da mãe! É ele, sem dúvida! Para onde estamos indo agora?
- Para a residência do Zeca. Fiz o nosso sistema moroso chacoalhar e o mandado de busca já está a caminho.
- Talvez não o tenhamos em mão na hora certa, essas coisas sempre atrasam.
- Então arrombamos a porta primeiro e mostramos o mandato depois. Estamos numa corrida e não estou disposto a perder mais nenhum segundo - respondeu, pisando ainda mais fundo no acelerador.
* * *
Às dez da manhã, a dupla chegava à porta da pequena casa alugada no subúrbio. Dois policiais se encontravam próximos de entrada. Dirigiram-se a Freitas.
- Senhor, estamos aqui há uma hora, segundo seu pedido. Nem sinal do sujeito na casa.
- E por que não entraram ainda?
- Bem, não recebemos confirmação da expedição do mandato e...
- Jovens... - resmungou Marcos, indo em direção a uma janela. Com uma coronhada, quebrou o vidro e abriu-a por dentro.
Os dois policiais vasculharam a casa sem encontrar nenhum ser vivo além de um gato magro, que se escondeu embaixo do sofá, miando. A casa estava em ordem e parecia estar sendo usada na última semana.
- Ele não está aqui agora, Roberto.
- O que só pode significar uma coisa: ou ele estava doente e foi trabalhar nesta manhã e devemos desculpas ao Sr. Silveira...
- ... ou já está atrás da próxima vítima. Temos que localizá-lo imediatamente!
Enquanto Marcos remexia móveis e papéis em busca de qualquer pista, Freitas pegou o telefone. Discou para o setor de comunicações da polícia.
- Alô, aqui é o detetive Roberto Freitas, identificação 0032123-978-7. Preciso que você localize com urgência todas as ligações feitas por este número nas últimas seis horas.
- Sim senhor, estarei encaminhando o pedido para...
- Meu rapaz, cheque a minha patente e consiga estes dados agora. Passe para o detetive Robson no ramal 5674 e diga-lhe para cruzar com os números que ele têm à disposição. Se ele não me ligar de volta em dez minutos, creia que amanhã os únicos números que você estará checando serão os de alguma empresa de telemarketing!
Desligou e Marcos o encarou.
- Crueldade com os mais novos, hein?
- Odeio fazer isso, mas às vezes é necessário berrar com os moleques para mostrar-lhes o significado da palavra "urgente".
- Mal entram e já começar a amolecer o corpo... Aprendem com os mais velhos.
- Agora temos que esperar pelo Robson. Ele estava com os dados das agenciadas da Beautx e, com sorte, irá achar um número que bata.
- E esta será o próximo alvo?
- Sem dúvida. Notou que todos os crimes foram executados na casa das vítimas?
- Sim, é verdade...
- Qual a melhor forma de saber se seu alvo está em casa do que ligando para o telefone fixo?
- Genial.
Em menos de dez minutos, o celular tocou. Freitas atendeu e pegou um papel qualquer em cima da mesa para anotar.
- Certo... Michelle Luize Bistroff... me passe o endereço e os telefones dela... Sim, ok, obrigado, Robson. Mande os carros que conseguir para lá, estamos indo agora mesmo.
Mesmo antes do detetive desligar, Marcos estava ligando para o telefone celular anotado.
- Não atende.
- E o telefone de casa?
Nova ligação.
- Ocupado.
- Merda. Mas isso quer dizer que ela está em casa. Vamos!
Os dois saíram em disparada para o carro, acompanhados pelos jovens policiais. O apartamento da modelo era relativamente próximo de onde estavam, mas precisavam voar por entre as ruas apinhadas ruas da cidade, pois cada minuto poderia fazer a diferença.
Chegaram ao prédio quase simultaneamente com outra viatura. Os homens pularam dos carros, praticamente arrombando a portaria para entrar. Dois policiais permaneceram embaixo para vigiar as saídas, enquanto outra dupla corria pelas escadas. Marcos e Freitas subiram pelo elevador.
Os quatro se encontraram no andar do apartamento. Correram para a porta e Freitas tentou a maçaneta: trancada. Encostou o ouvido na porta e ouviu um gemido feminino.
- Ele está aí! Vocês dois, entrem comigo. Marcos, vigie a porta - não havia mais um resquício de frieza em sua expressão furiosa - Eu mesmo quero pegar o desgraçado!
Os policiais arrombaram a porta com chutes e entraram no confortável apartamento. Nada na sala. De repente, um terrível berro estrangulado veio de uma porta. Marcos observou os companheiros correrem para o que parecia ser um quarto. Gritos vieram dos policiais e de uma voz desconhecida. Barulho de coisas quebrando e dois disparos. E então, silêncio.
Freitas saiu do quarto cambaleante, com ferimentos no rosto e um corte no braço. Desabou no sofá da sala. Marcos correu para ajudar o amigo.
- Não, pode deixar. Eu estou bem...
- Tem certeza?
- Sim, vou sobreviver.
- E então?
- É o fim da linha para o maldito... e...
Parou de falar por um instante. Marcos percebeu então algo que não via há décadas: os olhos do amigo estavam marejados.
- E...? - perguntou ao detetive - Fale, Roberto!
- ... e para a garota também...
* * *
A central permanecia silenciosa na madrugada. A maioria dos escritórios estavam escuros, mas uma luz de mesa e a tela do computador iluminavam a sala do detetive Roberto Freitas. Há dois dias atrás, ele estava dando entrevistas sobre a captura do Maníaco das Modelos. Agora, sua ansiedade o impedia de aguardar a possibilidade de interrogar o assassino, baleado em sua última tentativa de escapar e à beira da morte. Ele não conseguia parar de pensar nas motivações por trás da psicose. Não o satisfazia a solução fácil dos jornais, de que era um maníaco frustrado e sexualmente enrustido se vingando contra as mulheres bonitas que, dia após dia, o ignoravam nos corredores da Beautx. Não, havia algo a mais ali que lhe incomodava, lhe dando uma desconfortável sensação de trabalho inacabado.
Abriu mais uma cola, tentando estimular os pensamentos com gás e cafeína. Matar em casa era um padrão, mas não uma motivação. Pensou que cada uma das meninas podia ter lhe dado um motivo especial para vingança, mas a tese não se sustentava. A garota da outra cidade, Amanda, sequer passara pela central da Beautx durante seu rápido primeiro trabalho. Não havia um padrão de aparência, cor de cabelo, pele, olhos ou qualquer outra característica física. As idades, talvez? Olhou para a lista na tela luminosa:
Elise Lara Araújo, 20 anos
Ursula de Mendonça Aguiar, 47 anos
Ticiane Pinheiro Cardoso, 19 anos
Eliane Pinheiro Cardoso, 15 anos
Amanda Rodrigues, 25 anos
Michelle Luize Bistroff, 22 anos
Não, não fazia o menor sentido, a não ser que houvesse uma lógica matemática bizarra envolvida, e...
De repente, ele viu.
Ficou estático, com a lata a meio caminho da boca entreaberta.
- Filho da... - não conseguiu terminar a frase balbuciante.
O padrão saltou para seus olhos em toda sua obviedade. A lógica estava ali, sem sombra de dúvida. Freitas começou a se punir internamente por não tê-la visto. Afinal, era clara. Tão clara quando o fato de que, muito provavelmente, aquilo ainda não havia acabado.
* * *
FINAL 1
A respiração do homem era fraca e suave, tanto quanto seus sofridos batimentos cardíacos. O coração ainda lutava para bombear sangue para o resto do corpo, irrigando um cérebro transitando entre a consciência e o oblívio. Seus ferimentos eram graves, mas a alma parecia relutante em abandonar o corpo, como se alguma coisa ainda a prendesse ao mundo. Uma tarefa por acabar, ou um sonho a realizar, talvez.
O policial sentado no quarto do hospital se perguntava por que tanto trabalho para salvar uma aberração daquelas. Certamente a vida de cada uma das garotas valia muito mais do que a daquele traste inumano, e não houvera consideração nenhuma por parte deste na hora de tirá-las.
Balançou a cabeça e voltou-se para a televisão, sua única distração naquela guarda inútil. Esperava ansiosamente pelas notícias esportivas, quando surgiu a chamada: um rapaz fora encontrado morto há poucas horas em seu apartamento. Apenas mais um acontecimento insignificante numa megalópole, não fosse pelo fato de Orlando de Mattos Bonfim, vinte e seis anos, ser modelo da Beautx, a agência que há apenas dois dias ainda sofria com o terror de um psicopata que a polícia dizia agora estar preso.
O policial voltou-se transtornado para o homem deitando na maca, e podia jurar ter visto um débil sorriso surgir em seus lábios antes do bipar do monitor cardíaco se tornar um assobio contínuo.
FINAL 2
A respiração do homem era fraca e suave, tanto quanto seus sofridos batimentos cardíacos. O coração ainda lutava para bombear sangue para o resto do corpo, irrigando um cérebro transitando entre a consciência e o oblívio. Seus ferimentos eram graves, mas sua mente parecia relutante em abandonar o corpo. Alguma coisa o prendia àquele mundo, e ele não podia se deixar morrer ainda.
O policial sentado no quarto do hospital se perguntava por que tanto trabalho para salvar uma aberração daquelas. Certamente a vida de cada uma das garotas valia muito mais do que a daquele traste inumano, e não houvera consideração nenhuma por parte deste na hora de tirá-las. Balançou a cabeça e voltou-se para a televisão, sua única distração naquela guarda inútil.
A mente entorpecida do homem emergiu mais para a realidade ao captar a palavra "Beautx". O jornal noticiava que um rapaz fora encontrado morto há poucas horas em seu apartamento. Apenas mais um acontecimento insignificante numa megalópole, não fosse pelo fato de Orlando de Mattos Bonfim, vinte e seis anos, ser modelo da agência que há apenas dois dias ainda sofria com o terror de um psicopata que a polícia dizia agora estar preso.
Com aquelas palavras, seu corpo pôde relaxar inteiramente. Agora não precisava mais se preocupar com seu estado crítico. Sabia que sua declaração fora aceita e que alguém lá fora também o amava. Com um débil sorriso no rosto, ouviu o bipar do monitor cardíaco se tornar um assobio contínuo antes de soltar sua última expiração.
A foda e o amor (ou melhor, O amor e a foda)
- Fala, gatinha.
- Ai, amiga, preciso te contar uma coisa. Ontem conheci um gato. Lindo, inteligente, gente boa. Dei pra ele, e o melhor! Ele é bom de cama. Até rolou um eu te amo.
- Olha, que legal. Mas qual é a ordem exata dos acontecimentos?
- Como assim?
- Primeiro vocês foram pra cama ou primeiro ele disse que te amava?
- Hm, acho que primeiro ele disse que me amava.
- Desculpa, amiga, mas ele só queria te comer.
- Ai, Sô! Não fala assim.
- Pelo menos ele te comeu direitinho?
- Tu ficou maluca?
- Claro que não. Se ele te comeu direitinho, com carinho e respeito, ótimo. Valeu a frase.
- Como assim? E se ele me amasse mesmo?
- Ô, minha flor. Já tens mais de 30, né? Então me responde numa boa: tu tava se fazendo de difícil antes das três palavrinhas, não tava?
- Ah, sabe, né? Não gosto muito de dar de primeira, mas é que ele foi tão fofo.
- Ju! Tu já passou dos trintinha. Não vale dar pra um cara só porque ele disse que te amava. Dá antes dele dizer pra não sofrer depois!
- Tá, Sô! Mas se ele me amar de verdade? Eu senti um clima tão gostoso entre nós. Vai que é amor a primeira vista?
- A primeira foda...
- A primeira vista. Ah, quer saber, vou desligar que ele deve estar querendo me ligar pra me convidar pra um cinema bacana e tô aqui perdendo meu tempo contigo.
- Ah, ele não ligou ainda?
- Não ligou mas vai ligar, tá?! Tenho cer-te-za.
- Eu também. Afinal de contas, ele te ama e quer ter uma casa com cerca branca e flores na janela contigo. Ele chegou a comentar sobre a cor do sofá?
- Tu é um invejosa mal comida. Ele me ama e vai me ligar daqui a pouco, tu vai ver.
- Claro, baby, só esperar.
- Arght. Tchau, Sô. A gente se fala o dia que estiveres um pouco mais romântica.
- Tchau, gatinha. Qualquer coisa me lig...
Sofia desligou o telefone e caiu na gargalhada. Sabia que elas se falariam de novo quando a amiga percebesse que ele não ia ligar.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
Monólogo
- Eu te amo.
Não obteve resposta. Já não bastasse a vergonha arrebatadora que o dominava ao dizer aquelas três palavrinhas pela primeira vez, ainda por cima não obteve resposta. O silêncio gritante o ruborizou fazendo com que a segunda tentativa saísse com a voz ainda mais baixa e insegura.
- Eu te amo – repetiu.
O silêncio tomava o ambiente assim como o rubor tomava seu rosto. Respirou fundo, enchendo os pulmões de ar, e falou, uma última vez, confiante e com a voz elevada:
- Eu te amo!
Aproveitou o espelho à sua frente para pentear o cabelo, vestiu a camiseta e saiu de casa. Hoje era o grande dia.
Não obteve resposta. Já não bastasse a vergonha arrebatadora que o dominava ao dizer aquelas três palavrinhas pela primeira vez, ainda por cima não obteve resposta. O silêncio gritante o ruborizou fazendo com que a segunda tentativa saísse com a voz ainda mais baixa e insegura.
- Eu te amo – repetiu.
O silêncio tomava o ambiente assim como o rubor tomava seu rosto. Respirou fundo, enchendo os pulmões de ar, e falou, uma última vez, confiante e com a voz elevada:
- Eu te amo!
Aproveitou o espelho à sua frente para pentear o cabelo, vestiu a camiseta e saiu de casa. Hoje era o grande dia.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
domingo, 11 de janeiro de 2009
Novo tema
Para começar o ano apaixonando-se perdidamente, o tema dessa rodada é:
"EU TE AMO"
Os duelistas, apaixonados ou não, têm até o dia 16 de janeiro, sexta-feira, para publicar seus textos.
"EU TE AMO"
Os duelistas, apaixonados ou não, têm até o dia 16 de janeiro, sexta-feira, para publicar seus textos.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
Votação
Está aberta a votação para o tema "xadrez". Diga seu voto nos comentários deste post até 10/01.
E bom verão a todos!
E bom verão a todos!
O castelo ao mar
O mar, negro, imenso. As ondas estourando com violência na costa de rochas pontiagudas. Um penhasco de incontáveis metros envolto em névoa. Pendurado à beira do abismo, uma edificação monumental. O limo sobe-lhe pelas paredes, pedaços dos telhados jazem desabados. Um titã caído, lembrança nebulosa de épocas passadas.
Em um seis de junho do sexto ano do século, na madrugada umbrática do frio inverno, a luz da Lua se curva de modo bizarro para penetrar na janela de uma torre. Lá dentro, uma mesa redonda com duas cadeiras. Sobre a mesa, copos de vinho embaçados, uma adaga enferrujada e um velho tabuleiro de xadrez.
Um bispo viaja através do tabuleiro, devorando um cavalo desavisado.
- Boa jogada, Sir Andrew.
- Apenas uma armadilha de sua parte, eu imagino, meu caro.
Sir Michael retruca com um sorriso e um gole de vinho da taça cristalina.
- Naturalmente, artifícios e armadilhas fazem parte de um jogo de xadrez.
- Não só do xadrez, como de qualquer disputa, Sir Michael.
- Não é o jogo uma guerra simbólica? O xadrez é uma arte, assim como a guerra.
- E a própria vida.
- Poético, sublime – responde Sir Michael, movendo uma peça.
Sir Andrew olha gravemente para o tabuleiro. Fora uma jogada estranha, mas seus pensamentos não se detêm apenas no jogo. Passaram-se muitos minutos silenciosos antes que faça seu movimento.
- O amor de Lady Caleria não seria decidido por um jogo de xadrez, de qualquer forma.
- Talvez soubéssemos, se o cavalheiro tivesse a paciência de esperar até o desfecho, antes de usar sua lâmina – ironiza Sir Michael.
- E como eu poderia imaginar que sua oferenda de vinho teria temperos, por assim dizer, tão... exóticos? – o outro replica, com um sorriso.
Sir Michael apenas movimenta seu outro cavalo, saltando para ameaçar o rei e a dama simultaneamente. Sir Andrew resmunga.
- Não pense que o movimento tenha me passado despercebido, Sir. Não é em toda arapuca que desprevenido eu caio. Mas às vezes não temos muita escolha em nossos movimentos...
- Paciência, meu caro. A Lua já se vai e teremos muito tempo para pensarmos em nossas próximas escolhas.
- Sim, velho amigo – conclui Sir Andrew, sombrio – ao menos desta vez poderemos pensar...
A Lua morre com o nascer do dia. O Sol ressurge para iluminar a velha costa. A luz se espalha debilmente em uma torre condenada. Dois esqueletos jazem em cadeiras na penumbra, diante de um velho tabuleiro de xadrez. As peças permanecem curiosamente bem posicionadas, no interior morto de um castelo esquecido pelo tempo.
Em um seis de junho do sexto ano do século, na madrugada umbrática do frio inverno, a luz da Lua se curva de modo bizarro para penetrar na janela de uma torre. Lá dentro, uma mesa redonda com duas cadeiras. Sobre a mesa, copos de vinho embaçados, uma adaga enferrujada e um velho tabuleiro de xadrez.
Um bispo viaja através do tabuleiro, devorando um cavalo desavisado.
- Boa jogada, Sir Andrew.
- Apenas uma armadilha de sua parte, eu imagino, meu caro.
Sir Michael retruca com um sorriso e um gole de vinho da taça cristalina.
- Naturalmente, artifícios e armadilhas fazem parte de um jogo de xadrez.
- Não só do xadrez, como de qualquer disputa, Sir Michael.
- Não é o jogo uma guerra simbólica? O xadrez é uma arte, assim como a guerra.
- E a própria vida.
- Poético, sublime – responde Sir Michael, movendo uma peça.
Sir Andrew olha gravemente para o tabuleiro. Fora uma jogada estranha, mas seus pensamentos não se detêm apenas no jogo. Passaram-se muitos minutos silenciosos antes que faça seu movimento.
- O amor de Lady Caleria não seria decidido por um jogo de xadrez, de qualquer forma.
- Talvez soubéssemos, se o cavalheiro tivesse a paciência de esperar até o desfecho, antes de usar sua lâmina – ironiza Sir Michael.
- E como eu poderia imaginar que sua oferenda de vinho teria temperos, por assim dizer, tão... exóticos? – o outro replica, com um sorriso.
Sir Michael apenas movimenta seu outro cavalo, saltando para ameaçar o rei e a dama simultaneamente. Sir Andrew resmunga.
- Não pense que o movimento tenha me passado despercebido, Sir. Não é em toda arapuca que desprevenido eu caio. Mas às vezes não temos muita escolha em nossos movimentos...
- Paciência, meu caro. A Lua já se vai e teremos muito tempo para pensarmos em nossas próximas escolhas.
- Sim, velho amigo – conclui Sir Andrew, sombrio – ao menos desta vez poderemos pensar...
A Lua morre com o nascer do dia. O Sol ressurge para iluminar a velha costa. A luz se espalha debilmente em uma torre condenada. Dois esqueletos jazem em cadeiras na penumbra, diante de um velho tabuleiro de xadrez. As peças permanecem curiosamente bem posicionadas, no interior morto de um castelo esquecido pelo tempo.
Estresse
Acordou, caminhou até o banheiro, coçou a barriga saliente e urinou. Escovou os dentes, cuspiu, e só então olhou no espelho. Gritou, mas não saiu voz alguma. Ficou apenas fitando o próprio rosto no espelho do banheiro. Estava xadrez. XADREZ!
Piscou duas ou três vezes, esfregou os olhos e se olhou novamente. Não era sonho, não era ilusão, não havia confusão mental alguma. Ele estava realmente com o rosto xadrez. Não dava nem pra disfarçar. Era aquele xadrezinho vermelho com verde, igual toalha de natal, ou camisa de lenhador.
Fingiu que não era nada, mesmo com a testa já encharcada de suor. Deitou-se e puxou o cobertor por cima do rosto. Fechou os olhos e fingiu dormir. Sabia que não iria conseguir se enganar dessa forma, mas quem sabe assim ele conseguisse finalmente sair de dentro desse sonho estranho.
Foram apenas 16 segundos, mas que duraram mais de uma hora em sua cabeça. Levantou assustado e caminhou devagar até o banheiro, pé ante pé. Acendeu a luz e olhou diretamente para o espelho. Estava lá. O par de olhos azuis, o sorriso bonito, o cabelo despenteado... e o rosto completamente xadrez.
Precisava pensar rápido. Tinha que trabalhar, tinha uma pilha de papéis em cima de sua mesa, esperando por um destino. Abriu os potes de maquiagem da esposa à procura de alguma coisa. Qualquer coisa cor de pele. Encontrou. Procurou pelo nome na embalagem, mas era tão velha que a embalagem não existia mais. Pegou a espuma e esfregou no rosto. Era fraco demais. Esfregou com mais força, e começou a pintar-se.
Depois de uns quinze minutos, até um cego ainda podia ver o xadrez quadriculado no rosto dele. Mas com óculos escuros, boné e cachecol, talvez conseguisse disfarçar.
Ligou para o escritório e avisou que iria se atrasar. Ligou para o consultório e marcou um horário em caráter emergencial. Chegando lá, entrou direto para falar com o médico.
- Doutor, estou xadrez. – falou, tirando os óculos e o boné.
Exames de sangue e urina, pressão medida, raios-x.
- Deve ser estresse, tire a semana de folga.
Chegou em casa e deitou no sofá. Como assim, estresse? Desde quando alguém fica xadrez com estresse? Podia ficar meio roxo, branco demais, até meio amarelado. Mas xadrez? Impossível. Decidiu alugar um filme. Um não, vários. Ligou para o dono da videolocadora e disse que estava doente, pediu para entregarem em casa. Não deu outra: sete fitas entregues na porta de casa, o entregador nem reparou que ele estava xadrez.
Uma semana se passou e não deu as caras no trabalho. O telefone ficou fora do gancho, o celular desligado, a esposa só voltava da casa de sua mãe em três dias. No almoço, preparava um sanduíche daqueles que seu médico nunca permitiria. Dois hambúrgueres, duas fatias de presunto, três fatias de salaminho, outras três de queijo cheddar e uma de peito de peru. Pelo menos dois desse por almoço. O café da manhã era Sucrilhos, da tarde era nuggets de frango e de noite comia um Miojo com sardinha em lata. A vida que sempre quis.
Naquela manhã, acordou com um sorriso no rosto. Assobiou uma canção brega e foi cantarolando ao banheiro. Urinou e escovou os dentes. Olhou-se no espelho e deu um grito de pavor. Seu rosto estava normal. Palidamente e assustadoramente normal.
Piscou duas ou três vezes, esfregou os olhos e se olhou novamente. Não era sonho, não era ilusão, não havia confusão mental alguma. Ele estava realmente com o rosto xadrez. Não dava nem pra disfarçar. Era aquele xadrezinho vermelho com verde, igual toalha de natal, ou camisa de lenhador.
Fingiu que não era nada, mesmo com a testa já encharcada de suor. Deitou-se e puxou o cobertor por cima do rosto. Fechou os olhos e fingiu dormir. Sabia que não iria conseguir se enganar dessa forma, mas quem sabe assim ele conseguisse finalmente sair de dentro desse sonho estranho.
Foram apenas 16 segundos, mas que duraram mais de uma hora em sua cabeça. Levantou assustado e caminhou devagar até o banheiro, pé ante pé. Acendeu a luz e olhou diretamente para o espelho. Estava lá. O par de olhos azuis, o sorriso bonito, o cabelo despenteado... e o rosto completamente xadrez.
Precisava pensar rápido. Tinha que trabalhar, tinha uma pilha de papéis em cima de sua mesa, esperando por um destino. Abriu os potes de maquiagem da esposa à procura de alguma coisa. Qualquer coisa cor de pele. Encontrou. Procurou pelo nome na embalagem, mas era tão velha que a embalagem não existia mais. Pegou a espuma e esfregou no rosto. Era fraco demais. Esfregou com mais força, e começou a pintar-se.
Depois de uns quinze minutos, até um cego ainda podia ver o xadrez quadriculado no rosto dele. Mas com óculos escuros, boné e cachecol, talvez conseguisse disfarçar.
Ligou para o escritório e avisou que iria se atrasar. Ligou para o consultório e marcou um horário em caráter emergencial. Chegando lá, entrou direto para falar com o médico.
- Doutor, estou xadrez. – falou, tirando os óculos e o boné.
Exames de sangue e urina, pressão medida, raios-x.
- Deve ser estresse, tire a semana de folga.
Chegou em casa e deitou no sofá. Como assim, estresse? Desde quando alguém fica xadrez com estresse? Podia ficar meio roxo, branco demais, até meio amarelado. Mas xadrez? Impossível. Decidiu alugar um filme. Um não, vários. Ligou para o dono da videolocadora e disse que estava doente, pediu para entregarem em casa. Não deu outra: sete fitas entregues na porta de casa, o entregador nem reparou que ele estava xadrez.
Uma semana se passou e não deu as caras no trabalho. O telefone ficou fora do gancho, o celular desligado, a esposa só voltava da casa de sua mãe em três dias. No almoço, preparava um sanduíche daqueles que seu médico nunca permitiria. Dois hambúrgueres, duas fatias de presunto, três fatias de salaminho, outras três de queijo cheddar e uma de peito de peru. Pelo menos dois desse por almoço. O café da manhã era Sucrilhos, da tarde era nuggets de frango e de noite comia um Miojo com sardinha em lata. A vida que sempre quis.
Naquela manhã, acordou com um sorriso no rosto. Assobiou uma canção brega e foi cantarolando ao banheiro. Urinou e escovou os dentes. Olhou-se no espelho e deu um grito de pavor. Seu rosto estava normal. Palidamente e assustadoramente normal.
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Descrição
Eram 64 diferentes posições, metade de um lado, metade de outro. Podia fazer companhia de um minuto a sete horas. Às vezes, até por noites inteiras. O que diferenciava a velocidade era apenas a inteligência. Não havia sorte, apenas estratégia.
Os peões estavam sempre adiante. Eram oito os dispostos ou a abrir caminho ou a se antecipar, considerando sempre a estratégia de quem estava à frente. Já apareceu em romances, telas e esculturas. Ora displicente, ora personagem principal.
Pra mudar as peças do jogo, era fácil. Um toque e o chão que era escuro feito o inferno, fica claro como o céu. A regra era mover os personagens com uma ingenuidade tão linda que tornava quase imperceptível o sadismo. Traição, a mais antiga arma da humanidade, valia também entre as quatro linhas.
O problema é que cada uma das peças precisava ser movido de apenas um jeito. Uma regra que diferenciava de qualquer outro, e tornava mais o mais complicado a almejado de todos.
Falo da enxadrista, não do xadrez.
Os peões estavam sempre adiante. Eram oito os dispostos ou a abrir caminho ou a se antecipar, considerando sempre a estratégia de quem estava à frente. Já apareceu em romances, telas e esculturas. Ora displicente, ora personagem principal.
Pra mudar as peças do jogo, era fácil. Um toque e o chão que era escuro feito o inferno, fica claro como o céu. A regra era mover os personagens com uma ingenuidade tão linda que tornava quase imperceptível o sadismo. Traição, a mais antiga arma da humanidade, valia também entre as quatro linhas.
O problema é que cada uma das peças precisava ser movido de apenas um jeito. Uma regra que diferenciava de qualquer outro, e tornava mais o mais complicado a almejado de todos.
Falo da enxadrista, não do xadrez.
Documento 2
Eu precisava escrever um texto em poucos minutos. Preenchia linhas e mais linhas com palavras, frases e toda a pontuação necessárias, mas não conseguia chegar a uma idéia de como dar uma apimentada. Com o tabuleiro quadriculado à minha frente resolvi dar início a uma tarefa nova. Apaguei todo o conteúdo de um documento de texto. Foram dois mil caracteres deletados sem piedade. E isso ainda não era bem o começo do desafio.
Busquei no armário um objeto há muito esquecido. Um prêmio que ganhei em um torneio lá pelos meus catorze ou quinze anos. Em sua caixa estava escrito uma simples expressão em quatro idiomas. “Relógio de Xadrez / Chess Clock / Reloj de Ajedrez / Schachuhr”. Eu não lembrava nem que precisava dar corda nesse “bicho”, mas foi a primeira coisa que fiz ao tirá-lo da caixa. Em seguida, arrumei o tempo. Vinte minutos para cada lado. É um pouco mais do que uma partida relâmpago, mas o suficiente para um bom jogo. Pedi ao computador que batesse no pino que ficava mais distante de mim, mas eu mesmo tive que tomar essa providência.
Há muito tempo não ouvia aquele som característico. Meu Deus! Quantos torneios, quantas derrotas, quantas alegrias, medalhas, amigos, experimentações. O tique-taque trazia consigo a nostalgia de um tempo em que eu conseguia passar horas em frente a um tabuleiro sem dar a mínima importância ao barulho no entorno ou até mesmo ao adversário. Dias inteiros refazendo jogos para estudar os próprios erros. Quanta determinação! E onde ela tinha ido parar?
Sete minutos tinham se passado e eu ainda digitava sem muita precisão. Eram apenas devaneios forçados em meio a um tique-taque contínuo. As pedras não se moviam, mas os dedos, ah, esses pareciam tentar superar a barreira do som. O som. O som dos dedos pressionando as teclas competia com o barulho do relógio. Tique-Taque. Tique-Taque. Tique-Taque.
Parei para pensar por alguns segundos. Eles não fariam muita falta na contagem final. Já escrevi um texto usando o artifício do tique-taque. Será que sou muito repetitivo? Ou escrevo sobre morte ou acabo caindo nessa artimanha de criar textos experimentais com formas esquisitas. Minhas estratégias não andavam muito definidas. Eu precisava me focar. Começar o jogo com "peão quatro do rei" tornara-se um desespero pra mim. Eu precisava inovar a todo custo. E por quê? Por que não usar uma construção simples, em linha reta? Por que não começar o jogo como todo mundo começa? Por que não fazer o que eu realmente sei fazer?
O tabuleiro continuava intacto, o documento de texto já tinha mais de dois mil e quinhentos caracteres. Ainda faltavam oito minutos. O texto não terminava. Não conseguia formar uma idéia que desse a noção de um conjunto. Não tecia uma teia, apenas soltava fios por toda a casa, sem propósito, sem direção, sem a mínima noção do que estava fazendo. Frases e mais frases. Resolvi parar. Larguei o teclado e me virei para o tabuleiro.
1. e4
Já era um bom começo. "Peão quatro do Rei". O clássico e triunfal início com o simples objetivo de dominar o centro do tabuleiro. Parece tão óbvio. Domina-se o centro e, através dele, se constrói (ou destrói) o resto. Construção, desconstrução. Faltavam três minutos. Em pouco tempo o pino vermelho começaria a subir e quando caísse, meu tempo estaria esgotado. Se eu não conseguisse um cheque-mate até lá, estaria perdido. Não importa quem está ganhando quando cai o pino. O lado que deixa cair é o perdedor. É assim que funciona. Sem choro, sem segunda chance. Mas eu fazia jogadas aleatórias contra mim mesmo. O tabuleiro parecia um campo de batalha sem general em nenhum dos dois lados. Soldados perdidos, avançando sem organização e sem estratégia. Este era o desafio. Mas eu comecei com “peão quatro do rei”, isso já era um começo. Encontrar um adversário seria um passo importante também, mas não sei nem onde conseguiria.
Com adversários humanos não dá de fazer igual no Chessmaster. Eu jogava e apertava "Force Move". Pronto! O adversário virtual jogava instantaneamente. Não tinha espera. Eu pensava, ele joga. Mas na vida real não é assim. O pino vermelho já estava lá em cima e o tempo esgo...
Busquei no armário um objeto há muito esquecido. Um prêmio que ganhei em um torneio lá pelos meus catorze ou quinze anos. Em sua caixa estava escrito uma simples expressão em quatro idiomas. “Relógio de Xadrez / Chess Clock / Reloj de Ajedrez / Schachuhr”. Eu não lembrava nem que precisava dar corda nesse “bicho”, mas foi a primeira coisa que fiz ao tirá-lo da caixa. Em seguida, arrumei o tempo. Vinte minutos para cada lado. É um pouco mais do que uma partida relâmpago, mas o suficiente para um bom jogo. Pedi ao computador que batesse no pino que ficava mais distante de mim, mas eu mesmo tive que tomar essa providência.
Há muito tempo não ouvia aquele som característico. Meu Deus! Quantos torneios, quantas derrotas, quantas alegrias, medalhas, amigos, experimentações. O tique-taque trazia consigo a nostalgia de um tempo em que eu conseguia passar horas em frente a um tabuleiro sem dar a mínima importância ao barulho no entorno ou até mesmo ao adversário. Dias inteiros refazendo jogos para estudar os próprios erros. Quanta determinação! E onde ela tinha ido parar?
Sete minutos tinham se passado e eu ainda digitava sem muita precisão. Eram apenas devaneios forçados em meio a um tique-taque contínuo. As pedras não se moviam, mas os dedos, ah, esses pareciam tentar superar a barreira do som. O som. O som dos dedos pressionando as teclas competia com o barulho do relógio. Tique-Taque. Tique-Taque. Tique-Taque.
Parei para pensar por alguns segundos. Eles não fariam muita falta na contagem final. Já escrevi um texto usando o artifício do tique-taque. Será que sou muito repetitivo? Ou escrevo sobre morte ou acabo caindo nessa artimanha de criar textos experimentais com formas esquisitas. Minhas estratégias não andavam muito definidas. Eu precisava me focar. Começar o jogo com "peão quatro do rei" tornara-se um desespero pra mim. Eu precisava inovar a todo custo. E por quê? Por que não usar uma construção simples, em linha reta? Por que não começar o jogo como todo mundo começa? Por que não fazer o que eu realmente sei fazer?
O tabuleiro continuava intacto, o documento de texto já tinha mais de dois mil e quinhentos caracteres. Ainda faltavam oito minutos. O texto não terminava. Não conseguia formar uma idéia que desse a noção de um conjunto. Não tecia uma teia, apenas soltava fios por toda a casa, sem propósito, sem direção, sem a mínima noção do que estava fazendo. Frases e mais frases. Resolvi parar. Larguei o teclado e me virei para o tabuleiro.
1. e4
Já era um bom começo. "Peão quatro do Rei". O clássico e triunfal início com o simples objetivo de dominar o centro do tabuleiro. Parece tão óbvio. Domina-se o centro e, através dele, se constrói (ou destrói) o resto. Construção, desconstrução. Faltavam três minutos. Em pouco tempo o pino vermelho começaria a subir e quando caísse, meu tempo estaria esgotado. Se eu não conseguisse um cheque-mate até lá, estaria perdido. Não importa quem está ganhando quando cai o pino. O lado que deixa cair é o perdedor. É assim que funciona. Sem choro, sem segunda chance. Mas eu fazia jogadas aleatórias contra mim mesmo. O tabuleiro parecia um campo de batalha sem general em nenhum dos dois lados. Soldados perdidos, avançando sem organização e sem estratégia. Este era o desafio. Mas eu comecei com “peão quatro do rei”, isso já era um começo. Encontrar um adversário seria um passo importante também, mas não sei nem onde conseguiria.
Com adversários humanos não dá de fazer igual no Chessmaster. Eu jogava e apertava "Force Move". Pronto! O adversário virtual jogava instantaneamente. Não tinha espera. Eu pensava, ele joga. Mas na vida real não é assim. O pino vermelho já estava lá em cima e o tempo esgo...
domingo, 4 de janeiro de 2009
Xadrez³
— Não falta muito agora. Você tem certeza que é comigo que pretende passar essas últimas horas?
e4
— Obviamente eu não poderia passar com ela, poderia?
c5
— Me espanta que alguém tão sofisticado possa ter feito o que você fez.
Cf3
— Me espanta que alguém tão culta possa pensar assim, detetive. Nunca leu Sade?
d6
— Então é isso? Para quem pretendia ser um novo marquês você está muito mais para Nabokov, doutor.
d4
— Andou perambulando pela minha biblioteca novamente, detetive? Eu aceito o peão.
cxd4
— Não me diga que realmente tudo isso foi feito apenas por uma paixão literária, uma tentativa de igualar-se a Nabokov. E eu também aceito seu presente.
Cxd4
— Ah, ah. Não, foi por uma paixão muito mais carnal. Minhas paixões intelectuais eu prefiro dividir com você. A não ser é claro que você prefira passar estas últimas horas em uma paixão... menos intelectual.
Cf6
— Eu achei que não fizesse o seu tipo. Talvez madura demais?
Cc3
— O fruto recém colhido é de fato mais suculento. Você poderia ser menos austera detetive.
a6
— E o senhor mais ponderado. Quem sabe assim não estaria aqui.
Be2
— Humpf! Você sabe que eu tenho uma queda por xadrez. Especialmente em uma saia de pregas. Acho que foi ela que me capturou primeiro.
e6
— Ela era uma menina!
0-0
— Ora, porque tão na defensiva, detetive. Eu cometi meus pecados. E agora vou pagar por eles. Eu não sou santo, detetive. E ainda que fosse, meus bispos são todos negros, não?
Be7
— Você mais do que ninguém deveria saber que as pretas só deveriam se mexer se as brancas fizessem o primeiro movimento.
f4
— Ah, mas não fui eu quem movi as primeiras peças. Foi ela. Ela e aquela saia xadrez. Foi apenas o impulso decapturar uma dama.
Dc7
— Você poderia ter parado. Você sabe que poderia. Você nunca perde controle, lembra? Não é você que ensaia cada movimento? Agora são os bispos brancos que estão atrás de você. E eles vão capturá-lo. Você deveria ter parado.
Be7
— Peça tocada, peça jogada, detetive.
0-0
— Essa é uma defesa muito pobre para um homem do seu calibre.
g4
— Calma, detetive. Esse roque ainda me ganhará o jogo. Além de proteger o rei.
Te8
— Ou aprisioná-lo?
g5
— Me diga, detetive. Qual o sabor da vingança? É verdade o que dizem? Que ela vem à cavalo?
Cfd7
— Justiça, doutor. Não é de vingança que estou atrás. Se fosse, não estaria aqui com o senhor agora.
f5
— No fundo acho que você gosta de mim, detetive.
Ce5
— O meu respeito intelectual não diminui a aversão pelos seus atos, se é o que quer saber.
Bd3
— É uma pena, detetive. Porque eu gosto de você. Quem sabe com um novo visual eu gostaria até mais. Quem sabe... uma saia xadrez?
Cbc6
— Não vejo graça, além do mais prefiro homens que não estejam presos a tais estereótipos.
Dh5
— Escolha interessante de palavras. Mas por que foge a dama?
Bd7
— Fuga? Olhe o jogo, doutor. Não sou eu que preciso fugir.
Tf4
— Espera que eu o faça?
g6
— O senhor sabe que todas as saídas estão cobertas. Eu sei que o senhor não tentaria nada estúpido. Não é do seu feitio.
Dh6
— Certamente. Dócil como um padre. Ou um bispo.
Bf8
— Essa dama não se deixa capturar tão facilmente, doutor.
Dh3
— Não adianta proteger a dama, detetive, quando o rei é fraco.
Cxd4
— Pra você é tudo um jogo, não?
Bxd4
— E os dois lados precisam caminhar pelas casas brancas e negras.
Bg7
— Você poderia escolher caminhar pelas casas certas, doutor.
Taf1
— E é você quem define quais são essas casas?
Nxd3
— Eu só garanto que as pessoas caminhem nas casas determinadas.
Bxg7
— E quem é esse rei que determina as casas, detetive?
Cxf4
— A sociedade, doutor. Não eu; não você. A sociedade.
Txf4
— Eu tenho uma novidade para você, detetive. Seu rei está em xeque.
Dc5+
— O jogo não acabou.
Rg2
— É tudo uma questão de tempo. Enquanto os peões se movem, o relógio corre.
h5
— Talvez a sociedade não seja perfeita, mas têm torres sobre as quais se erguer. Sem isso, tudo mais ruiria.
Th4
— Até as torres caem. E não se esqueça que se o rei cair, as torres caem com ele.
ef5
— Logo um padre virá vê-lo, antes que tudo termine.
Bf6
— Essa é só mais uma de suas torres em ruína. Pode dispensá-lo.
Te6
— As torres podem ser determinantes para o jogo, doutor.
Txh5
— As torres se contentam em capturam peões. Os reis caem para as damas. E parece que as suas torres já estão caindo, detetive.
gxh5
— Mas a dama continua de pé.
Qxh5
— Sim. As damas é que exigem os maiores cuidados.
Txf6
— Parece que elas é que deveriam ter cuidado com o senhor.
gxf6
— De fato eu adoro capturar uma dama.
De3
— Ela era jovem demais para ser uma dama!
Cd5
— Uma dama bem colocada sem nos coloca em xeque.
Dxe4+
— Mas um verdadeiro rei deve saber se esquivar, doutor.
Rf2
— As damas, detetive, são implacáveis. Xeque!
Dd4+
— Os reis devem ser mais.
Re1
— Mas o rei sempre cai frente a uma saia xadrez. Xeque novamente.
Te8+
— Xeque!
Ce7+
— Uma hora detetive, xeque...
Txe7
— ...
fxe7
— A dama sempre encurrala o rei. O jogo acabou.
De3+
— Não, doutor. O jogo acabou há muito tempo. Só lhe falta deitar o rei.
e4
— Obviamente eu não poderia passar com ela, poderia?
c5
— Me espanta que alguém tão sofisticado possa ter feito o que você fez.
Cf3
— Me espanta que alguém tão culta possa pensar assim, detetive. Nunca leu Sade?
d6
— Então é isso? Para quem pretendia ser um novo marquês você está muito mais para Nabokov, doutor.
d4
— Andou perambulando pela minha biblioteca novamente, detetive? Eu aceito o peão.
cxd4
— Não me diga que realmente tudo isso foi feito apenas por uma paixão literária, uma tentativa de igualar-se a Nabokov. E eu também aceito seu presente.
Cxd4
— Ah, ah. Não, foi por uma paixão muito mais carnal. Minhas paixões intelectuais eu prefiro dividir com você. A não ser é claro que você prefira passar estas últimas horas em uma paixão... menos intelectual.
Cf6
— Eu achei que não fizesse o seu tipo. Talvez madura demais?
Cc3
— O fruto recém colhido é de fato mais suculento. Você poderia ser menos austera detetive.
a6
— E o senhor mais ponderado. Quem sabe assim não estaria aqui.
Be2
— Humpf! Você sabe que eu tenho uma queda por xadrez. Especialmente em uma saia de pregas. Acho que foi ela que me capturou primeiro.
e6
— Ela era uma menina!
0-0
— Ora, porque tão na defensiva, detetive. Eu cometi meus pecados. E agora vou pagar por eles. Eu não sou santo, detetive. E ainda que fosse, meus bispos são todos negros, não?
Be7
— Você mais do que ninguém deveria saber que as pretas só deveriam se mexer se as brancas fizessem o primeiro movimento.
f4
— Ah, mas não fui eu quem movi as primeiras peças. Foi ela. Ela e aquela saia xadrez. Foi apenas o impulso decapturar uma dama.
Dc7
— Você poderia ter parado. Você sabe que poderia. Você nunca perde controle, lembra? Não é você que ensaia cada movimento? Agora são os bispos brancos que estão atrás de você. E eles vão capturá-lo. Você deveria ter parado.
Be7
— Peça tocada, peça jogada, detetive.
0-0
— Essa é uma defesa muito pobre para um homem do seu calibre.
g4
— Calma, detetive. Esse roque ainda me ganhará o jogo. Além de proteger o rei.
Te8
— Ou aprisioná-lo?
g5
— Me diga, detetive. Qual o sabor da vingança? É verdade o que dizem? Que ela vem à cavalo?
Cfd7
— Justiça, doutor. Não é de vingança que estou atrás. Se fosse, não estaria aqui com o senhor agora.
f5
— No fundo acho que você gosta de mim, detetive.
Ce5
— O meu respeito intelectual não diminui a aversão pelos seus atos, se é o que quer saber.
Bd3
— É uma pena, detetive. Porque eu gosto de você. Quem sabe com um novo visual eu gostaria até mais. Quem sabe... uma saia xadrez?
Cbc6
— Não vejo graça, além do mais prefiro homens que não estejam presos a tais estereótipos.
Dh5
— Escolha interessante de palavras. Mas por que foge a dama?
Bd7
— Fuga? Olhe o jogo, doutor. Não sou eu que preciso fugir.
Tf4
— Espera que eu o faça?
g6
— O senhor sabe que todas as saídas estão cobertas. Eu sei que o senhor não tentaria nada estúpido. Não é do seu feitio.
Dh6
— Certamente. Dócil como um padre. Ou um bispo.
Bf8
— Essa dama não se deixa capturar tão facilmente, doutor.
Dh3
— Não adianta proteger a dama, detetive, quando o rei é fraco.
Cxd4
— Pra você é tudo um jogo, não?
Bxd4
— E os dois lados precisam caminhar pelas casas brancas e negras.
Bg7
— Você poderia escolher caminhar pelas casas certas, doutor.
Taf1
— E é você quem define quais são essas casas?
Nxd3
— Eu só garanto que as pessoas caminhem nas casas determinadas.
Bxg7
— E quem é esse rei que determina as casas, detetive?
Cxf4
— A sociedade, doutor. Não eu; não você. A sociedade.
Txf4
— Eu tenho uma novidade para você, detetive. Seu rei está em xeque.
Dc5+
— O jogo não acabou.
Rg2
— É tudo uma questão de tempo. Enquanto os peões se movem, o relógio corre.
h5
— Talvez a sociedade não seja perfeita, mas têm torres sobre as quais se erguer. Sem isso, tudo mais ruiria.
Th4
— Até as torres caem. E não se esqueça que se o rei cair, as torres caem com ele.
ef5
— Logo um padre virá vê-lo, antes que tudo termine.
Bf6
— Essa é só mais uma de suas torres em ruína. Pode dispensá-lo.
Te6
— As torres podem ser determinantes para o jogo, doutor.
Txh5
— As torres se contentam em capturam peões. Os reis caem para as damas. E parece que as suas torres já estão caindo, detetive.
gxh5
— Mas a dama continua de pé.
Qxh5
— Sim. As damas é que exigem os maiores cuidados.
Txf6
— Parece que elas é que deveriam ter cuidado com o senhor.
gxf6
— De fato eu adoro capturar uma dama.
De3
— Ela era jovem demais para ser uma dama!
Cd5
— Uma dama bem colocada sem nos coloca em xeque.
Dxe4+
— Mas um verdadeiro rei deve saber se esquivar, doutor.
Rf2
— As damas, detetive, são implacáveis. Xeque!
Dd4+
— Os reis devem ser mais.
Re1
— Mas o rei sempre cai frente a uma saia xadrez. Xeque novamente.
Te8+
— Xeque!
Ce7+
— Uma hora detetive, xeque...
Txe7
— ...
fxe7
— A dama sempre encurrala o rei. O jogo acabou.
De3+
— Não, doutor. O jogo acabou há muito tempo. Só lhe falta deitar o rei.
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