16/01/09
O detetive Freitas olhou com certa frieza para a cena do crime. Não importava o sangue, as lacerações, a monstruosidade deliberada com o qual a mulher fora morta. O que o fazia ver uma triste ironia naquilo tudo era o fato de que jamais haveria tantos oficiais ali se a vítima fosse uma pessoa comum. O próprio Freitas, ocupando um cargo de alto status por conta apenas de seus méritos, não seria tirado do escritório por "qualquer" crime.
Mas Ursula de Mendonça Aguiar não era uma mulher comum. Era a gerente de negócios de uma poderosa agência de modelos. Mulher rica, poderosa, madura, mas ainda conservando a beleza que lhe rendera fama na juventude.
Seu auxiliar de confiança entrou no quarto carregando uma pasta. Diante da cena, baixou os olhos, respirou fundo, e permaneceu de costas para a cama ensanguentada.
- Mofar no gabinete lhe tirou o estômago, Marcos? - perguntou Freitas, observando o trabalho dos peritos.
- Eu nunca vou me acostumar a ver crueldades como essa, Roberto.
- Fique feliz, meu amigo. É triste alguém perceber que precisou largar mão da sua humanidade para realizar seu trabalho direito.
- A humanidade certamente lhe agradece, desumano Freitas.
O detetive sorriu.
- Alguma novidade nesses papéis?
- Sim, é algo que pode estremecer até um coração gelado.
- Fale e vamos ver se eu me arrepio.
- Não é um caso isolado.
Freitas voltou-se para o companheiro.
- Como assim?
- Elise Lara Araújo, vinte e três anos, estudante, mora na cidade. Menina linda, classe média, grande futuro pela frente. Encontrada morta em casa há três dias. Crime chocante, recebeu alguma atenção nos jornais.
- Qual a conexão?
- Veja as fotos tiradas pelo rapaz que avaliou o caso.
Os olhos experientes do detetive não precisaram de mais do que alguns instantes para captar as informações. A cena era diferente, é claro, mas os requintes de crueldade eram facilmente reconhecíveis.
- Merda.
- Sim, mais um louco à solta.
- Loucos todos somos de viver nesse mundo pirado, Marcos. Alguns apenas não conseguem se conter.
- O que faremos, Vossa Insanidade?
- Quero todas as informações pertinentes aos dois casos na minha mesa o mais rápido possível. Estou assumindo pessoalmente as duas investigações. Tente dar a esfumaçada usual para a imprensa, não queremos ninguém em pânico... ainda.
* * *
- O cara é esperto.
Freitas anuiu. Andava em círculos pela sala, o que sempre lhe ajudava a pensar, enquanto Marcos sentava na beirada da mesa. A perícia nada tinha encontrado na casa de Ursula, nenhuma pista indicando quem poderia estar por trás dos dois assassinatos.
- Se o primeiro crime não tivesse sido analisado por um novato, poderia haver alguma pista, Roberto. Os erros são mais facilmente cometidos na primeira vez...
- ... mas a cidade é muito grande, e a menina não era tão importante - interrompeu o detetive, num amargo sarcasmo.
Foi a vez de Marcos concordar silenciosamente.
- Viu o resultado da perícia? - finalmente falou o auxiliar.
- Sim. Uma pena não terem encontrado pistas que auxiliem na identidade, mas deixa tudo ainda mais intrigante. Uma garota atraente e uma ex-modelo bem conservada. Entretanto, nem o mínimo sinal de abuso sexual. A motivação mais óbvia não é a verdadeira.
- Crime ritualístico?
- Não. O único padrão é o modo de torturar e matar. Não necessariamente implica em um ritual. Pode ser apenas o meio mais conveniente que o sujeito achou para atingir seus fins.
- É realmente difícil ver padrões com apenas dois crimes... mas quem desejaria esperar pelo terceiro?
- Ninguém, por certo.
O telefone tocou ao lado de Marcos.
Os dois homens se entreolharam. A mesma coisa passou pelas duas mentes.
O auxiliar atendeu ao telefone. Sua expressão logo se tornou angustiada. Com apenas mais algumas palavras, passou de angustiada a simplesmente aterrorizada.
Um "estamos a caminho" encerrou a ligação.
- Mais uma? - questionou o detetive.
- Não - respondeu o outro, pálido - Mais duas.
* * *
Freitas não era gélido, apenas frio. Era um meio de se desligar do desespero humano diante de situações horríveis e poder trabalhar melhor. Com a mente serena, sua contribuição para a sociedade seria muito maior do que se ficasse enjoado e proferindo pragas aos quatro ventos, como fazia agora Marcos.
- Filho duma puta desgraçado, como pode ser capaz de uma coisa dessas?
Freitas ignorava o amigo. Não deixava de sentir um choque interno diante da situação, mas preferia manter-se focado nos documentos que manipulava.
- Ticiane Pinheiro Cardoso, dezenove anos, e Eliane Pinheiro Cardoso, quinze. Parece que os pais gostavam de nomes que rimam - bufou Marcos, tentando mascarar a angústia com ironia.
- Sem dúvida eles não apreciariam a sua piada nesse momento.
- Me dá um tempo, Roberto. Em vinte anos de trabalho eu nunca tinha visto uma coisa dessas.
- Sorte sua ter ficado doente durante o caso do Juquinha Empalador.
- Tinha vontade de vomitar só com as notícias. As crianças não são mais as mesmas.
Não havia empalamento naquela cena, mas não era menos chocante. As duas irmãs foram mortas na sala do próprio apartamento. Foram encontradas às sete da noite pelos pais, que voltavam juntos do trabalho. Nenhum vizinho ouvira nada, possivelmente cortesia da garganta degolada da mais velha e das mãos do matador na outra. Freitas se perguntava qual das meninas tivera o pior destino: morrendo sufocada em seu próprio sangue, ou assistindo à agonia da outra enquanto o assassino procedia com maior diligência. A resposta não seria tão fácil, se a maioria das pessoas soubesse que a morte por traquéia dilacerada, sem o corte das carótidas, não é tão rápida quanto os filmes fazem pensar.
- Eu consegui trocar algumas palavras apenas com a mãe - disse Freitas - pois o pai colapsou e não consegue parar de chorar até agora. O que descobri pode fazer o seu enjôo indignado virar imediatamente uma bela golfada.
- Espere-me pegar meu saquinho de vômito e pode contar.
- As duas meninas, lindas e geneticamente abençoadas, eram contratadas da Beautx. A agência de modelos de você sabe quem.
- Não fod...
Um dos peritos que analisava o corpo da irmã mais nova chamou o detetive.
- O que encontrou, Boris?
- Veja, senhor.
O detetive se abaixou para enxergar o delicado material que o perito raspava das unhas da adolescente.
- Bendita a vaidade das garotas de hoje em dia e suas longas garras - comentou Marcos.
- Ela conseguiu lutar mais do que Ursula. Não é tão fácil lidar com dois alvos ao mesmo tempo - observou o detetive.
- Não sei se poderemos tirar muita informação de algumas células epidérmicas, senhor. Mas ao menos algumas informações básicas poderemos obter.
- Já é um começo, meu caro. Bom trabalho.
- Isso se tivermos tempo - concluiu Marcos, sombrio.
* * *
Estavam de volta ao escritório, entre papéis e mais papéis. Era quatro da manhã, sete horas após o homicídio duplo. Marcos tinha os olhos vermelhos, Freitas tomava refrigerantes sem parar.
- Roberto, não aguento mais. Eu preciso dormir.
- Vá lavar a cara e continue a pensar.
- Você não está cansado?
- Refrigerantes de cola, tome cinco vezes mais e tenha toda a cafeína de uma dose de café.
O detetive continuava a caminhar em círculos na sala.
- Não temo um padrão de tempo estabelecido. O primeiro crime ocorreu três dias após o primeiro. O outro apenas dois dias depois. Não temos abuso sexual, não temos ritual, não temos motivação. Apenas uma conexão clara: a agência de modelos.
- E a primeira vítima?
- Um interrogatório mais elaborado com os pais verificou que a moça tinha feito um teste para a agência. Aparentemente tinha ficado bem colocada e poderia ser chamada em breve.
Marcos soltou um assobio.
- A morte de Ursula mobilizou uma série de recursos para o caso, não é, Roberto? A mulher tinha amigos influentes.
- É uma sorte para os próximos alvos.
- Sim, pois esse cara não vai parar até ser pego. Se fosse esperto, daria uma pausa agora, os crimes já ganharam todas as manchetes.
- Esse tipo de animal não pensa tão racionalmente, Marcos. Podem ser frios e espertos. Mas matar é um vício ao qual eles não podem fugir.
O auxiliar remexeu novamente nos papéis. Não tinha sido possível encobrir mais o caso, que ganhara a capa de todos os jornais.
- "O Maníaco das Modelos". Se não fosse tão trágico, eu teria vontade de rir dos jornalistas.
- Há um problema maior que este nessas manchetes.
- Qual seria, Roberto?
- Nada nos diz que seja um homem.
O auxiliar parou para pensar.
- É verdade.
- Pode ser uma das modelos da agência eliminando concorrência. Ou uma menina com altos sonhos que foi rejeitada.
- Isso se encaixaria bem com a ausência de violência sexual.
- Quero todas as informações pertinentes a todas as agenciadas, e de todas as seleções feitas no último ano. Coloque todos aqueles que estiverem disponíveis em busca de conexões. E alguns homens de plantão naquela bendita agência.
- Todas as agenciadas? A Beautx é uma das maiores agências da cidade, inclusive com filiais e agenciadas em outras cidades.
- Não temos outro ponto de partida. E se preocupe apenas com a central da cidade. Nada ainda nos indica que esse ou essa maluca tem interesses intermunicipais.
* * *
Quatro horas depois, Freitas se agachava para observar um novo cadáver.
- Esse cara é completamente louco, Freitas! Ou louca, que seja! Quanto mais atenção seus crimes recebem, mais rápido está matando!
- Sim, Marcos. E agora pare de agitar os braços e me diga a novidade - foi a resposta seca.
O auxiliar ficou calado. Conhecia bem o bastante o amigo para reconhecer aquele tom de voz ríspido. As mortes estavam sendo mais rápidas que o esperado e o detetive não conseguia ter tempo para pensar e agir. Os testes e laudos demoravam, a polícia era simplesmente lerda demais para o assassino. E aquilo não o deixava nada feliz.
Amanda Rodrigues estava estirada no chão de seu quarto. Desta vez, a morte foi rápida. A casa da família era relativamente isolada, na tranquila periferia de uma cidade do interior onde a garota vivera seus vinte e dois anos. O assassino entrou na madrugada, quando todos na casa dormiam, possivelmente pulando uma janela aberta. A cena do crime sugeria pouca luta antes do degolamento, desta vez rompendo as artérias principais do pescoço e dando um fim sucinto à vida da jovem. Quando os pais ouviram o barulho de um abajur caindo ao chão, adentraram no quarto apenas a tempo de ver a filha tendo as últimas convulsões. O pai, desesperado, saiu correndo pelo terreno atirando com a espingarda, mas não havia mais sinal do agressor.
- Isso acaba com nossa teoria?
- Nem tanto, Roberto. A garota tinha acabado de ser contratada por uma agência de modelos. Foi selecionada para um primeiro trabalho e em breve pretendia se mudar para a capital. Não preciso dizer qual a agência, certo?
O celular de Freitas tocou.
Ouviu atentamente o que lhe falavam, respondendo apenas com rápidos monossílabos. Fez uma pergunta e esperou longamente pela resposta. Quando esta veio, se deu por satisfeito. Ao desligar, Marcos esperava pelo pior.
- Mais uma, já?
- Não, ao menos desta vez - respondeu - Nós temos um suspeito.
* * *
- Um dos rapazes que enviamos para pegar os dados na Beautx ficou sabendo que um dos empregados não apareceu no trabalho nos últimos sete dias, sem dar satisfação - Freitas dirigia em alta velocidade na rodovia que levava de volta à capital - José Carlos Silveira Júnior, vinte e seis anos, auxiliar de serviços gerais. Rapaz solitário, veio de outro estado, a família mora longe.
- É um perfil atraente, mas a princípio não nos diz nada.
- Seria apenas uma suspeita, se não fosse pelo laudo relativo ao material encontrado nas unhas daquela garota.
- O laudo chegou e você não me avisou?
- Ficou pronto quando estávamos vindo para cá e você roncava alto no carro. As horas gastas convencendo um perito preguiçoso a fazer hora extra na alta noite podem ter custado a vida de alguém.
- Malditos funcionários públicos. Quero dizer, aqueles que se tornam folgados antiéticos, não nós. E o que o laudo revelou?
- Que nossa suspeita de ontem não se fundamenta. Temos um assassino com um cromossomo Y. Isso significa um homem, caso você tenha escapado das aulas de ciências. E, acima de tudo, o tipo de sangue bate.
- Isso realmente torna o sujeito muito suspeito.
- Mais do que você imagina. O sangue dele é O negativo.
- Filho da mãe! É ele, sem dúvida! Para onde estamos indo agora?
- Para a residência do Zeca. Fiz o nosso sistema moroso chacoalhar e o mandado de busca já está a caminho.
- Talvez não o tenhamos em mão na hora certa, essas coisas sempre atrasam.
- Então arrombamos a porta primeiro e mostramos o mandato depois. Estamos numa corrida e não estou disposto a perder mais nenhum segundo - respondeu, pisando ainda mais fundo no acelerador.
* * *
Às dez da manhã, a dupla chegava à porta da pequena casa alugada no subúrbio. Dois policiais se encontravam próximos de entrada. Dirigiram-se a Freitas.
- Senhor, estamos aqui há uma hora, segundo seu pedido. Nem sinal do sujeito na casa.
- E por que não entraram ainda?
- Bem, não recebemos confirmação da expedição do mandato e...
- Jovens... - resmungou Marcos, indo em direção a uma janela. Com uma coronhada, quebrou o vidro e abriu-a por dentro.
Os dois policiais vasculharam a casa sem encontrar nenhum ser vivo além de um gato magro, que se escondeu embaixo do sofá, miando. A casa estava em ordem e parecia estar sendo usada na última semana.
- Ele não está aqui agora, Roberto.
- O que só pode significar uma coisa: ou ele estava doente e foi trabalhar nesta manhã e devemos desculpas ao Sr. Silveira...
- ... ou já está atrás da próxima vítima. Temos que localizá-lo imediatamente!
Enquanto Marcos remexia móveis e papéis em busca de qualquer pista, Freitas pegou o telefone. Discou para o setor de comunicações da polícia.
- Alô, aqui é o detetive Roberto Freitas, identificação 0032123-978-7. Preciso que você localize com urgência todas as ligações feitas por este número nas últimas seis horas.
- Sim senhor, estarei encaminhando o pedido para...
- Meu rapaz, cheque a minha patente e consiga estes dados agora. Passe para o detetive Robson no ramal 5674 e diga-lhe para cruzar com os números que ele têm à disposição. Se ele não me ligar de volta em dez minutos, creia que amanhã os únicos números que você estará checando serão os de alguma empresa de telemarketing!
Desligou e Marcos o encarou.
- Crueldade com os mais novos, hein?
- Odeio fazer isso, mas às vezes é necessário berrar com os moleques para mostrar-lhes o significado da palavra "urgente".
- Mal entram e já começar a amolecer o corpo... Aprendem com os mais velhos.
- Agora temos que esperar pelo Robson. Ele estava com os dados das agenciadas da Beautx e, com sorte, irá achar um número que bata.
- E esta será o próximo alvo?
- Sem dúvida. Notou que todos os crimes foram executados na casa das vítimas?
- Sim, é verdade...
- Qual a melhor forma de saber se seu alvo está em casa do que ligando para o telefone fixo?
- Genial.
Em menos de dez minutos, o celular tocou. Freitas atendeu e pegou um papel qualquer em cima da mesa para anotar.
- Certo... Michelle Luize Bistroff... me passe o endereço e os telefones dela... Sim, ok, obrigado, Robson. Mande os carros que conseguir para lá, estamos indo agora mesmo.
Mesmo antes do detetive desligar, Marcos estava ligando para o telefone celular anotado.
- Não atende.
- E o telefone de casa?
Nova ligação.
- Ocupado.
- Merda. Mas isso quer dizer que ela está em casa. Vamos!
Os dois saíram em disparada para o carro, acompanhados pelos jovens policiais. O apartamento da modelo era relativamente próximo de onde estavam, mas precisavam voar por entre as ruas apinhadas ruas da cidade, pois cada minuto poderia fazer a diferença.
Chegaram ao prédio quase simultaneamente com outra viatura. Os homens pularam dos carros, praticamente arrombando a portaria para entrar. Dois policiais permaneceram embaixo para vigiar as saídas, enquanto outra dupla corria pelas escadas. Marcos e Freitas subiram pelo elevador.
Os quatro se encontraram no andar do apartamento. Correram para a porta e Freitas tentou a maçaneta: trancada. Encostou o ouvido na porta e ouviu um gemido feminino.
- Ele está aí! Vocês dois, entrem comigo. Marcos, vigie a porta - não havia mais um resquício de frieza em sua expressão furiosa - Eu mesmo quero pegar o desgraçado!
Os policiais arrombaram a porta com chutes e entraram no confortável apartamento. Nada na sala. De repente, um terrível berro estrangulado veio de uma porta. Marcos observou os companheiros correrem para o que parecia ser um quarto. Gritos vieram dos policiais e de uma voz desconhecida. Barulho de coisas quebrando e dois disparos. E então, silêncio.
Freitas saiu do quarto cambaleante, com ferimentos no rosto e um corte no braço. Desabou no sofá da sala. Marcos correu para ajudar o amigo.
- Não, pode deixar. Eu estou bem...
- Tem certeza?
- Sim, vou sobreviver.
- E então?
- É o fim da linha para o maldito... e...
Parou de falar por um instante. Marcos percebeu então algo que não via há décadas: os olhos do amigo estavam marejados.
- E...? - perguntou ao detetive - Fale, Roberto!
- ... e para a garota também...
* * *
A central permanecia silenciosa na madrugada. A maioria dos escritórios estavam escuros, mas uma luz de mesa e a tela do computador iluminavam a sala do detetive Roberto Freitas. Há dois dias atrás, ele estava dando entrevistas sobre a captura do Maníaco das Modelos. Agora, sua ansiedade o impedia de aguardar a possibilidade de interrogar o assassino, baleado em sua última tentativa de escapar e à beira da morte. Ele não conseguia parar de pensar nas motivações por trás da psicose. Não o satisfazia a solução fácil dos jornais, de que era um maníaco frustrado e sexualmente enrustido se vingando contra as mulheres bonitas que, dia após dia, o ignoravam nos corredores da Beautx. Não, havia algo a mais ali que lhe incomodava, lhe dando uma desconfortável sensação de trabalho inacabado.
Abriu mais uma cola, tentando estimular os pensamentos com gás e cafeína. Matar em casa era um padrão, mas não uma motivação. Pensou que cada uma das meninas podia ter lhe dado um motivo especial para vingança, mas a tese não se sustentava. A garota da outra cidade, Amanda, sequer passara pela central da Beautx durante seu rápido primeiro trabalho. Não havia um padrão de aparência, cor de cabelo, pele, olhos ou qualquer outra característica física. As idades, talvez? Olhou para a lista na tela luminosa:
Elise Lara Araújo, 20 anos
Ursula de Mendonça Aguiar, 47 anos
Ticiane Pinheiro Cardoso, 19 anos
Eliane Pinheiro Cardoso, 15 anos
Amanda Rodrigues, 25 anos
Michelle Luize Bistroff, 22 anos
Não, não fazia o menor sentido, a não ser que houvesse uma lógica matemática bizarra envolvida, e...
De repente, ele viu.
Ficou estático, com a lata a meio caminho da boca entreaberta.
- Filho da... - não conseguiu terminar a frase balbuciante.
O padrão saltou para seus olhos em toda sua obviedade. A lógica estava ali, sem sombra de dúvida. Freitas começou a se punir internamente por não tê-la visto. Afinal, era clara. Tão clara quando o fato de que, muito provavelmente, aquilo ainda não havia acabado.
* * *
FINAL 1
A respiração do homem era fraca e suave, tanto quanto seus sofridos batimentos cardíacos. O coração ainda lutava para bombear sangue para o resto do corpo, irrigando um cérebro transitando entre a consciência e o oblívio. Seus ferimentos eram graves, mas a alma parecia relutante em abandonar o corpo, como se alguma coisa ainda a prendesse ao mundo. Uma tarefa por acabar, ou um sonho a realizar, talvez.
O policial sentado no quarto do hospital se perguntava por que tanto trabalho para salvar uma aberração daquelas. Certamente a vida de cada uma das garotas valia muito mais do que a daquele traste inumano, e não houvera consideração nenhuma por parte deste na hora de tirá-las.
Balançou a cabeça e voltou-se para a televisão, sua única distração naquela guarda inútil. Esperava ansiosamente pelas notícias esportivas, quando surgiu a chamada: um rapaz fora encontrado morto há poucas horas em seu apartamento. Apenas mais um acontecimento insignificante numa megalópole, não fosse pelo fato de Orlando de Mattos Bonfim, vinte e seis anos, ser modelo da Beautx, a agência que há apenas dois dias ainda sofria com o terror de um psicopata que a polícia dizia agora estar preso.
O policial voltou-se transtornado para o homem deitando na maca, e podia jurar ter visto um débil sorriso surgir em seus lábios antes do bipar do monitor cardíaco se tornar um assobio contínuo.
FINAL 2
A respiração do homem era fraca e suave, tanto quanto seus sofridos batimentos cardíacos. O coração ainda lutava para bombear sangue para o resto do corpo, irrigando um cérebro transitando entre a consciência e o oblívio. Seus ferimentos eram graves, mas sua mente parecia relutante em abandonar o corpo. Alguma coisa o prendia àquele mundo, e ele não podia se deixar morrer ainda.
O policial sentado no quarto do hospital se perguntava por que tanto trabalho para salvar uma aberração daquelas. Certamente a vida de cada uma das garotas valia muito mais do que a daquele traste inumano, e não houvera consideração nenhuma por parte deste na hora de tirá-las. Balançou a cabeça e voltou-se para a televisão, sua única distração naquela guarda inútil.
A mente entorpecida do homem emergiu mais para a realidade ao captar a palavra "Beautx". O jornal noticiava que um rapaz fora encontrado morto há poucas horas em seu apartamento. Apenas mais um acontecimento insignificante numa megalópole, não fosse pelo fato de Orlando de Mattos Bonfim, vinte e seis anos, ser modelo da agência que há apenas dois dias ainda sofria com o terror de um psicopata que a polícia dizia agora estar preso.
Com aquelas palavras, seu corpo pôde relaxar inteiramente. Agora não precisava mais se preocupar com seu estado crítico. Sabia que sua declaração fora aceita e que alguém lá fora também o amava. Com um débil sorriso no rosto, ouviu o bipar do monitor cardíaco se tornar um assobio contínuo antes de soltar sua última expiração.
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6 comentários:
ok, ok, sei que é um texto mastodôntico, mas espero que vocês tenham paciência para ler. eu nunca tinha escrito um policial "sensu stricto" e achei divertido. se não tivesse começado só ontem, poderia ter amarrado melhor os fatos. mas daí ele cresceria mais ainda!
em todos os casos, a história tem potencial de crescer mais, inclusive para deixar mais explicado algumas coisas (o cara escolheu as vitimas apenas pelo nome mesmo?).
queria saber duas coisas do pessoal que ler:
1 - foi fácil adivinhar a motivação antes do final? o título "declaração" me pareceu muito adequado, mas não ajuda a entregar o ouro?
2 - os dois finais. escrevi dois finais que me parecem igualmente válidos (são idênticos em essência, muda só o ponto de vista). qual vocês acharam o mellhor?
Preferi o primeiro final, apesar de que as difenreças entre eles são minúsculas.
Ou eu to muito burrinho, ou soh nao ficou tão claro o receptor da declaração.
Pra mim também não ficou tão claro desde o começo, mas não acho que isso prejudique o texto. O segundo final me agradou mais =)
ok, textos gdes são pra gdes leitores, ;)
faço coro nos q não "captaram" a motivação. será q vc não tá exigindo d+ dos leitores, félix? até agatha christie dava papinha na boca no final pra q todos pudessem entender direito. nessa eu boiei.
só uma consideração, acho q vc errou aqui nessa frase: "O primeiro crime ocorreu três dias após o primeiro."
fora estes detalhes, o estilo ficou mto parecido com rubem fonseca, pena q um tanto americanizado (alguns procedimentos policiais ou judiciais são diferentes dos narrados), mas mesmo assim um grande texto. pena q não entendi o final, senão daria nota 10.
1 abraço.
valeu pelos comentários, pessoal. há uma grande parte a ser escrita ainda onde a receptora da declaração fica evidente, e a escolha de cada vítima também (não só pelo nome). mas, como não queria deixar a coisa ainda maior, ficou assim mesmo.
não deixar tudo claro no final incomoda em um conto policial, pelo jeito. mas eu acredito que a sugestão do que aconteceu tenha ficado evidente. e a parte importante, que não era para ser descoberta antes do final, era o próprio "eu te am...o".
mas as sugestões estão anotadas para o próximo. como o jlm disse, papinha para os leitores! ;)
um texto mais longe de vez em quando é sempre bom. Se não a gente acaba tragando texto pra web. Eu acho q volta e meia tem q surgir um assim. Curti a trama, achei envolvente e logo deu pra ver o acróstico, foi tranquilo. Talvez algo inserido no decorrer do texto que indicasse q o assissino estava se comunicando com alguém poderia indicar o par respondendo, só pra ele não surgir do nada. Mostrar que havia um outro(a) maluco(a) por aí. A troca do sexo da vítima acho q já indicou o consorte (q li como mulher, apesar de aumentar a dificuldade do crime, tipo força da vítima em relação a força da assassina). Li certo? Curti bastante, a proposito. Massa!
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