— Não falta muito agora. Você tem certeza que é comigo que pretende passar essas últimas horas?
e4
— Obviamente eu não poderia passar com ela, poderia?
c5
— Me espanta que alguém tão sofisticado possa ter feito o que você fez.
Cf3
— Me espanta que alguém tão culta possa pensar assim, detetive. Nunca leu Sade?
d6
— Então é isso? Para quem pretendia ser um novo marquês você está muito mais para Nabokov, doutor.
d4
— Andou perambulando pela minha biblioteca novamente, detetive? Eu aceito o peão.
cxd4
— Não me diga que realmente tudo isso foi feito apenas por uma paixão literária, uma tentativa de igualar-se a Nabokov. E eu também aceito seu presente.
Cxd4
— Ah, ah. Não, foi por uma paixão muito mais carnal. Minhas paixões intelectuais eu prefiro dividir com você. A não ser é claro que você prefira passar estas últimas horas em uma paixão... menos intelectual.
Cf6
— Eu achei que não fizesse o seu tipo. Talvez madura demais?
Cc3
— O fruto recém colhido é de fato mais suculento. Você poderia ser menos austera detetive.
a6
— E o senhor mais ponderado. Quem sabe assim não estaria aqui.
Be2
— Humpf! Você sabe que eu tenho uma queda por xadrez. Especialmente em uma saia de pregas. Acho que foi ela que me capturou primeiro.
e6
— Ela era uma menina!
0-0
— Ora, porque tão na defensiva, detetive. Eu cometi meus pecados. E agora vou pagar por eles. Eu não sou santo, detetive. E ainda que fosse, meus bispos são todos negros, não?
Be7
— Você mais do que ninguém deveria saber que as pretas só deveriam se mexer se as brancas fizessem o primeiro movimento.
f4
— Ah, mas não fui eu quem movi as primeiras peças. Foi ela. Ela e aquela saia xadrez. Foi apenas o impulso decapturar uma dama.
Dc7
— Você poderia ter parado. Você sabe que poderia. Você nunca perde controle, lembra? Não é você que ensaia cada movimento? Agora são os bispos brancos que estão atrás de você. E eles vão capturá-lo. Você deveria ter parado.
Be7
— Peça tocada, peça jogada, detetive.
0-0
— Essa é uma defesa muito pobre para um homem do seu calibre.
g4
— Calma, detetive. Esse roque ainda me ganhará o jogo. Além de proteger o rei.
Te8
— Ou aprisioná-lo?
g5
— Me diga, detetive. Qual o sabor da vingança? É verdade o que dizem? Que ela vem à cavalo?
Cfd7
— Justiça, doutor. Não é de vingança que estou atrás. Se fosse, não estaria aqui com o senhor agora.
f5
— No fundo acho que você gosta de mim, detetive.
Ce5
— O meu respeito intelectual não diminui a aversão pelos seus atos, se é o que quer saber.
Bd3
— É uma pena, detetive. Porque eu gosto de você. Quem sabe com um novo visual eu gostaria até mais. Quem sabe... uma saia xadrez?
Cbc6
— Não vejo graça, além do mais prefiro homens que não estejam presos a tais estereótipos.
Dh5
— Escolha interessante de palavras. Mas por que foge a dama?
Bd7
— Fuga? Olhe o jogo, doutor. Não sou eu que preciso fugir.
Tf4
— Espera que eu o faça?
g6
— O senhor sabe que todas as saídas estão cobertas. Eu sei que o senhor não tentaria nada estúpido. Não é do seu feitio.
Dh6
— Certamente. Dócil como um padre. Ou um bispo.
Bf8
— Essa dama não se deixa capturar tão facilmente, doutor.
Dh3
— Não adianta proteger a dama, detetive, quando o rei é fraco.
Cxd4
— Pra você é tudo um jogo, não?
Bxd4
— E os dois lados precisam caminhar pelas casas brancas e negras.
Bg7
— Você poderia escolher caminhar pelas casas certas, doutor.
Taf1
— E é você quem define quais são essas casas?
Nxd3
— Eu só garanto que as pessoas caminhem nas casas determinadas.
Bxg7
— E quem é esse rei que determina as casas, detetive?
Cxf4
— A sociedade, doutor. Não eu; não você. A sociedade.
Txf4
— Eu tenho uma novidade para você, detetive. Seu rei está em xeque.
Dc5+
— O jogo não acabou.
Rg2
— É tudo uma questão de tempo. Enquanto os peões se movem, o relógio corre.
h5
— Talvez a sociedade não seja perfeita, mas têm torres sobre as quais se erguer. Sem isso, tudo mais ruiria.
Th4
— Até as torres caem. E não se esqueça que se o rei cair, as torres caem com ele.
ef5
— Logo um padre virá vê-lo, antes que tudo termine.
Bf6
— Essa é só mais uma de suas torres em ruína. Pode dispensá-lo.
Te6
— As torres podem ser determinantes para o jogo, doutor.
Txh5
— As torres se contentam em capturam peões. Os reis caem para as damas. E parece que as suas torres já estão caindo, detetive.
gxh5
— Mas a dama continua de pé.
Qxh5
— Sim. As damas é que exigem os maiores cuidados.
Txf6
— Parece que elas é que deveriam ter cuidado com o senhor.
gxf6
— De fato eu adoro capturar uma dama.
De3
— Ela era jovem demais para ser uma dama!
Cd5
— Uma dama bem colocada sem nos coloca em xeque.
Dxe4+
— Mas um verdadeiro rei deve saber se esquivar, doutor.
Rf2
— As damas, detetive, são implacáveis. Xeque!
Dd4+
— Os reis devem ser mais.
Re1
— Mas o rei sempre cai frente a uma saia xadrez. Xeque novamente.
Te8+
— Xeque!
Ce7+
— Uma hora detetive, xeque...
Txe7
— ...
fxe7
— A dama sempre encurrala o rei. O jogo acabou.
De3+
— Não, doutor. O jogo acabou há muito tempo. Só lhe falta deitar o rei.
domingo, 4 de janeiro de 2009
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10 comentários:
Belo trabalho, a notação é a alma do texto. Curti muito, mas acho que fica mais difícil para o leitor que não conhece o sistema.
3 palavras: OBRA DE ARTE.
interessante, mas achei o começo melhor q o final, rodrigo.
as referências e comparações entre a trama e o jogo estavam melhor dosadas, depois praticamente viraram só referências ao jogo, algumas tentando se encaixar meio forçosamente, talvez para atingir o objetivo q vc tinha em mente, mas cansando um pouco o leitor.
minha sugestão seria um texto um pouco menor, mas menos "cheio" de referências.
ah, e duas correçõeszinhas básicas:
"Nunca leu, Sade?" (a vírgula tá sobrando deixa o sentido da frase incorreto, neste caso como se o nome da detetive fosse Sade)
"E os dois lados precisam caminhas pelas casas brancas e negras." (errinho de digistração)
1 abraço
Adorei Rodrigo, ficou MARA.......Parabéns!!!!!....bjus Elis
Opa, valeu moçada. JLM, valeu os toques. Vou corrigir os erros de digitação (faltou uma revisão melhor). E qto à extensão, acho q um pouco antes do final, perdeu gás mesmo. A minha dificuldade é q eu decidi levar o jogo até o final. Pra contornar isso acho que eu precisaria de uma elipse ali no meio, suprimindo parte do jogo. Tenho q pensar uma saída melhor. Além da dificuldade q a Silva citou, q tb me preocupou um pouco, mas resolvir passar por cima dessa.
cara, ficou muito bom... mesmo! usar o jogo como plano de fundo encaixou muito bem. os diálogos intercalando a vida real e o jogo foram muito bem construídos. infelizmente não vou ter acesso à internet nos próximos 10 dias... não vou poder ler os outros textos e votar... grande abraço a todos... (o ritmo desse comentário continua louco igual ao meu texto)
no começo até cheguei a imaginar q o jogo era entre Hannibal Lecter e a detetive de O Silêncio dos Inocentes.
muito bom, mesmo. se eu tivesse como ler com um tabuleiro de xadrez do lado, para acompanhar os movimentos, sem dúvida teria curtido ainda mais. sem dúvida a qualidade da literatura rodrigana está um passo à frente de nós, pobres amadores. não só pela técnica, mas pela própria criatividade.
A urdidura do texto é engenhosa. E o dialógo rico completa a função de prender o leitor até o final.
Me fez pensar naquela conferência sobre a "rapidez" do Ítalo Calvino...
Acho que a condução de cada peça foi muito competente e o conto (em sua rapidez) evita a profusão de banalidades que seria esse diálogo numa formatação mais romanesca.
deixa a desejar um pouco no final, realmente, porque fecha o que estava aberto e volátil todo o tempo...um jeitinho clichê de fechar um conto autêntico.
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