Retornava de longe para casa. Tinha passado não se sabe quanto tempo distante. Pouco importava, de qualquer forma. Ia e vinha conforme o vento lhe enfunasse as asas. De onde vinha não deixava saudades, pra onde retornava, não lhe deram falta. Seguia, apenas, o vento. E um magnético extinto que lhe guiava os caminhos.
O vento passava tranqüilo por nuvens e azuis ensolarados enquanto, do alto, via as telhas de barro, as chaminés de tijolos e as ruas de pedras tão conhecidas. Lá embaixo, uma sombra de asas abertas escorria veloz por paredes, ruas e praças. Contra o céu azul, ele era apenas um arrulhar malhado diminuto. Baixou a altitude, já entre os prédios, preparando o pouso. Ao virar da última esquina antes da praça, contornando o imenso prédio abobadado, num susto arremeteu com um bater de asas violento, perdendo na manobra umas boas plumas que caíram ao chão para serem pisoteadas por milhares de calçados italianos. Só foi encontrar pouso numa amurada de uma sacada distante do chão. Lá embaixo, a Praça de São Pedro fervilhava com milhares de pessoas. Não tanto quantos os sapatos, anotado esteja, visto que para cada uma destas, dois daqueles teremos, mas ainda assim, de fato, eram muitas, muitas pessoas, a ponto de não haver, observe bem, pouso seguro para um pombo sequer. Por pouco, diga-se em verdade, as próprias plumas que deixara não caíram sobre os calçados, ao invés de embaixo deles. Todo espaço estava ocupado por um mar, por falta de metáfora melhor, de gente que, volta e meia, olhava para cima, com expressão pesada, para os pombos na sacada alta, reunidos num arrulhar aturdido e confuso.
Foi só com um movimento brusco, vindo fundo da sacada, que dispersou-se as aves. Um homem de vestes longas e escuras, vindo da porta que dava acesso à sacada, sacudia o braço obrigando os pombos a buscar pouso novo nos beirais das janelas fechadas próximas dali. O homem não resistiu a uma espiadela por sobre o parapeito, para ver a praça abarrotada de cabeças que se ergueram em expectativa. Recolheu-se rapidamente e retornou para o aposento onde outros homens sisudos, estes de cabeças baixas como se pesassem, e mãos unidas em frente ao corpo, cercavam uma cama enorme e ricamente decorada, separada do mundo por um dossel fino de seda, com uma barra de algodão, como bem observou alguém. Retornando, o homem da sacada pode ver, por uma fresta do dossel, os olhos claros do velho deitado na cama. Baixou os seus em respeito ou vergonha frente às sobrancelhas brancas e se juntou aos outros homens de mãos unidas ao redor da cama.
O velho, no entanto, não olhava o homem que retornava da sacada. Não via, mesmo, a sacada, ou a praça com suas pessoas, sapatos e penas de pombos pisadas. Via além dos telhados de barro, das paredes de pedras, das ruas estreitas. Via uma chaminé distante, longe dos olhos, a boca suja de fuligem, um calor abraseirado escapando-lhe das ventas. Via a boca estreita, a passagem apertada, as paredes escuras que desprendiam fuligem à passagem do seu pensamento. Via a luminosidade da abertura inferior, o vermelho das brasas sob o branco das cinzas. Via a passagem se alargar e dar espaço para uma cozinha italiana simpática, com cheiro de manjericão, trigo e tomate. Via a velha em frente às brasas, uma pilha de cartas antigas e amareladas nas mãos, enroladas por uma fita de cabelo desgastada, com os olhos fixos nas janelas basculantes.
A velha, no entanto, não olhava os vidros das janelas. Não via, mesmo, a sua sacada simples de cacos de azulejos vermelhos. Nem via as casas vizinhas amontoadas sobre as ruelas estreitas de pedras centenárias. Via por entre as paredes, por entre as ruas, os bairros. Via além dos pombos, da praça, do obelisco. Além das portas majestosas guardadas por alabardeiros suíços. Via as escadas jamais vistas mas muito imaginadas, os salões luxuosos. Via as escadas, a porta de madeira com maçaneta dourada. Via o círculo de homens de negro. Via o dossel. A abertura estreita, uma fresta apenas, por onde via o velho de olhos claros deitado em lençóis brancos.
O velho então, já não via mais nada. Os olhos abertos como as janelas escancaradas de um quarto vazio. Uma umidade ainda restava nas rugas que corriam do canto do olho fundo até o travesseiro. Não mais que uma gota. No alto do prédio, não tardou, subiu uma fumaça escura, que se espalhou como uma revoada pelo céu ensolarado. Ouviu-se um arrulhar sonoro da praça, que assustou os pombos empoleirados nas janelas. Uma algazarra que se espalhou pelas ruas, cafés, casas. E longe, uma velha também olhava a fumaça escura. De dentro de uma cozinha, pelos vãos de uma janela, ela olhava a fumaça que se espalhava no céu, levada pelo vento. E a velha atirou uma a uma, as cartas da pilha às brasas. Viu os eu te amos arderem, as saudades queimarem, os beijos incendiarem e as promessas tornarem-se cinzas. Atirou a fita às chamas, já mais altas, e o conjunto liberou uma fumaça esbranquiçada, que escalou as paredes estreitas de fuligem, espremeu-se pela boca aberta apertada, e lançou-se ao ar, branca, contra o céu azul. Quisera eu dizer que as fumaças se encontraram, que se misturaram no ar num balé gaseiforme. Mas não foi assim que aconteceu, e me seria impreciso, para não dizer irreal ou mentiroso, dizê-lo. O que sucedeu foi que o vento soprou e dissipou de um golpe as fumaças, que nunca se encontraram, afinal. A fumaça esbranquiçada mal deixou a chaminé já dissipou-se quase por completo. A fumaça preta, por pouco, é verdade, mas não chegou a sair da praça. Da fumaça esbranquiçada dos eu te amos queimados, beijos abrasados e promessas incineradas, pouco se sabe. Da fumaça preta, muito já se tem falado. Desde aquela comoção barulhenta, repentina e uníssona da praça, que assustou os pombos nos batentes das janelas altas, que bateram em retirada, num arrulhar nervoso, despejando, no susto, penas e fezes sobre a Praça de São Pedro.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
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6 comentários:
me liguei ds impecisões dos rituais já passdo do meio do texto. Como não queria perder a postagem e amanhão nao vou conseguir postar, deixei assim mesmo. Depois vou ver s consig contornar isso e posto a versão definitiva no meu blog. Espero q o processo sirv o menos pra entender o procss criativ. vamos descobrir com o nov texto. merda de teclado!
Rodrigo, não saquei tanto o que tu quis dizer com "a imprecisão dos rituais". O que eu achei realmente estranho foi o segundo parágrafo, a partir da frase "Não tanto quantos os sapatos". O uso das frases pessoais do narrador ficou forçado, pois não é um recurso que apareça mais no texto (só um pouco no final) e me pareceu deslocado. Fora essas, o uso de orações curtas em quase todos os momentos ficou interessante.
tem um q de inspiração no filme anjos&demônios ae?
senti tbm meio forçoso o pensamento no começo... interessante a tecnica, mas ficaria melhor se utilizada em outro texto, nao aqui.
qto aos rituais.... apenas a fumaça branca q ficou meio forçada. isso era justmente a parte mais importane do texto, e nao disse mto bem a q veio.
felix, confesso fiquei na dúvida da intromissão do narrador ali. mas é q tinha achado tão legal... Realmente, no entanto, podia ter deixado pra outro texto. Creio, nao tanto pelo conteúdo, mas mais pelo tom.
JLM. Não. nao vi, nao li e, se o cabelo do tom hanks estiver como no codigo d vinci, me recuso a ver.
Fábio, nao entendi o q vc quis dizer com o lance da fumaça branca? nao deu pra entender? ou ficou fraco? confuso? entedi nao.
Imprecisos ou não, Rodrigo, foram rituais que ficaram bem marcados. Nesse tipo de texto, gosto da linguagem pomposa. Na medida.
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