Na melancolia cinematográfica de um sofá azul no meio de uma sala, com uma xícara apoiada entre o polegar e o dedo médio e um cigarro dependurado entre o médio e o indicador, estava ele observando sua recém acabada obra. O ambiente era até meio bucólico. O sofá era o único móvel do lugar, exceto por um armário quase imperceptível onde ficavam tintas e pincéis. O chão não tinha piso. Assim como tudo ali, era uma soma de artes. Um pouco de tinta, algumas asas de borboleta, bitucas de cigarro, farelos. As venezianas de madeira davam para o mato.
Á esquerda, ao lado da porta, se empilhavam os livros. Não gostava de estantes pra eles. Geralmente o faziam mal e não mereciam conforto algum. De Sartre a Nietzche. De Bukowski a Saramago. E era só. Quer dizer, poderia ser. Não fossem telas brancas nas paredes.
As pernas cruzadas eram mais do que uma insuportável mania: quase uma marca. Olhava, quieto e extremamente tranqüilo para mais uma de suas obras ainda não começadas. Sabia exatamente o que estaria ali nas próximas horas. Apenas sentia prazer na espera.
Foi descoberto por um amigo de um amigo, aquelas histórias clássicas. O cara era jornalista e um dia viu uma de suas telas por aí. O nome era Mancha IV.
Ele nunca foi de falar muito. Quando os poucos amigos reclamavam da sua solidão, ele nem se dava ao trabalho de argumentar. Sabia que só quem vive só sabe como é difícil verbalizar o prazer da sua própria companhia. Isso foi preponderante, também, para o mistério que surgia cada vez que uma nova obra era divulgada.
Os nomes nunca mudaram: Mancha. As inspirações também não: manchas. E era tudo o que se sabia. Sorria, apenas sorria, quando via algum multimilionário com um quadro seu na sala, junto com as crianças. “Se ele soubesse que foi feito de porra”. E sorria para a fotografia.
Algumas, claro, eram óbvias. Uma tela inteira de manchas de asas de borboleta. Outra com bitucas de cigarro manchadas pela mistura entre lábios e nicotina. Duas – repetidas por um montante em dinheiro capaz de sustentá-lo por meio ano – com as imbecis manchas em tecidos. Mas a maioria delas, impossível de identificar. Borrões de café, um vidro com marcas de corrosão da maresia, gotas de limão em uma tela branca, sangue em lençóis, milhares de marcas de patas molhadas com vinho.
Ria da idiotice das pessoas. A última obra, que rendeu um livro de tentativas de explicações e era só um balde de tinta jogado numa tela. E vivia assim, olhando em volta e pensando nas manchas que lhe trariam dinheiro para passar a vida sentado no sofá azul.
Jogou o cigarro no chão, levantou-se, pisou em cima. Sarcástico, olhou pra cima e viu, na tela pendurada, a obra principal de sua vida: a causa de sua morte. As manchas amarelas de fumaça estavam quase prontas. Pegou as latas de óleo que estavam ao chão. Era hora de ganhar a vida.
6 comentários:
Pode ser frescura, talvez não deva nem ser levado em consideração, mas nas leituras q fiz o título destoou um pouco do estilo do texto. Sei lá, pode ser bobagem. Mas qto ao texto eu curti, algumas pasasgens em especial. Como o "passar a vida sentado no sofá azul" (isso daria um bom quadro, a propósito); o quadro de porra tb é legal. esse lance de fecundar (se bem q o personagem parece querer mais agredir). sei lá, interessante.
"só quem vive só sabe como é difícil verbalizar o prazer da sua própria companhia"
donde vc tirou essa pérola? experiência pessoal?
JLM, acho que sim. Ou talvez não. Não sei. Saiu assim. Natural.
vc apresenta monólogos pra si mesma qdo está só? (psicanalista mode on)
Não apresento, escrevo. :)
Taí, muito bom mesmo!
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