quarta-feira, 5 de março de 2008

A Última Viagem

Fábio Ricardo
05/03/08


Caminhou até a porta e olhou para o relógio. A madrugada já estava avançada e ele tinha a infeliz certeza de que aquele 13 de março não sairia de sua memória. Desabotoou o sujo macacão, tirou-o e o pendurou no ombro, depois de trocar as botas pelo par de chinelos já cansados pelo tempo.

Desceu a escada de ferro, caminhou poucos passos e parou. Não costumava fazer isso, mas uma tristeza súbita fez com que se virasse e lançasse um último olhar à velha locomotiva 331, já castigada pelas inúmeras viagens.

Dentro daquele monstro metálico, circundado pelos ruídos característicos e envolvido pelo sacolejar constante, seu José passou boa parte de sua vida. Lembrava-se como seu pai o ensinara a limpar os trilhos, emprego que teve até o dia de sua morte. O então mirrado Zezinho entrou para a empresa como entregador de recados. Tudo que ele precisava fazer era levar o malote de correspondências até o vagão, e deixar que as cartas tomassem seu rumo.

Passou pelos mais diversos cargos dentro da Companhia, até chegar ao posto que ocupava naquele 13 de março: maquinista. Seu pai, que nunca tivera o privilégio de ocupar cargos além da limpeza, estaria orgulhoso de seu primogênito. Com todos esses pensamentos, uma lágrima escorreu pelo rosto daquele homem, que em frente da locomotiva mais parecia um menino, aquele menino que aprendeu com o pai a limpar os trilhos do trem.

Virou-se de costas e falou baixinho uma breve despedida. Não entendia o motivo que fazia os homens modernos adorarem tanto seus carros e ônibus, seu trânsito caótico. Não entendia o motivo dessa mudança radical, de viajar apenas nos rios de asfalto, enquanto haviam tantos trilhos a serem percorridos.

Naquele 13 de março, seu José enxugou a lágrima que insistia em avançar por seu rosto, torcendo que um dia a velha – e agora triste – locomotiva voltasse a apitar.



*O conto é uma ficção e não tenta reviver uma história verídica, mas serve de homenagem à Locomotiva a Vapor 331 e a José Pacheco, maquinista que dedicou tantas horas àquelas viagens entre Blumenau e Trombudo Central. A História conta que a última viagem oficial da locomotiva teve fim às 17h do dia 12 de março de 1971, mas testemunhas afirmam ter visto o trem passar por volta das 2h pela estação do Encano, fazendo um retorno silencioso a Blumenau, onde seria, para sempre, silenciada.

4 comentários:

Daniela Mts disse...

Comento pouco, mas sempre leio o blog ...
Quando será o lançamento do livro de vcs? Estas estórias/histórias dariam uma coletânea supimpa! Qndo sair, guardem um pra mim, ok?! ;)

[]'s

CASSIANE SCHMIDT disse...

Excelente texto, leitura que flui.Minha cidade natal é Trombudo Central, o trem passava bem atrás do quintal de minha casa;ainda há por lá a velha estação,resquicios de trilhos abandonados, algo magico que eu gostaria de ter vivido.
Parabéns, voltarei mais vezes.
>¨<

Anônimo disse...

Alguns resultados dessa falta dos trens é essa de todos os dias: trânsito caótico, ônibus e caminhões destruindo asfaltos.
Gostei do conto, ficou emocionante.

Fátima Venutti disse...

Que magia é essa que essas máquinas têm sobre nós? O que nos mantém vivos e com um cordão ligado à nostalgia do trem? De seus apitos ao passarem pelas curvas em suas sôfregas dormentes? Da fumaça que ainda permeia por sobre os vagões afugentando a escuridão da noite? Do cheiro do óleo queimado a invadir narinas e mergulhar pela correnteza das lágrimas que insistem em não nos abandonar..
Ahhhhhhh Somente quem já viveu e respirou esse enigma é capaz de se emocionar ao ler e reler e reler tais escritos..
Que saudade que dá!!!!!!!!!!!

PIUÍIIIIIIIII

Fátima Venutti
Autora do livro Terceiro Apito