quinta-feira, 6 de março de 2008

A viagem

Félix B. Rosumek
05/03/08

Na estação lotada, as pessoas se acotovelavam e empurravam, loucas para garantir seu lugar e começar a viagem. Pacientemente, segui o fluxo e embarquei no veículo. Por pura sorte, consegui uma vaga na janela e acomodei-me enquanto o motor começava a funcionar. O trecho seguia por terras ermas, mas ligava algumas importantes metrópoles locais. Assim, o vagão lotou rapidamente. Seria um longo e tortuoso passeio.

O trem iniciou seu caminho pela pacífica planície. Aquela paz lá fora, em contraste com o barulho do interior, me fez lembrar de minha infância. Bons tempos de inocência e inconsciência, quando o mundo parecia mais simples e todos eram pessoas nas quais podíamos confiar... E a juventude, então? A inocência saía de cena, dando lugar à inconseqüência. Inconseqüência e inconsciência... Tempos de aprendizados, revoluções e sonhos. Sim, muitos sonhos. O futuro era glorioso e o mundo, uma incógnita a ser desbravada. E eu me impacientava com minhas limitações, mas sabia que meu tempo iria chegar.

Conforme a locomotiva engolia os trilhos, a planície ficava para trás e entrávamos em território montanhoso. Logo à frente, uma negra boca se abria em meio à montanha. Fomos engolidos e apenas duas luzes não queimadas no vagão espantavam a escuridão. O matraquear da locomotiva, enquanto isso, ecoava assustadoramente pelo túnel. Uma criança encolheu-se nos braços da mãe, choramingando de medo, provavelmente fazendo o caminho pela primeira vez. Olhando para ela, senti-me novamente a criança solitária e assustada que fora arrancada de sua terra pela vida, sem braços de mãe para consolá-la. Um órfão sem amigos e amores, sem raízes e famílias, a transitar cegamente pelo mundo em busca de um lugar que pudesse chamar de casa. Expulso, infeliz, irrequieto, solitário, jamais me sentindo realmente bem onde quer que estava. E eu apenas podia seguir sendo feliz pela metade, esperando meu tempo chegar.

A saída foi anda mais enervante que o túnel em si. A íngreme serra se descortinou diante de nós, fantástica e assombrosa. Os trilhos escorregavam por um declive acentuado, quase uma queda livre num penhasco. Não era uma sensação para estômagos fracos. Uma mulher na minha frente começou a passar mal e a discutir com seu marido, que não quisera pagar pelo avião. Ele respondeu rispidamente que dinheiro não dava em árvores e uma pesada discussão se iniciou. Uma acusava outro de negligência, e outro lamentava ter casado com uma. Lembrei então de quantas vezes já não tinha passado por aquilo. Quantas frustrações, quantas brigas. Inúmeras paixões idealizadas e amores eternos despedaçados, seus momentos agradáveis obliterados pelas amargas lembranças de finais cruéis. E eu chorava minhas desilusões, tentando acreditar que meu tempo iria chegar.

Depois de minutos que pareceram eternidades, atingimos o fundo do rochoso vale entre os montes. O terreno ficava pedregoso e as rochas faziam os vagões saltarem em solavancos. Um homem se impacientou com a tremedeira, tentando inutilmente manter seu computador portátil parado, enquanto mantinha duas ligações simultâneas no celular. Em uma delas, falava desculpas suplicantes e monossílabos afirmativos, com os olhos faiscando. Na outra, a faísca virava chama e gritava furiosamente com quem estava do outro lado, cuspindo ordens impossíveis e prazos inviáveis. Sua atitude ambígua me fez lembrar das infinitas vezes que eu enfrentei a arbitrariedade e hipocrisia dos outros. Quantas vezes tinham me falado que eu deveria abaixar a cabeça, acatar a realidade e deixar o romantismo de lado, enquanto fosse um peão num jogo de reis (e quantos, dos que se corrompiam, resgatavam o idealismo quando ascendiam aos tronos)? Quantos me aconselharam a vender a alma, a ser esperto e tirar vantagem de sistemas falhos. E quantas as vezes em que fui condenado e crucificado por tentar me manter fiel, não às palavras da serpente, mas aos meus próprios ideais? Oportunidades perdidas, facadas pelas costas, conflitos desgastantes... E eu podia apenas amargar minhas derrotas, me perguntando em meio à raiva: será que meu tempo iria chegar?

Finalmente, o trem reiniciou a subida, lenta e penosamente. Após algumas horas, deixávamos a serra para trás e novamente deslizávamos com velocidade na planície. O trem chegou à próxima parada e as pessoas jorraram por suas portas. Saí do mesmo modo que entrei, calmo e sem pressa. Enquanto os outros brigavam por táxis ou se socavam nos ônibus, deixei a estação para trás a pé. Olhei ao meu redor e saudei a paisagem, velha conhecida, mas que mesmo assim ainda conseguia me fascinar. Eram apenas alguns quilômetros antes de chegar em casa e, finalmente, ter ela em meus braços outra vez. Queria lhe contar as novidades, dizer que tudo dera certo na viagem e como as coisas iriam melhorar.

Olhei para os trilhos e sorri. O trem ainda tinha uma longa jornada pela frente, mas eu não precisava mais me preocupar com seus futuros solavancos. Pois sabia que meu tempo havia chegado.

2 comentários:

Fábio Ricardo disse...

Interessante como sempre acabamos buscando uma forma de se expressar utilizando ao máximo as possibilidades do tema. Diversos contos partiram para o subjetivo.

Rodrigo Oliveira disse...

Mas nesse caso, mesmo com as viagens subjetivas, temos uma viagem de trem objetiva, material, palpável. Isso acho o mais interessante. A metáfora nas entrelinhas nao sufoca a história "real" do texto, de uma viagem de trem de verdade.