quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Estresse

Acordou, caminhou até o banheiro, coçou a barriga saliente e urinou. Escovou os dentes, cuspiu, e só então olhou no espelho. Gritou, mas não saiu voz alguma. Ficou apenas fitando o próprio rosto no espelho do banheiro. Estava xadrez. XADREZ!

Piscou duas ou três vezes, esfregou os olhos e se olhou novamente. Não era sonho, não era ilusão, não havia confusão mental alguma. Ele estava realmente com o rosto xadrez. Não dava nem pra disfarçar. Era aquele xadrezinho vermelho com verde, igual toalha de natal, ou camisa de lenhador.

Fingiu que não era nada, mesmo com a testa já encharcada de suor. Deitou-se e puxou o cobertor por cima do rosto. Fechou os olhos e fingiu dormir. Sabia que não iria conseguir se enganar dessa forma, mas quem sabe assim ele conseguisse finalmente sair de dentro desse sonho estranho.

Foram apenas 16 segundos, mas que duraram mais de uma hora em sua cabeça. Levantou assustado e caminhou devagar até o banheiro, pé ante pé. Acendeu a luz e olhou diretamente para o espelho. Estava lá. O par de olhos azuis, o sorriso bonito, o cabelo despenteado... e o rosto completamente xadrez.

Precisava pensar rápido. Tinha que trabalhar, tinha uma pilha de papéis em cima de sua mesa, esperando por um destino. Abriu os potes de maquiagem da esposa à procura de alguma coisa. Qualquer coisa cor de pele. Encontrou. Procurou pelo nome na embalagem, mas era tão velha que a embalagem não existia mais. Pegou a espuma e esfregou no rosto. Era fraco demais. Esfregou com mais força, e começou a pintar-se.

Depois de uns quinze minutos, até um cego ainda podia ver o xadrez quadriculado no rosto dele. Mas com óculos escuros, boné e cachecol, talvez conseguisse disfarçar.
Ligou para o escritório e avisou que iria se atrasar. Ligou para o consultório e marcou um horário em caráter emergencial. Chegando lá, entrou direto para falar com o médico.

- Doutor, estou xadrez. – falou, tirando os óculos e o boné.

Exames de sangue e urina, pressão medida, raios-x.

- Deve ser estresse, tire a semana de folga.

Chegou em casa e deitou no sofá. Como assim, estresse? Desde quando alguém fica xadrez com estresse? Podia ficar meio roxo, branco demais, até meio amarelado. Mas xadrez? Impossível. Decidiu alugar um filme. Um não, vários. Ligou para o dono da videolocadora e disse que estava doente, pediu para entregarem em casa. Não deu outra: sete fitas entregues na porta de casa, o entregador nem reparou que ele estava xadrez.

Uma semana se passou e não deu as caras no trabalho. O telefone ficou fora do gancho, o celular desligado, a esposa só voltava da casa de sua mãe em três dias. No almoço, preparava um sanduíche daqueles que seu médico nunca permitiria. Dois hambúrgueres, duas fatias de presunto, três fatias de salaminho, outras três de queijo cheddar e uma de peito de peru. Pelo menos dois desse por almoço. O café da manhã era Sucrilhos, da tarde era nuggets de frango e de noite comia um Miojo com sardinha em lata. A vida que sempre quis.

Naquela manhã, acordou com um sorriso no rosto. Assobiou uma canção brega e foi cantarolando ao banheiro. Urinou e escovou os dentes. Olhou-se no espelho e deu um grito de pavor. Seu rosto estava normal. Palidamente e assustadoramente normal.

7 comentários:

JLM disse...

ufa, até q enfim alguém pra abandonar o jogo de xadrez. já tava pensando q a criatividade começou o ano em baixa aqui no duelo.

gostei da mistura do fantástico com um toque de crítica ao cotidiano.

mandou bem.

Félix disse...

boa! é apavorante viver durante um mínimo tempo do modo como se quer, e depois ter que encarar a realidade (de trabalho, de saúde, de sociedade, etc.). todas as férias a gente passa por esse pavor. ao menos, ninguém fica xadrez na praia, felizmente!

Anônimo disse...

ah, relendo, tenho uma correção a fazer: quando ele está olhando a maquiagem, não é a embalagem que não existe mais, duh. É o rótulo. A embalagem era tão velha que o rótulo nem existia mais. =)

Lori disse...

rsrsrsr....amei o humor desse texto, ha se o estresse fosse assim.....srsrs...bjus...Parabéns...Elis

Vivi disse...

Um fantástico crível. Também gostei do banimento da abordagem xadrez = jogo. Òtimo!

Rodrigo Oliveira disse...

massa! Lembrei daquele texto do buk do cara q acorda verde (amarelo, vermelho, rosa-com-bolinhas-amarelas?) e mata todo mundo com um rifle. Achei mto massa, só queria ver um pouco mais dele no período da doença xadrez, o foco ficou na comida. E gostei da pitada crítica ter ficado suspensa, não tão descarada.

m.r.mello disse...

Gostei!...me trouxe à memória o "um, nenhum e cem mil" do Pirandello. Se quisesse, dava até pra expandir o argumento; é possível divisar muitos caminhos...