segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A praia

Eu desfrutava a praia alva, ladeada pelo negro oceano que envolve as terras imortais. As exóticas plantas lançavam sombras na areia, pela luz das estrelas e nebulosas a dominar o céu. Aquele que se põe a apreciar o céu terrestre, mesmo na mais escura e distante noite, só poderá ironizar a sua pobreza após contemplar um céu de sonho. Foi o que aconteceu comigo, pois há tempos eu ignorava os pálidos prazeres daquele mundo insípido. Naquela costa perdida no tempo e espaço, o firmamento não era uma mera cúpula escura pontilhada de luz. Não, havia um desfile de cores e objetos celestes, o próprio universo dançava diante dos meus olhos. Galáxias colidiam, supernovas explodiam, estrelas nasciam e morriam, criando e extinguindo incontáveis mundos e sabe-se lá quais fabulosas formas de vida. Nestes momentos, eu podia andar sobre as ondas, vendo o reflexo dos astros se torcer com meus passos, efeito este imitado pelos próprios no céu. Afinal, em nem todos os universos é o reflexo que se submete ao objeto...

A paz do momento foi quebrada quando o sacerdote pousou ao meu lado. Não o tinha visto chegando ao longe, apenas me virei um momento e a suntuosa liteira estava ali, carregada por seus escravos. Eram homens estranhos, de feições distorcidas, que ficavam menos humanos conforme se olhava de mais perto. O sacerdote, entretanto, nenhuma pista fornecia de sua aparência. Seus trajes cobriam a silhueta que poderia, talvez ser humanóide. O rosto permanecia escondido por uma máscara plana, sem nenhuma abertura. Como enxergava, não era possível especular, pois seus movimentos eram tão precisos que em nada indicavam cegueira. Mas o mais temível de tudo foi a voz, quando usou um chiado vindo de esferas celestiais ignotas para articular palavras.

O sibilo infernal questionava a minha presença ingrata em suas terras, tão pouco visitadas por aqueles que mantinham um mínimo de sanidade. Respondi-lhe petulantemente, falando que os riscos daquele mundo eu não hesitava em encarar, pois já havia passado pela mais horrenda de todas as experiências: uma vida desprovida de sabor. A criatura soltou algo que só minha imaginação poderia interpretar como uma risada, perguntando se eu conhecia todos os segredos daquele universo que julgava conhecer. Havia muito que eu não sabia e existiam certas coisas escondidas nos recônditos de cada mundo que poucas formas de vida estavam aptas a encarar.

Enquanto ele falava, começou a nascer a incômoda sensação de que aquela praia não era tão paradisíaca quanto eu julgava. Aqueles sacerdotes eram conhecidos nas distantes vilas como Manipuladores de Sonhos e, dizia-se, eram capazes de dobrar a vontade de qualquer viajante e transformar sua jornada em um verdadeiro pesadelo. As nebulosas no céu começaram a tomar formas estranhamente sugestivas, completamente fora do padrão aleatório natural que deveriam ter. O negro oceano pareceu ficar oleoso e observei-o começar a se arrastar na minha direção, as ondas como se fossem tentáculos à minha procura, enquanto a criatura declarava que ia dar uma pequena mostra do que é o verdadeiro sentido da palavra horror.

Tentei fugir, mas simplesmente não consegui me mover. Eu estava subitamente enterrado na areia até acima dos joelhos. Tentei usar minha força de vontade para me livrar, mas o poder do sacerdote era superior. O mar me envolveu e me arrastou com uma força inacreditável, quase separando as pernas do resto do corpo. Fui tragado por aquele oceano vivo, berrando até que as ondas me empurraram para baixo e minha boca e pulmões se encheram de água.

E então eu estava submerso, diante de um panorama emudecedor. As águas, antes tão escuras, se descortinavam límpidas em minha frente. Eu enxergava as profundidades submersas como se fossem penhascos, montanhas e vales. Eu vi estranhas criaturas nadando, e a sombra de algum leviatã escondido sob cavernas. De repente, a voz do sacerdote ecoou em minha mente, mandando-me olhar adiante. Lá, em um enorme abismo há quilômetros de profundidade, eu vi o que parecia ser uma cidade submersa, coberta de algas e incrustações, atestando uma idade prodigiosa. Mas não era uma cidade qualquer. Seus prédios não eram construídos com os ângulos corretos. Eu não conseguia apreender totalmente sequer uma única construção, pois seus contornos e vértices não pareciam nítidos, suas formas sempre escapavam da minha visão, em aberrações antieuclidianas que nenhuma matemática humana conseguiria compreender. O sacerdote sibilava, para meu completo terror, de que aquele túmulo aquático não existia só naquele mundo, mas em outros... incluindo o meu.

No centro daquela cidade maldita, havia um prédio de proporções ciclópicas, para onde fui arrastado implacavelmente. Com a velocidade que eu estava, eu jurava que meu fim viria com o impacto. Porém, quando estava para me chocar com a parede limosa, coberta de inscrições ilegíveis, um ângulo incompreensível se abriu de modo bizarro e fui engolido pela construção.

Eu estava em um salão, ou ao menos assim parecia. Conseguia enxergar um teto, mas sua estranheza metafísica fazia ser impossível estimar sua altitude. No momento em que eu pensava ser um determinado valor, o teto parecia muito mais distante. Quando eu estimava muito alto, ele não parecia tão imenso assim. O espaço, entretanto, era colossal. Eu não conseguia enxergar limites para nenhum dos lados. Tudo se perdia em uma névoa de negrura, onde meu único indicativo de perspectiva era as colunas que se erguiam por todos os lados, aparentemente sem lógica alguma. Suas propriedades eram tão curiosas quanto as do teto, o que me deixava perdido em uma enormidade incalculável, que podia ser definida apenas com uma palavra: massacrante.

Minhas conjecturas não puderam durar muito tempo, pois um estrondo ecoou pelas profundezas invisíveis, logo seguido por outro. Não era possível dizer de onde vinham, às vezes era da frente, às vezes parecia da direção oposta. Eram pancadas fortes, misturadas a uma miríade de ruídos misteriosos, fora de qualquer padrão natural, sugerindo uma interação de matérias estranhas e texturas alienígenas. Entretanto, o pior do som foi o que notei depois de alguns instantes: sua regularidade. Eram estrondos regulares e pareciam cada vez mais altos. Um arrepio correu pela minha espinha quando eu percebi que aquilo só poderia ser - deuses, que tipo de abominação cósmica poderia estar gerando aquilo?? - passos. Passos que estavam se aproximando...

E então eu vi.

Acordei gritando, com uma gargalhada sibilante ainda a soar nos ouvidos. Nunca o quarto fedorento do cortiço onde morava tinha me parecido tão reconfortante. Normalmente eu odiava ver as tábuas velhas do teto, pois indicavam que mais uma noite de aventuras tinha acabado. Daquela vez, porém, foi minha salvação. Um leve vislumbre daquela coisa gigantesca que se arrastava pelo salão já havia trincado minha sanidade, sem dúvida um segundo a mais e ela teria se despedaçado inteiramente. Mas meu cérebro doentio não conseguia deixar de recapitular aquele vislumbre demoníaco, misturando-o sempre às terríveis últimas palavras do maldito sacerdote...

Desde aquela fatídica noite, passei a ter medo de dormir. E jamais me aproximei novamente de qualquer mar ou oceano.

9 comentários:

Anônimo disse...

félix como sempre, nas drogas. o mais engraçado eh q no vcomeço do texto, quando li "nebulosas", jah sabia de quem era o texto, hehe.

Anônimo disse...

Tanto Lovecraft quanto Dagon, ficariam muito orgulhosos deste texto.

"que tipo de abominação cósmica poderia estar gerando aquilo?? - passos. Passos que estavam se aproximando..."

Rodrigo Oliveira disse...

R'lyeh! massa!
Curti muito. O começo eu achei q patinou um pouquinho, mas qdo engrenou deslanchou. (se eu fosse mais dedicado, uma nova leitura poderia resolver isso, acho). Lovecraft não morreu. Só aguarda submerso um chamado :P

JLM disse...

só achei q "aberrações antieuclidianas" não se encaixou. tirou um pouco do ar fantástico.

Marcelo Labes disse...

Grandes frases, sem dúvida. E Lovecraft, quem é? Acho que já topei com ele. Alguém me explica? Ficaria mais fácil entender o encantamento que esse texto proporciona.

Félix disse...

H. P. Lovecraft é um autor do final do século XIX / começo do XX. Foi influenciado por Poe, mas sua lietaratua tomou caminhos diferentes. Ele lida sempre com o fantástico, particularmente o horror. Muitos de seus contos montam uma mitologia complexa que envolve deuses antigos e alienígenas, sonhos e cidades perdidas na Terra, um mundo bizarro e assustador do qual as pessoas não tem noção. E o menor vislumbre pode deixá-las piradas!

Sua escrite é peculiar, mas difícil de digerir no começo. É estranho, é rebuscado, é até contraditório e mal-escrito em certos momentos. Eu não gostei quando li as primeiras coisas, mas, quando dei uma chance a mais e me inseri na mitologia, se tornou um dos meus favoritos.

Quando eu escrevo esses contos lovecraftianos, eu não pretendo criar nada inovador em termos de mitos e estilo, estou apenas dando continuidade ao mundo de Lovecraft (como vários autores fizeram, é uma homenagem e uma forma de expandir os mitos). Sei que muitas coisas ficam difíceis de sacar para quem não conhece (e no Brasil a literatura de horror fantástico como um todo é pouco difundida), mas é escrito por prazer próprio, sem visar votos no Duelo! :)

Os melhores contos de Lovecraft fazem parte dos chamados "Mitos de Cthulhu", a parte central da mitologia. "O chamado de Cthulhu", "Nas montanhas da loucura" e "A procura de Kadath" são três dos melhores, embora os dois últimos sejam mais complexos. É fácil encontrar os textos na net, já que sua obra virou domínio público há alguns anos.

Thiago Floriano disse...

parabéns, félix. o texto ficou tão bem redigido que tive que procurar as palavras depois que terminei a leitura... ou seja, encaixaram muito bem... não é meu estilo de literatura favorito, mas tenho que aplaudir dessa vez...

§Polli§ disse...

Félix, seu texto é maravilhoso e envolvente, como o de grandes escritores! Parabéns mesmo!

Marcelo Labes disse...

Obrigadão pela explicação. Útil mesmo! Abraço.