sexta-feira, 26 de junho de 2009

As Regras

- Boa noite, senhor Rasmussen. Somos da Corporação Harper. Disponibilizamos serviços de transmissão televisiva, decoração digital, jogos virtuais e serviços eletrônicos e de comunicação em geral. Gostaria de solicitar informações sobre algum produto específico?

- Não.

- Muito obrigado.

Valquíria desligou o fone e o programa emitiu o comando para uma nova ligação. Em segundos um novo contato foi feito. Nova negação. Nova tentativa. A sua média de Aceites Prévios era de um em trinta e sete, o que significava que a cada trinta e um minutos ela embarcava em um diálogo mais prolongado com um cliente interessado. Enquanto isso, ela fazia as Propostas Introdutórias Padrão de modo quase automático. Sempre a mesma fala curta e neutra. As Regras não permitiam métodos mais coercivos.

Deixando as tarefas sendo executadas por uma parte do seu cérebro, de modo semelhante ao do computador em sua frente, sobrava espaço para a mente divagar dentro do seu pequeno cubículo no Salão de Comunicações com o Cliente.

Estava chegando perto. Faltava exatamente dois anos para a sua Checagem Periódica de Longevidade. Era um momento delicado na vida de qualquer um. Em particular, a checagem dos quarenta. Era quando começava a surgir uma maior taxa de Certidões de Longevidade Definitivas. Ao vinte e aos trinta, ainda era raro ocorrer, pois a maioria das inviabilidades eram detectadas muito antes disso, e as estimativas de longo prazo eram imprecisas demais para serem levadas a sério.

Mas, com a chegada do momento, até as imprecisões começavam a assustar. Ela, em particular, tinha recebido uma predição de 14% de chances de inviabilidade antes dos cinquenta anos. Um em sete não era uma chance tão preocupante, mas ela tinha apenas dois anos antes da nova checagem. Quem sabe não seria daí que receberia sua declaração de que, em um certo período de anos, ela possuía uma chance maior que 95% de se tornar mais dispendiosa do que funcional para a Sociedade.

Normalmente, isso não preocuparia a ninguém. Colegas e parentes falariam que dois anos não era um tempo curto, ainda mais que dificilmente a Certidão de Longevidade Definitiva lhe daria menos que cinco anos. E sempre era possível recorrer, embora fosse necessário um argumento incomum para tanto. Nada que sua leve Tendência à Depressão e Risco de Doença Intrínseca justificasse.

Mas, para Valquíria, um profundo incômodo a fazia se sentir de outra forma. Algo para o qual dois, ou mesmo dez anos, era muito pouco.

- Sim, eu estou interessada em Quadros Eletrônicos de Partículas.

Sua mente viajante rapidamente voltou ao cubículo e se concentrou no Aceite Prévio.

- Sim, senhora. Os nossos quadros de elétrons possuem quinhentas opções de padrão regular e caótico, além de sessenta mil opções de cores. Há dez opções de dimensões. Gostaria de checá-las?

- Sim.

A atendente enviou os arquivos para a possível cliente, dando-lhe seu Tempo Limite de oito minutos para escolher. Como a cliente não se decidiu, ela desligou e voltou às tentativas. E às divagações.

As mesmas tendências que tinham colocado sua longevidade em xeque tinham desqualificado-a para a reprodução. Segundo as Regras, mesmo o seu direito individual de um filho (que ela pretendia alocar com seu Companheiro Estável atual) era negado. Sim, ela sabia que era melhor para a Sociedade que a sua vaga fosse alocada para uma mulher com uma Constituição Ontogenética mais favorável. Mas alguma coisa sobre isso a deixava incomodada. Sensação que crescia quando Francisco interagia com seu filho já nascido, alocado com uma Companheira Ocasional.

Os minutos se passavam e os pensamentos continuavam a revolver em sua mente, indo e voltando de temas mais banais àqueles que mais a incomodavam. Não era possível escapar deles. Se ela tivesse efetivamente apenas mais sete anos, não adiantaria, de qualquer modo, ter um filho. Porém, as mesmas regras que negavam a sua reprodução eram as que ditavam sua longevidade. Afinal, eram as Regras. E, todos sabiam, sem Regras, não havia Sociedade. Só o Mundo Paralelo e seus caóticos perigos, e quem desejaria...

Foi subitamente interrompida pelo Alerta de Produtividade. Ela estava há quarenta e seis minutos e meio sem um Aceite Prévio. Olhou rapidamente os indicativos do computador, buscando a causa. Ela estava modulando de modo errado a voz e falando excessivamente rápido. Pensar sobre aquele assunto estava claramente desestabilizando-a. Tentou se focar novamente, mas após dez tentativas o Alerta soou de novo. Não tinha dúvidas: ela estava ficando irritada de um modo não-usual, e cada vez mais, conforme o Alerta lhe avisava. Na tentativa seguinte, foi a gota d'água: o Alerta soou imediatamente e em um nível mais alto, quando ela soltou um pequeno suspiro durante sua Proposta Introdutória. Aquilo foi o bastante. Ela arrancou os fones e saiu apressada do cubículo, sem ligar para o Alerta que se colocava em nível máximo.

Passou pelos corredores escuros de portas fechadas, dirigindo-se para o Terminal de Transporte. Estava vazio e sem guichês ocupados, como o esperado, pois não era o fim do Horário de Expediente. Então não havia nenhum Veículo Transportador disponível. Mas ela sabia, como poucos, que era possível abrir as portas mesmo nos outros horários. Bastava fazer algo próximo do inimaginável: esgueirar-se por um guichê e apertar o código que ela, de modo indulgente e quase despercebido, observava os funcionários inserirem no computador, durante as transações. Valquíria estava trêmula ao ativar o computador e inserir os caracteres. Desconectada de seu padrão mental usual, não racionalizava os seus atos. Apenas sabia que não queria ficar ali, e que em poucos minutos alguém estaria abordando-a para colocá-la sob controle.

A porta de um setor do Terminal se abriu e Valquíria escapou do guichê, correndo em sua direção. Porém, quando se encontrou diante da abertura, seu ímpeto vacilou.

Diante dela, não se encontrava o interior conhecido e confortável do Veículo Transportador. A porta se abria para uma intensa escuridão, na qual mal pode distinguir os contornos dos gigantescos edifícios que ladeavam a Corporação Harper. O próprio ar, frio e fedorento, atingia seu rosto como um soco. Olhando para cima, por paredes desprovidas de janelas, ela enxergava a luz do dia, a algumas centenas de metros, penetrando pelo estreito espaço que se abria entre os prédios. O fato dela não conseguir dizer a distância com exatidão a incomodou profundamente. Aquele era o Mundo Paralelo, desvinculado da Sociedade e das Regras, onde reinava a imprecisão, o caos e o desconhecido.

E ali ela estava, congelada na beira do abismo entre dois mundos. Como em nenhum outro momento, percebeu como era fina a separação que lhe protegia do perigo: nada mais que uma película metálica em forma de porta. Ao coquetel de neurotransmissores e hormônios que a embriagava, juntou-se uma nova carga de adrenalina, gerada por mais emoções raras. Surpresa. Medo. E excitação.

Quando o Guarda entrou no Terminal, atendendo a uma solicitação de Desvio de Conduta, a porta estava fechada, e o Mundo Paralelo novamente lacrado por detrás de seu metal opaco. Os guichês continuavam vazios. Assim como o grande Salão de Embarque. Deserto, como o esperado, para o Horário de Expediente.

5 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

meu, me veio uma cruza de Ghost in the Shell e Huxley na cabeça (o último, claro mais evidente). Surpreendeu o cenário, mais que a personagem. Não sei se isso é bom ou ruim. Vou dar um tempo pra decidir. Pegada bem próxima do seu outro conto sobre aquele interior de Europa futurista, não?

Félix disse...

A personagem aqui realmente não é o principal. Na verdade, montar a ambientação foi o mais fácil, fiquei mais com dificuldade de criar uma linha de história para fazer o conto ser mais que um cenário.

Foi interessante ver como o tema direcionou a criação do texto. O ponto de partida foi intepretar que o "não pode ter filhos" não precisava necessariamente singificar esterilidade. Daí pensei que poderia ser algo escolhido ou imposto. A idéia então surgiu de fazer um texto cômico no qual ela fosse uma atendente de telemarketing normal e, durante o atendimento, ficasse pensando no fato de estar com 38 anos e não ter filhos, se tinha sido a escolha certa, etc. e descontando nos clientes.

Logo surgiu a vontade de fazer uma ambientação diferenciada para fugir do esperado, e surgiu essa ligação do "telemarketing" com a idéia de corporações, algo bem comum em cenários cyberpunk (mezzo-futuristas estilo Blade Runner).

A idade de 38 anos foi um guia fácil para a idéia da checagem de longevidade. E a partir daí a ambientação tomou rumo próprio.

Esse texto é um primer para uma história maior, eu espero. Não daria para desenvolver ela toda agora, mas a Sociedade e o Mundo Paralelo prometem muitas possibilidades de desenvolvimento.

Sobre a pegada semelhante com o texto do futuro, faz sentido a comparação. Ambos tentavam mostrar um mundo funcionando por outros padrões morais. O presente texto estaria em um estágio de desvinculamento maior que o primeiro. Por outro lado, a personagem aqui é mais próxima dos "nossos" conceitos que a outra. Possivelmente porque, neste caso, o conceito que eu valirizo pessoalmente (a liberdade) é diferente do da ambientação. Teria que botar um pouco mais de esforço para tirar o máximo possível de Whiggismo da história.

Whiggismo = intepretar coisas de uma época distinta sob o ponto de vista atual.

Fábio Ricardo disse...

FANTÁSTICO! o universo futurista foi criado de um jeito formidável, nao devendo nada a huxley.
Só me questionei sobre as necessidades de um atendente de telemkt num futuro tão distante quanto esse.
me causou um certo desconforto nao conseguir precisar exatamente quanto tempo se passou até esse mundo.

Marina Melz disse...

Bã. Foda isso aqui, não? Gostei bastante. Caracteristico Félixiano mesmo com um tema um pouco mais quadrado. Curti bastante.

Thiago Floriano disse...

curti a narrativa... lembrou, realmente o conto futurista de temas atrás... o que não é ruim porque demonstra estilo próprio. Bueno!