terça-feira, 21 de julho de 2009

Silêncio

— Silêncio!

Acordou sobressaltado no escuro. Os olhos baços à meia luz, ouvindo murmúrios baixos. Esfregou com os dedos os olhos que arderam salgados e divisou as duas loiras juntas, lado a lado, nas poltronas vermelhas na escura platéia quase vazia.

— No. Hay. Banda!

O homem no palco declamava pausado e com potência. Um poderoso staccato à capela, num sotaque castelhano.

— There is no band.

Com os olhos, se acostumando a pouca luz e a mente à vigília, pôde melhor divisar as mulheres nas poltronas escuras.

— And yet, we hear a band — Continuou o apresentador sob acordes gravados.

E tudo escureceu numa tela preta e num chiado eletrônico que cessou baixinho. Silêncio. Já vira o filme por vezes sem conta. E sempre acabava por vê-lo de novo. Tentava sempre revê-lo, na esperança de outro final. De uma guinada na história. De um personagem que pudesse surgir e valer-lhe, de fato a audiência. Mas o filme sempre insistia em passar de novo. No hay banda. E de novo estava ele em Silêncio.

Levantou-se, derrubando a vasilha de plástico ao chão. Caminhou sobre os milhos em cima do tapete e abriu a janela da sala. O inverno entrou frio pelo apartamento. Lá fora, as ruas de luzes brancas, todas em silêncio. Por cima dos telhados pontiagudos, o inverno se estendia até o velho teatro. Viu as luzes, o movimento, as pessoas distantes. Mas tudo era silêncio. Subiu no beiral da janela, aguardou o vento frio e lançou-se na corrente, acompanhando o ar gelado por sobre os telhados germânicos. Sobrevoou a movimentação. Atores, músicos, poetas. Artistas. Quadro de esteta elaborada. No palco, um latino estendia a mão, ao que respondia um clarinete invisível. Estendeu o braço a outro lado.

Respondeu-lhe um trombone, também invisível. Do alto, com o público e os outros artistas em volta, num grande círculo, a cena lembrava um ritual pagão. Todos vestidos de peles dançando ao redor da fogueira. The bonfire of De Palma. O vento soprou frio de novo e ele se deixou levar. Enrodilhou-se numa nuvem úmida e adormeceu no silêncio de um sussurro linchiano.

Acordou sobre o sofá com dor nas costas e atrasado. Saiu apressado para o compromisso. A cidade ensolarada, o velho teatro. Tomou o lugar à mesa. O discurso manso seguiu até que levantasse a cabeça para o público. Lá atrás, na última fila da platéia, um casal idoso o olhava com olhos famintos. Engoliu em seco, o ar frio. Um clarim fez-se soar distante. Mas não havia banda.

5 comentários:

Luzia disse...

Silêncio...

viegas disse...

é isso, este ar frio, esta banda que não está. neste nosso inverno, este ano, o frio é incomensurável. falta a banda... falta a banda!

Não sei se posso votar, mas se posso, voto neste do Rodrigo!
Abraços,
Viegas

Fábio Ricardo disse...

claro que pode votar, viegas. Mas o faça no tópico de votação. Apenas lá, os votos são válidos.

Félix disse...

Qual o significado do "banda" na história? Ele acordou, viu a cena noturna do festival, dormiu e depois foi para a mesa redonda do Duelo, o que mais temos aí? É a segunda vez que leio um texto do Rodrigo e me sinto meio burro... Não saquei de novo a lógica por trás do texto (não a lógica do texto, que pode ser intepretado pelo que está ali exposto, mas pelo que o autor quis expressar por detrás da escrita). Foi um texto meio linchiano também, e eu gosto de Lynch, mas sei que muita coisa dos seus filmes não faz sentido também.

E eu sou cientista, sempre procuro sentido! ;)

ps: não era uma loira e uma morena?

m.r.mello disse...

acho que algumas coisas também me escapam, aqui. por outro lado, se vc explora essa metalinguagem onírica do david lynch, estranho seria encontrarmos razão pra tudo. no cinema, diriam que a tua história é um "anti-plot", anti-padrão, que é o caso do mulholland drive. gostei do conto e gosto do tema da irrealidade do cotidiano abordado assim dessa forma, disforme.