sábado, 31 de maio de 2008

Tema

Pra me redimir com os duelistas-canhotos-malignos e com os nossos possíveis leitores canhotos (malignos ou não), o tema da próxima rodada é "Mão Esquerda". Os textos, como de praxe, devem ser postados até o dia 06/06/2008.

Eu ia escrever "mãos à obra", mas piada pronta não vale.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Votação: Reflexo

Está aberta a votação para o tema Reflexo.

Deixe seu comentário e participe. Os votos do público podem decidir mais esta rodada.

Os votos serão contabilizados até o dia 30 de Maio.

Mudanças

É engraçado ver como eu mudei desde que você apareceu. Uma mudança sutil, de hábitos, de vontades. Você fez com que eu emagrecesse, amadurecesse e me tornasse uma pessoa um pouco mais cética. Você fez com que eu passasse a encarar as notas do violão como música, realmente. É angustiante saber que mesmo sem você aqui, a melodia continua me fazendo pulsar como há tempos.

É engraçado ver como você mudou desde que eu apareci. Você se tornou um pouco mais audacioso, passou a acreditar em muitas das minhas certezas, se tornou independente. É angustiante ver em você o reflexo de um pouco do que eu fui, com as minhas manias, as minhas caretas e as minhas gírias.

É engraçado e extremamente angustiante ver em você um tipo de espelho, um espelho de alguém que eu sei que não existe mais.

(15/05/2008)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Lados

A imagem refletida mostra apenas uma parte do ser. A parte aparentemente mais completa e mais constante. Uma pequena parte que tenta se manter firme, esbelta, pura e agradável. O outro lado não se reflete em imagem. O outro lado se esconde sob a máscara fria e neutra da imagem. É um lado obscuro e instável, quase inatingível aos olhos alheios. Mais ou menos como a lua, que mostra uma face e esconde a outra. É o ser. O ser que tem um lado refletido no espelho e outro oculto em seu próprio receio. Vez ou outra, os dois lados entram em conflito. O externo se altera em discordância com o interno aflito. De acordo com a intensidade da guerra, um pode tomar a forma em semelhança ao outro. E isso não é raro. O fato é que o lado imagem se reflete no espelho, mas também reflete no lado que é outro e não tem espelho que possa externar.

Sósias

Eu moro com um cara que é minha cara. Ele é igualzinho a mim, e isso é estranho, chega a ser assustador. É claro que temos nossas diferenças, a maioria delas bem visíveis. Mas temos o mesmo cabelo, a mesma barba, o mesmo tipo físico e a mesma forma de andar.

Mesmo assim, cada vez que o vejo de frente, nossas diferenças saltam mais aos meus olhos. O cabelo dele nunca está bem penteado, se revolta facilmente e não pára no lugar. A barba comprida, ao invés de ser um charme, não passa de desleixo. Dá pra ver que ele não faz a barba por preguiça mesmo.

Desde sempre foi assim. Somos quase iguais, mas as pessoas ao lado dele não combinavam tanto com ele quanto as ao meu lado. Ele tinha um ar de inutilidade, de vadiagem mesmo, que sempre mostrou como a gente é diferente um do outro.

Às vezes as pessoas nos confundem um com o outro. Diversas vezes me vi sendo julgado por alguém que olhava pra mim, mas na realidade enxergava ele. É ele que nunca está com a roupa combinando, é ele que tem os olhos cansados, que quase não se abrem. É ele tem o rosto marcado, que perde horas e horas todas as manhãs tentando ficar igual a mim.

E mesmo assim, ele ri da minha cara. Ri do meu desemprego, das minhas falhas. Ri da incerteza de um futuro, da minha pose de sabichão mesmo quando não tenho nada do que me orgulhar. Ele ri até do meu orgulho besta, dos bons trabalhos que eu faço, mas que quando eu olho estes trabalhos ao lado dele, vejo que são tolos e que não me trazem dinheiro algum.

Mesmo eu sendo o cara bonito, bem vestido e cheio de estilo, ele que é feio, desleixado e nerd, ri da minha cara. Ri cada vez que eu olho para ele. Ri cada vez que eu percebo que quem está ali sou eu mesmo. Refletido no espelho embaçado do banheiro, mostrando todos os defeitos que eu tento esconder de mim mesmo.

domingo, 25 de maio de 2008

Visão ancestral

25/05/08


O vento uiva forte entre os picos nevados da titânica cordilheira. Onde terras colidem e se moldam de acordo com forças implacáveis, abrem-se penhascos temerosos, erguem-se paredões ciclópicos e tapetes esbranquiçados derramam-se pelas fendas. Entre rochas tão antigas quanto o tempo, abre-se uma caverna, profunda garganta estendendo-se ao coração da gelada montanha. Lá, as paredes se recobrem com carapaças de gelo, e a gruta cintila ante os poucos raios de luz que se atrevem a perscrutar seus segredos. Quando a massa de terra se aproxima de seu pai celeste, poucos graus de diferença fazem a caverna transpirar, gotejando em ecos pelas galerias insondadas. Mas, em breve, novamente o sol mingua e a umidade cristaliza em dentes e espelhos, seguindo seu ciclo natural.

Aquilo que na caverna repousa, entretanto, dificilmente seria considerado algo natural. Em meio a uma penumbra quase viva, que ruge, uiva e assobia, permanece lá, parado, ante uma colossal muralha de gelo. Longe de qualquer coisa considerada viva, ou sensciente, sem estar próximo, ou distante, de qualquer entidade remotamente próxima. A própria montanha cora, em vergonha juvenil, ante o que abriga em seu interior. Um pária, deslocado por sua perenidade em um mundo de coisas efêmeras.

Sua atitude não é outra senão indiferença, fitando em estase a imagem refletida no gelo. O único lampejo de familiaridade onde tudo o mais lhe é estranho, caminhos distintos de uma evolução cega em um universo insano. Não que aquela imagem fosse causar indiferença em qualquer olhar que nela pousasse. A mais perturbadora das visões é aquela que fala de eras estranhas e paisagens incognoscíveis, éons e distâncias avassaladoras para entes de mente estreita e curta existência. Confrontados com uma abominação de eras esquecidas, tudo o que lhes parece sólido, concreto, certo, é destroçado em cacos de incompreensão e desespero, pois têm consciência de sua ignorância e mediocridade ante dimensões muito além de sua pobre imaginação. Para esses, nada mais pode ser extraído daquele reflexo que medo, horror e loucura. O seu dono, porém, tem ali sua única companhia, onde permanece em silencioso devaneio, entre vagas memórias de um tempo além do tempo. E, quando o gelo vira água e o espelho se torna rocha, ele permanece no mesmo estado, solitário, apenas esperando o que lhe são instantes, fugazes segundos antes da parede congelar de novo.

Aqueles poucos que nas montanhas vivem da caverna não ousam se aproximar. Seja considerada divina ou amaldiçoada, por ali acham melhor não passar. Dizem que, assim como mortos deuses esperam sonhando nas profundezas do oceano, também nas alturas do mundo se escondem coisas que é melhor não descobrir, vindas de lugares e épocas ignotas, e cuja simples menção em tomos ancestrais causa arrepios e pesadelos nos mais sensíveis. E mais de um sábio transtornado já se aventurou nos cumes em busca de conhecimento proibido, apenas para pelas montanhas (ou outra coisa, sussurram) ser devorado.

Alheio a tudo isso, ele permanece na caverna. Sua paciência é infinita, pois mais de uma estrela já morreu sob seu olhar. Espera os astros dançarem e certas forças do universo se ajustarem, para, quem sabe, retomar aquilo que já teve e ser aquilo que já foi. Muito mais do que uma imagem distorcida fracamente refletida em uma parede de gelo. Uma aberração grotesca despida de glórias passadas, enclausurada nos confins extremos de um mundo que não é seu.

sábado, 24 de maio de 2008

O outro lado do espelho

Quando entrei no quarto ele estava em frente ao espelho, perscrutando a imagem refletida. Levantava uma mão e acena para si mesmo, mais estudando os movimentos do que propriamente se cumprimentando. Dei uns minutos até me fazer perceber.

— Bom dia, Seu Antônio.

—‘Dia, doutor.

— Tudo bem?

— Tudo. O doutor já percebeu uma coisa? Olha só.

Deixei a prancheta sobre a cama e me aproximei do paciente, preenchendo o restante do espelho com o meu reflexo. Ele acenou para as imagens novamente.

— Viu? Ele é canhoto. Eu sou destro mas o meu reflexo é canhoto.

— Ele não é canhoto, Seu Antônio. É só um reflexo.

— Não. Eles são todos canhotos.

A ênfase no todos, demorando para terminar a palavra, já prenunciava que eu teria mais um consulta daquelas.

— Eles? — Tive que perguntar.

— Os reflexos! E eles já estão entre nós, misturados com a gente e a gente nem percebe.

— Os reflexos? Do espelho?

— Eles já não estão só no espelho. Veja! Nós somos todos destros. Os reflexos é que são todos canhotos. Mas eles estão vindo para o nosso lado, tomando o lugar. Eles estão planejando uma invasão!

— Os reflexos ou os canhotos? — Perguntei já ficando meio preocupado.

— Todos os canhotos são reflexos! Eles descobriram um jeito passar para o nosso lado e daí nos aprisionam do outro lado. Eles estão trocando de lugar. Enquanto as pessoas de verdade ficam presas no outro lado do espelho, os reflexos estão aqui. Entre nós. Se preparando para dominar a gente! Os reflexos estão entre nós!

Ele já estava ficando agitado demais, então tive a desculpa para aplicar-lhe uma injeção calmante. Para ajudá-lo a descansar, afirmei. Preparei uma seringa cheia e apliquei-lhe sobre alguns queixumes. Quando apliquei a segunda, ele estranhou o aumento da dosagem. Mas afirmei que era só porque ele estava muito agitado e precisava dormir. Só na terceira dosagem ele percebeu que o êmbolo descia sob a pressão do meu polegar esquerdo.

Ele sabia demais.

Afastou-se assustado, cambaleando com pernas frouxas, já apresentando os efeitos da droga. Olhos esbugalhados, correu até o espelho, mirando-se uma última vez. Lá dentro viu a minha imagem, por sobre seu ombro, despedindo-se com um aceno da mão direita.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Tema: Reflexo

E o tema da próxima rodada é REFLEXO.

Não quero limitar, de forma alguma, os significados da palavra.
Então, mãos à obra!!

Abraço aos duelistas e leitores.

sábado, 17 de maio de 2008

Votação: Conto Extreterrestre

Está aberta a votação para os contos extraterrestres.

Os votos serão contabilizados até o dia 20 de Maio, quando conheceremos o vencedor.

Vote. Se voto pode decidir a rodada.

O mundo da Lua

A roupagem era a adequada, as condições de velocidade e pressão, também. Apesar da imensa concentração exigida naquele momento, deu-se três segundos para saborear a sensação que estará vivendo. Quando tinha lá seus 12 anos, seu pai vivia dizendo que ele viveria no mundo na Lua. Agora, ele estava a caminho e não sabia quando poderia voltar. Lembrava-se de como imaginava o tal mundo. Ele sentaria nas estrelas cadentes para se locomover, olharia todos os dias para a esfera terrestre, talvez pudesse sentar numa cratera e escrever alguns dos seus versos. Sempre imaginou que lá as coisas fluíssem de uma forma um pouco mais natural e agora via-se ali, cheio de roupas especiais, equipamentos especiais e com uma cara de naturalidade plastificada que nem ele mesmo poderia acreditar. Ele e o astronauta que o fazia companhia estavam colocando o ônibus na estação espacial e ele precisava se concentrar novamente. Sabia que não iria andar nas estrelas cadentes e que não poderia sentar numa cratera e escrever. Mas, ele viveria no mundo da Lua, de verdade. Mesmo que as verdades da sua imaginação quando criança pouco se parecessem com a vivida ao estar chegando lá.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Diáspora

Escrever um conto que não se passe na Terra... Só podia ser coisa dele mesmo. Deve ter feito de propósito. Tá certo, tudo bem, todos os meus contos têm mesmo se passado na Terra. Podia mesmo dar uma variada.

Mas em que outro lugar eu teria um céu tão azul, que perto do fim da tarde cora de vergonha das estrelas. Esse nosso céu não tem essa humildade. É sempre escuro e taciturno, constante e imutável mesmo frente à luz das estrelas. E em que outro lugar, senão na Terra, o vento sopra daquele jeito. Aqui não há vento. Só o ar estático, reciclado, regurgitado por uma abertura de metal.

Se escrevo sempre contos que se passam na Terra, é porque lá todos os contos ficam mais interessantes, mais vivos, mais coloridos. E desde que estamos aqui, tudo é tão cinza... Então, se de dentro de um cubículo de metal, encerrado no meio do nada, cercado sempre pelas mesmas e poucas pessoas eu puder voltar e rever, mesmo que nas letras, aquela paisagem e aquelas pessoas, que seja assim.

Mas ele tem razão. Deve mesmo ser bom dar uma variada. Afinal são as regras do jogo. Além do mais tenho que começar logo esse texto pra apresentar na próxima rodada. Já to atrasado. Mas ainda assim prefiro os contos na Terra. É uma pena o que fizemos com ela.

Enfim, há um conto a se fazer. Mãos à obra.

Trote

Abri a porta de casa e saí pela rua. Era a primeira vez que mamãe me deixava sair pra brincar desde a nossa mudança pra cá. Eu ainda não conhecia ninguém, mas facilmente faria amizades, afinal, crianças se aproximam com muito mais facilidade que os adultos.

Viro a primeira esquina. Fora a luminosidade, parece um quarteirão qualquer do bairo em que morávamos. Encontrei dois meninos correndo em minha direção. Eles corriam de um jeito todo estranho e eu ainda não tinha me acostumado com aquelas roupas que usávamos. Me dava vontade de rir. Quando chegaram perto de mim, pararam e perguntaram em uníssono.

- De onde você é?

- De São Paulo - respondi prontamente.

- Vem com a gente.

O sotaque me fez imaginar que eram cariocas, mas não tinha certeza. Corremos daquele jeito esquisito até uma quadra poliesportiva.

- Vamos jogar basquete. Concurso de enterradas. O que você acha? - perguntava o mais extrovertido.

- Eu não alcanço a tabela.

Desanimei. [...] Um deles pegou a bola, encostou contra o peito, passou por entre as pernas e saltou. Nunca tinha visto um salto daqueles. E que enterrada! Principalmente para uma criança com não mais do que 10 anos.

- Sua vez! - Apontaram pra mim, já passano a bola.

- Não consigo pular assim.

- Tenta. Vamos ver até onde você vai. Pula com toda a força.

Me sentindo intimidado, aceitei o desafio. Peguei a bola, apertei-a com firmeza e me lancei ao ar. A cesta estava na altura oficial, assim como todas as dimensões da quadra, exceto pelo teto meio baixo. Foi exatamente nesse teto baixo que tiveram que me buscar minutos depois. Minha cabeça ficou presa entre as telhas que eu acabara de quebrar, mas aprendi na prática a diferença da gravidade entre a Terra e minha nova morada.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Segunda Vida

Fábio Ricardo – 15/5/08

Fabíola Willow atraía todos os olhares por onde passava. Linda, não andava, desfilava. Chamá-la de linda, porém, não seria compatível com sua verdadeira beleza. Fabíola Willow era maravilhosa, estupenda, uma divindade.

Suas curvas perfeitas foram desenhadas cuidadosamente por um artista, seus longos cabelos louros balançavam ao vento, tão lisos quanto nenhuma chapinha poderia criar. Os pés, num salto alto absurdo, eram pequenos e delicados, que não pareciam conseguir sustentar todo o seu 1,78m de altura. Mesmo assim, ela desfilava, deslumbrante, pelas avenidas, atraindo olhares, piscadelas, sorrisos e cantadas. Não havia sequer uma pessoa que não torcesse o pescoço quando Fabíola Willow passava. Os homens, para admirar seus mais diversos ângulos, as mulheres, para destilarem seu veneno sobre a artificialidade de sua forma física.

Seu perfil denunciava: Fabíola fugira de casa aos 16 anos, e a única forma que encontrou para se sustentar foi como dançarina de cabaré. Ela gostava de dizer “dançarina de cabaré”, mesmo todos sabendo o verdadeiro significado de sua prostituição. Mas a realidade é que a beleza de Fabíola não surgiu com o passar dos anos, acentuando suas formas femininas ao final da infância. A beleza de Fabíola era toda artificial, implantada.

O quadril foi desenhado meticulosamente, sem nenhum defeito, assim como os seios avantajados, apontados para os céus. A pintinha que trazia ao lado da boca também era artificial. Foi colocada ali justamente para dar um charme a mais, modificar o rosto perfeito e torná-la mais humana. Tudo para ajudar Fabíola na diversão de conquistar e dominar os homens.

Ela entrava em suas mentes, dominava por completo seus instintos e os fazia urrar de prazer, enquanto tremiam em suas salas de luzes apagadas. Ao final do encontro amoroso, ela deixava um beijo no espelho do banheiro e sumia com suas carteiras e senhas de banco.

Não que Fabíola precisasse disso para viver ou se sustentar. Fabíola era Miss South America, ganhava rios de dinheiro para vestir marcas famosas ou comparecer em inaugurações de lojas e coquetéis. Ela disputava o Miss World com outras cinco concorrentes e era sem dúvidas a mais bela de todas.

Mas enquanto passeava calmamente pelas calçadas de sua ilha favorita, nos dias de sol seguidos, sempre perfeitos e sem nuvens no céu, Fabíola tinha que sustentar a razão de sua existência. Seu cafetão, seu dono, seu mestre. Por onde Fabíola ia, rebolando ao som de uma música que só ela ouvia, Rafael ia atrás. Todo homem que Fabíola conhecia em seus passeios noturnos, Rafael anotava seus nomes, telefones e IPs.

Todo momento de intimidade que ela dividia com suas vítimas era monitorado de perto pelo rapaz de pele clara, cabelos ruivos, barriga sobressalente e óculo de aro. Rafael a acompanhava por onde quer que fosse. Escrevia seus discursos e decidia por ela qual a melhor resposta para a ocasião. Era ele que escolhia suas roupas, o seu penteado, o tom de seu bronzeado e até mesmo o tamanho de seus seios.

Era ele que invadia as contas bancárias reais dos relacionamentos virtuais que sua Fabíola Willow mantinha. Era ele que transformava noites de prazer em dinheiro para novas placas aceleradoras e monitores de LCD. Era ele que ria às custas dos solitários virtuais, e que passeava pelas praias mais cobiçadas do mundo, com um biquíni minúsculo, atraindo olhares e desejos, da cadeira envelhecida do seu quarto, enquanto sua mãe dormia a poucos metros dali.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Relatividade

13/05/08
De um momento para outro, um ponto brilhante se tornou visível no solo do planeta desolado. Com o passar das rotações, foi se tornando mais forte, e em um dado momento passou a acompanhá-las, progressivamente se aproximando do planeta. Finalmente, sua órbita o deixou próximo o bastante para uma mudança inesperada de rumo. Uma parte se destacou e perdeu-se no espaço, enquanto a outra se dirigiu velozmente à superfície. Sem clarões ou estardalhaço, pois a atmosfera era rarefeita demais para opor alguma resistência ao objeto. Sua velocidade foi diminuindo e a trajetória sendo ajustada por curtos jatos de matéria, expelidos por pontos estratégicos em sua estrutura. Por fim, com um impacto considerável, tocou as rochas inertes e parou.

O objeto se assemelhava a um grande cilindro metálico, com diversas suturas e orifícios por toda sua superfície. Permaneceu inativo por alguns instantes, antes de ser tomado por frenética agitação. Um painel se estendeu do interior, captando a pouca luz que recebia da estrela próxima. As suturas se abriram, revelando uma profusão de instrumentos, incluindo uma longa haste voltada para o céu. Embora o conjunto parecesse extremamente frágil em meio à vastidão, mal se mexia. Ali não havia ventos para pressionar e torcer estruturas delicadas.

Imediatamente, uma enxurrada de informações começou a se deslocar dos sensores para a célula de armazenamento. O planeta carecia de atmosfera densa, envolvido apenas por uma leve aragem de hélio e outros gases leves. Uma perfuratriz penetrou no solo, descobrindo grande riqueza de sílica, ferro e chumbo, com baixos teores de carbono, nitrogênio e oxigênio. Uma grande lente transparente registrou a paisagem, monótona e desprovida de acidentes. Nenhum despenhadeiro, cordilheira ou vale, apenas grandiosas e ocasionais crateras, cicatrizes de antigos golpes astronômicos. Combinada com a ausência de intempéries, a crosta plana indicava baixíssima atividade geológica no interior. Os dados se acumularam na célula e, num momento posterior, quando a rotação deixou a antena alinhada para um determinado setor no céu, jorraram rumo ao vácuo, para uma longa e fria jornada.

O tempo passou. Nenhuma mudança foi percebida, fora as variações esperadas pelo girar do planeta em torno de si mesmo e da sua estrela-mãe. Num ponto extremamente distante dali, há anos no futuro, o planeta foi considerado morto, e as informações provenientes da sonda se tornaram apenas mais uma entrada num banco de dados, processadas por um sistema automático. Ela seguiu seu trabalho, impassível, por mais algumas dezenas de translações, antes de um pequeno dispositivo cessar seu funcionamento e o painel deixar de captar energia. Afora uma pequena luz vermelha que se apagou em um instrumento, o objeto permaneceu o mesmo, enquanto o planeta seguia seu moroso caminho em torno da estrela. Dezenas de vezes. Milhares. Milhões.

* * *

Uma suava mudança ocorreu no arranjo de cristais de um veio mineral.

- Ei, Drark, percebeu alguma coisa?

- Não, Zetsz, o que foi?

- Nada, só uma coceira na cabeça.

- Que estranho. Ainda está aí?

- Não, durou só alguns instantes.

- Então relaxa. Não há de ser nada.

- Será que alguma coisa caiu em cima de cim?

- Cair? De cima? Você está delirando, Zet.

- Não, eu poderia jurar que sim. Vou ali dar uma verificada.

- Que perda de tempo... Mas tudo bem, eu te espero.

Zetsz deparou-se com o bizarro objeto metálico, diferente de tudo o que já havia percebido. Intrigado, resolveu investigar mais a fundo. Porém, durante sua pesquisa, percebeu que a energia vinda da estrela começou a crescer, a uma velocidade realmente alta. Alarmado, resolveu abandonar a curiosidade e ir avisar Drark. Antes de conseguir chegar, a estrela explodiu e se tornou supernova, engolindo o planeta. E a sonda. E Zetsz.

domingo, 11 de maio de 2008

Tema da rodada

Bem, amiguinhos, a proposta para esta rodada é a seguinte: escrever um conto que não seja ambientado no planeta Terra.

Textos postados até 16/05.

Boa sorte a todos nós!

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Votação

Segue a votação até o dia 10/05.

Lembramos a todos os visitantes que qualquer um pode votar. Basta deixar seu comentário bem aqui, no tópico de votação.

Quarto 902

Thiago Floriano
06/maio/2008

Entro no quarto escuro e não encontro o interruptor da luz. Em poucos segundos, não encontro nem a porta. Repentinamente, um ponto cintilante aparece, ao longe. Não recordo de meu quarto ser tão grande. Caminho lentamente, receoso, até encontrar um letreiro. Novecentos e dois! Não é o número do meu quarto. O que estou fazendo aqui?

E lá estou eu, parado em frente ao 902, sem enxergar nada além do letreiro. Sem sequer imaginar como vim parar aqui. Subitamente, uma luz azulada começa a projetar minha sombra em uma porta de ferro, que agora consigo visualizar. Ainda confuso, coloco a mão sobre a maçaneta, onde ela repousa por longos minutos, até que eu crie coragem para abrir. Não é uma grande surpresa olhar para fora e encontrar apenas uma pequena sacada, nove andares acima do solo.

Da mesma forma, eu sei que não pode ser real. Sinto que estou em um quarto fechado. Consigo ouvir nitidamente meus próprios batimentos cardíacos, como se fosse uma música que tocasse de fundo. Quando olho para trás, mais uma porta deixa de existir. Em seu lugar, uma escada circular praticamente me chama a um desafio.

Sem imaginar para onde estava indo, começo a subir aqueles pequenos degraus, enquanto eles mudam de forma, cor e tamanho. Subo, sem parar, até que minhas pernas fiquem bambas. Ouço ruídos. Estou cansado. A respiração é ofegante e os batimentos cardíacos acelerados.

Não consigo ouvir, mas, lá fora, várias pessoas gritam: - Parada no 902. E já não ouço mais nada. Nem as batidas de meu coração, que agora está parado.

terça-feira, 6 de maio de 2008

A tempestade

O céu derramava suas lágrimas copiosamente durante toda a noite. A enxurrada lavava o mundo dos homens, entupindo seus esgotos artificiais e soterrando alguns infelizes numa silenciosa tumba de lama. Nuvens rugiam do lado de fora da janela, com a fúria digna dos ancestrais deuses das tempestades. Zeus, Baal, Thor e Asmodeu faziam da Terra o alvo de sua ira, cada relâmpago chacoalhando a alma de todos os mortais com a certeza de sua insignificância.

No quarto escuro, eu era um destes. Empilhado sobre oito andares de indiferença e mediocridade. Um ponto diminuto em meio à vastidão do universo, mas esmagado por uma angústia opressora capaz de fazer até os demônios se apiedarem. Ao menos assim me parecia. Um pálido espectro de racionalidade ainda sussurrava que tal tormenta não passava de um evento ridículo no espaço e no tempo. Tão importante para quem sente, tão indiferente para o restante. Relatividade, nada mais. Um cataclismo para um, um erguer de sobrancelhas, quando muito, para outro.

A solidão e o silêncio, afora o brado dos trovões, são um convite à perdição. Sem ter com quem falar, sem ter a quem abraçar, a mente volta-se para si mesma. Traz à tona lembranças que eram para estar enterradas. Remexe em pensamentos que não deveriam ser provocados. Aventura-se perigosamente à beira do precipício, no qual a sanidade não passa de uma fina corda bamba onde o acrobata ébrio da consciência pende sobre o abismo da loucura.

"Por que maldições estás aqui, pobre diabo???". Esta era a questão com o qual minha mente me confrontava. Por que, eu pensava e pensava, por quê? Longe da minha terra, enclausurado em uma megalópole de concreto, horrenda e impiedosa para com seus incautos habitantes. Longe dos terrenos familiares e paisagens paradisíacas, cuja memória agora me parecia apenas um sonho, perfeito, fugaz e inatingível. E, acima de tudo, as pessoas... Deuses, onde estavam aqueles que me amavam? Onde estavam aqueles que sorriam e me faziam sorrir? Onde estavam aqueles que, num momento desses, poderiam me envolver com os braços e deixar fluir meu pranto engasgado? E depois tomar minha mão e me apoiar, enquanto eu conseguia me reerguer? O que fazia eu longe de tudo, rumando para um futuro que me parecia tão cinzento, insípido, sem sentido? Afogado em ilusões de grandeza, realizações memoráveis e abstrações universais, quando tudo o que eu mais queria era a mais simples das coisas. Calor. Segurança. Carinho. Amor.

No canto do quarto, o computador emitiu um som, quase ocultado pela explosão de um raio próximo. Morosamente, como um zumbi, estendi a mão para o teclado. A tela negra se iluminou, e juntamente o aviso de uma mensagem recebida.

"Oi. Hoje pensei em ti. Só queria que soubesses. Te amo."

Curta.

Brega.

Singela.

Mas suficiente.

Foi como se a tempestade subitamente silenciasse e o céu se abrisse, deixando o radiante sol derreter a capa de gelo estendida sobre a terra. Um tímido fogo se acendeu no interior da minha alma congelada, e uma leve turbidez invadiu minha visão. Mas não era de tristeza. Não desta vez. Minha mente se clareava, e larguei o frasco sobre a mesa. Sim, eu tinha um objetivo maior. O presente era apenas um passo a ser dado numa longa estrada onde, no final, estaria minha felicidade. E eu iria ao encontro dela. E, principalmente, dela. Com lágrimas nos olhos e uma deusa em meu coração, pude abrir a janela para enfrentar a tempestade. E sorrir.

902

O hotel ficou fechado por três dias em luto pela morte do pai do proprietário. Às quinze para às seis da manhã Pedro chegou para trabalhar. Sabia que Seu Marcos não viria, estava acompanhando o inventário do pai. Pedro foi ao lobby e viu pela primeira vez o hotel vazio e desocupado. Na parede atrás do balcão o painel com todas as chaves penduradas, do 101 ao 1209. Um espaço no meio daquela parede de chaves chamou a atenção: 902. A única chave faltando. Procurou no balcão e nas gavetas, mas a chave não estava ali. Alguém esqueceu de colocar a chave de volta. Com certeza não havia hóspedes no hotel e só uns poucos funcionários. Mas nenhum deles ficaria com a chave. Depois de uns minutos organizando as coisas foi conferir se a chave não foi esquecida no quarto. Aos poucos o hotel voltava à vida com o vai e vem dos funcionários.

O número nove do botão do elevador se acendeu sob o indicador do funcionário. Um pequeno solavanco pôs o carro em movimento. Com um sinal sonoro o elevador parou de subir e as portas se abriram para o corredor estreito com papel de parede anos 70. O quarto 902 era o primeiro à esquerda. Porta fechada, aparentemente ninguém no andar. Testou em vão a maçaneta. Ninguém da limpeza estava com a chave. Procurou no bolso e lembrou que não trouxe a chave reserva. Retomou o elevador e desceu os nove andares. O botão T se apagou quando atingiu o térreo. As portas se abriram revelando uma fraca luz da manhã que começava a clarear o lobby. Foi à saleta onde ficavam as chaves reservas. Uma dúzia estava faltando, provavelmente com o pessoal da limpeza. Inclusive a do 902. Mas lá, ele sabia, não havia ninguém limpando.

Cogitou se algum dos hóspedes teria levado a chave por engano. Era improvável, mas não custava tentar. Buscou no sistema a relação de locações da última semana. Nenhum hóspede havia ficado no 902. Procurou nas semanas anteriores. Nada. Puxou pelo sistema todo o histórico. Em branco. O quarto 902 nunca recebeu hóspede algum.

O elevador pareceu lento para galgar novamente os nove andares. A chave-mestra balançava nervosa por entre os dedos. O elevador se abriu e ele lembrou daquela cena do O Iluminado e o rio de sangue. Livro do cacete, me deixou uma noite inteira sem dormir. Foi até a porta do 902. Redrum. Porra, que isso agora vai ficar na cabeça. Girou a chave e ouviu o mecanismo destravar. Girou a maçaneta, respirou fundo Overlook my ass e abriu a porta já imaginando um baile de máscaras. No lugar do quarto um corredor estreito com o mesmo papel de parede ultrapassado e, no fim, um elevador. Sem entender muito percorreu o caminho perpeplexo, ouvindo a porta se fechar atrás de si. Não quis olhar para trás. Seguiu até o elevador.

O T acendeu novamente e o elevador desceu. Mal tirou o dedo do botão já tinha chegado ao térreo. Desceu os nove andares como se fosse um ou dois. As portas se afastaram e ele estava novamente no lobby, já bem movimentado por hóspedes e funcionários. Meio perdido foi ao balcão coçando a cabeça como tenta encontrar alguma idéia entre os cabelos. Congelou de repente. Pendurada junto às outras chaves lá estava ela. A chave do 902. Num impulso pegou a chave e saiu correndo para o elevador, sob olhares surpresos de alguns hóspedes. Apertou repetidas vezes o número 9 até a porta se abrir no andar desejado. Voou pelo corredor e quando colocou a chave na porta essa se abriu leve. Pedro se precipitou no quarto, assustando a camareira que arrumava os lençóis.

— Credo, Pedro, quer me matar do coração?

— Desculpa, Madalena — E saiu de volta ao elevador, ainda mais confuso.

De volta ao elevador cutucou o T como se quisesse castigar aquela luzinha pela sua confusão.

No balcão, não satisfeito, abriu a lista de hospedagem do 902. Vários nomes de vários hóspedes apareceram. Como em qualquer quarto. Mas uma linha em branco no sistema chamou a atenção. Nenhum registro de locação no quarto 209. Atônito, voltou ao elevador tentando parecer normal. Paulo segurava a porta para ele. A luz do 6º estava acesa. Pressionou a do 2º e a porta se fechou.

— Ficou sabendo, Pedro? O pai do Seu Marcos faleceu. Parece que ele vai fechar o hotel em luto por uns dias.

(não pareça assustado, não pareça assustado, não pareça assustado)

— Que cara de susto é essa Pedro!?

(merda)

— Nada não. É que eu não tava sabendo. Coitado do Seu Marcos.

Mal abriu a porta do elevador ele saiu sem se despedir. Caminhou até a porta de madeira, colocou a chave-mestra na porta de número 209. Abriu, entrou e logo fechou a porta atrás de si. Estava novamente no corredor anos 70. Na sua frente, a porta do 903. Deu dois passos à frente, girou nos calcanhares e admirou a gravação 902 na porta amadeirada. Caminhou devagar ao elevador, apertou sem força o botão do térreo e quando as portas se abriram novamente atravessou o lobby atirando as chaves no balcão. Saiu pela porta de vidro que dava para a rua sem olhar para trás.

Segredos do 903

Já não agüentava mais de cansaço. Depois de uma viagem difícil e de um trabalho extremamente tenso, entrou no hotel pensando no que fazer para se livrar daquele peso. Entrou no quarto. Achava o máximo deixar tudo bagunçado e, como num passe de mágica, tudo aparecer organizado e limpo. Olhou para o frigobar. Já sabia o que fazer. Ninguém saberia e o faria bem. Algumas horas e a placa com o indicativo 903, agora trêmula, era a única que ouvia suas amarguras.

Tinha sido tudo extremamente planejado. Ela sairia de casa, diria para a mãe que dormiria na casa de uma amiga, e ele estaria esperando na hora marcada na esquina de casa. Ela tinha 14, ele, 25. A reserva tinha sido feita há alguns dias e a expectativa consumia ambos, numa espécie de contagem regressiva para, então, consolidarem o amor que sentiam. Tudo correu bem. Quando virou-se para ir embora, ela olhou para trás. Não queria esquecer jamais a porta com o número 903.

Demorou algum tempo para encontrar no molho de chaves a que abriria aquela porta. Respirou e manteve a calma, afinal de contas, era hoje. O papelzinho colado na chave indicava a porta 903. O zelo ao entrar não lhe era peculiar, e ao lembrar disso ela sorriu pensando que jamais desconfiariam. Como, de fato. Já no criado-mudo ao lado da cama, correntes de ouro e relógios que foram pegos. Nas malas, roupas de valor, sapatos, cintos. A sacola cheia, fechou a porta e foi-se embora.

“Vai lá e me espera. Quarto 903”. Quando o telefone tocava, ela quase comemorava, num misto de susto, tesão e uma alegria profunda. No fundo, ela acreditava que esse jeito bronco e rude dele era o que há atraía há mais ou menos uns três anos. Como sempre, chegou no quarto, tomou seu demorado banho, vestiu a lingerie que carregava na bolsa só pra ele. Deitou-se na cama, acendeu um cigarro e esperou.

Elas eram só uma mistura de cimento, tinta e tijolos. Não podiam dizer de todos gritos, sussurros e roncos que já ouviram. Eram visitadas nos mais diversos períodos do dia, já perderam a conta de quantas vezes um rosto diferente entrara ali e também da quantidade de vezes que deram graças aos céus por elas não falarem. Elas sabiam de segredos que ninguém jamais supus. Elas eram as paredes, as paredes do quarto 903.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

A Paz

Fábio Ricardo
04/05/08


Os óculos escuros já não eram o suficiente para conter a luz que vinha da janela, e os olhos azuis, quase brancos, ardiam com a claridade. O ruído dos carros e dos transeuntes passando na rua o enojava, com todos aqueles olhares inquisidores e risos escondidos, desdenhando de sua aparência monstruosa. Ele só queria ser normal, desde pequeno, quando a doença começou a se desenvolver e apresentar manchas brancas que aos poucos tomaram toda a sua pele.

Ele não queria mais ver as pessoas, ouvir suas risadas, sentir o cheiro de suor dos trabalhadores que podiam atuar em qualquer profissão, enquanto ele nunca podia sair de dentro do escritório, evitando os nocivos raios de sol. Tentou morar no campo, longe das pessoas, mas o horário de funcionamento do comércio não era compatível com suas fugas dos raios solares. Em meio a pensamentos confusos, parou em frente à porta e checou o número. Quarto 902.

Entrou, fechou a porta e todas as cortinas, apagou as luzes e simplesmente sentou num canto, encostado na parede. Tentou bloquear em sua mente os sons vindos da rua, o cheiro de almoço vindo do apartamento ao lado, o choro de criança vindo do andar de cima, a claridade que ultrapassava o tecido das cortinas e o irritante carpete marrom, que fazia sua frágil pele coçar.

Não agüentava mais. Pegou a chave do quarto e escreveu com força na tinta da porta 902: “Eu só quero silêncio, eu só quero paz!”. Essa seria sua carta de despedida. Correu em direção à janela, respirou fundo e abriu a cortina. O sol forte o cegou e o impulsionou para a parede oposta. Mas não era uma simples claridade que o impediria de cometer tal atrocidade contra sua própria vida. Passou a vida inteira ouvindo risadas sobre suas incapacidades, mas ele não aceitava ser novamente este incapaz, ao lançar-se do nono andar de um quarto de hotel, rumo ao chão sujo e cheio de pessoas.

Pegou distância, cerrou os olhos e correu em direção à janela. Seu joelho atingiu a pequena mesa de centro, seu corpo precipitou-se contra a lateral do sofá e sua cabeça atingiu com força o batente da janela, aberta à sua frente. Perdeu os sentidos por um longo tempo, e quando acordou, estava em paz.

A sua visão estava turva, impossibilitando os raios de sol de cegarem seus olhos, já desprotegidos pelos óculos estilhaçados num canto qualquer. Tateou o rosto e sentiu o nariz retorcido, inundado em sangue, e reparou que o cheiro repugnante do feijão já não o incomodava mais. Podia sentir o sangue escorrendo por seus ouvidos, deixando o som do trânsito cada vez mais distante. Repetia consigo mesmo duas palavras: a paz, a paz, a paz...

Ficou deitado por muito tempo, até não ouvir mais ruído, não ver mais a luz do sol, não sentir cheiros. Suas pernas, que por muito tempo formigavam, já não sentiam mais nada. Ele sentia-se no paraíso. Aquele silêncio era tudo o que ele procurava durante todos os dias de sua vida. Ao tentar se matar, ao invés de cair, foi aos céus. Sentia-se um anjo, que não sentia fome, não sentia medo, não sentia dor. Sentia apenas uma paz maravilhosa se apossando de seu corpo. E o quarto 902 tornou-se seu paraíso particular, enquanto padecia na mais consoladora paz que já existiu.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Novo Tema

Tema: Quarto 902

Data de entrega: 06/05

Mãos às obras!