Mais uma rodada se encerra, e com ela, um novo tema surge. Os duelistas terão até o dia 6 de agosto (quinta-feira) para postar seus textos referentes ao tema:
O assassinato de uma criança.
para fins de organização, os marcador deve ser "assassinato criança".
Bons assassinatos a todos!
sexta-feira, 31 de julho de 2009
domingo, 26 de julho de 2009
Votação
Está aberta a votação de mais uma rodada do Duelo de Escritores.
Você pode colocar, aqui nos comentários, o nome (e se quiser, os motivos) do duelista ou do texto que você mais gostou. No dia 30, conheceremos o vencedor!
Você pode colocar, aqui nos comentários, o nome (e se quiser, os motivos) do duelista ou do texto que você mais gostou. No dia 30, conheceremos o vencedor!
A dois
Pronto, meu bem. Agora está tudo bem. Está quentinho aí? Espera, deixa eu arrumar seu travesseiro. Levanta a cabeça. Pronto, agora sim, muito mais confortável. Olha, se eu empurrar o cobertor pra baixo do seu corpo, assim, fica mais quentinho. Viu? Sabia que você ia gostar. É esse frio lá fora que não passa. Não para de nevar. Mas aqui dentro, não tem perigo, não. Aqui é quente e confortável. E é silencioso, do jeito que você gosta. Aqui dentro é só você e eu, sem ninguém para atrapalhar. Estamos a quilômetros da civilização, sem trabalho, telefone, sem relógio. Aqui somos apenas nós dois, só você e eu. Durante todo o inverno. Esse inverno é só nosso, meu bem. E ninguém vai poder nos separar. Olha, eu trouxe um chá para você, está bem quentinho. Só toma cuidado para não queimar a boca. É de erva cidreira. Eu sei que você prefere camomila, mas não tinha em casa. Amanhã vou ao mercado e compro para você. Compro também aquele bolo de chocolate que você tanto gosta. Quer tomar o chá, quer? Tudo bem, vamos tomar o chá, então. Eu te ajudo. Vamos primeiro sentar na cama, isso. Isso, força. Pronto, está confortável? Ótimo. Então vamos tomar o chá. Vou soltar a mordaça, mas você precisa me prometer que não vai gritar. Não adianta nada gritar, meu bem, ninguém pode ouvir a gente aqui. Então eu vou soltar a mordaça, mas não grite. Não há motivos. Isso. Viu como é melhor quando você se comporta? Se continuar comportado, posso até soltar as amarras da cama, para você poder caminhar pela casa. Mas lá fora não, lá fora está frio. Está gostoso o chá? O quê? O quê você está tentando dizer? Ah, meu bem, não dá de entender o que você diz. Deve ser o efeito do chá. É eu coloquei alguns calmantes nele, pra você dormir um pouco. Já faz três dias que você está aqui e ainda não tomou um banho decente, né? Então você dorme e eu te dou um banho, para você ficar bem cheiroso pra mim. Isso, meu bem, pode dormir tranquilo. Esse nosso inverno vai ser maravilhoso, você vai ver.
Equinócio
A luz... A luz que outrora brilhava, desvanece
O calor, que antes acalentava, não mais aquece
Tudo se dissipa, tudo se apaga, tudo vira pó e nada
Com lentidão morosa, a vida presente se torna passada
Fim da linha, quem diria?
Eu, como poucos, já sabia
Uma ascensão para cada queda, um verão para cada inverno
Não há sentido - não há existência - em um Éden que seja eterno
Saudades, ah, saudosismo!
Conversas alegres entre amigos
Onde o riso é semeado pela memória de tempos idos
E oculta o medo de futuros de tais alegrias desprovidos
Pois estes tempos, e todos os tempos, são o aqui e agora
Não há mais show, não há mais jogo, quando passa sua hora
O teatro vivo fecha suas cortinas, sobram só as fotografias
Nas margens da estrada, camas quentes em estalagens frias
Meus amigos, meus queridos...
Em breve, corações partidos...
Não mais pessoas, não mais ilhas a serem desbravadas
Só serão múmias estáticas, em estase embalsamadas
Ah, meu amor! Meu divino, verdadeiro e inatingível amor!
Não mais me atormentará, cegando-me com alegria e dor!
Minha querida e amada, a mais ardente lembrança cultivada!
O altar sagrado numa catedral de memórias idolatradas!
O calor, que antes acalentava, não mais aquece
Tudo se dissipa, tudo se apaga, tudo vira pó e nada
Com lentidão morosa, a vida presente se torna passada
Fim da linha, quem diria?
Eu, como poucos, já sabia
Uma ascensão para cada queda, um verão para cada inverno
Não há sentido - não há existência - em um Éden que seja eterno
Saudades, ah, saudosismo!
Conversas alegres entre amigos
Onde o riso é semeado pela memória de tempos idos
E oculta o medo de futuros de tais alegrias desprovidos
Pois estes tempos, e todos os tempos, são o aqui e agora
Não há mais show, não há mais jogo, quando passa sua hora
O teatro vivo fecha suas cortinas, sobram só as fotografias
Nas margens da estrada, camas quentes em estalagens frias
Meus amigos, meus queridos...
Em breve, corações partidos...
Não mais pessoas, não mais ilhas a serem desbravadas
Só serão múmias estáticas, em estase embalsamadas
Ah, meu amor! Meu divino, verdadeiro e inatingível amor!
Não mais me atormentará, cegando-me com alegria e dor!
Minha querida e amada, a mais ardente lembrança cultivada!
O altar sagrado numa catedral de memórias idolatradas!
Passou-se o apogeu...
(e ninguém se apercebeu)
O ápice foi cruzado...
(num arrastão desgovernado)
Agora a vida é queda...
(agora a vida é treva)
Até sua final solução...
(quem sabe por sua própria mão)
(e ninguém se apercebeu)
O ápice foi cruzado...
(num arrastão desgovernado)
Agora a vida é queda...
(agora a vida é treva)
Até sua final solução...
(quem sabe por sua própria mão)
...adeus, doce verão...
...venha, entre, amargo inverno...
... com lembranças crepitando na danação...
... a labareda débil em nosso suave inferno...
...venha, entre, amargo inverno...
... com lembranças crepitando na danação...
... a labareda débil em nosso suave inferno...
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Realidade 24h
A temperatura cai. O frio chega. Sinto o bater de queixos, e você? Falta coberta. Vem aqui. Me abraça. Vamos fazer um inverno quente? O nosso inverno.
Olha ali, coitadinhos. Estamos abraçados. Não me engano, mas minha pele, sim: parece que esquentou. Pega aqui, moço. Se enrolem também. Abraça, abraça forte. Somos todos amigos agora. Eu te dou meu casaco e você me dá seu frio. O inverno também é vosso: o vosso inverno.
O que é, moço? Tenho, sim, quer que eu acenda? Quer uma ponta da coberta? Moço de camiseta, deve estar congelando. Espera: passo frio mas dou a ele a minha parte da coberta. Olha ali, o moço tá indo pra aquele café! Tem fumaça saindo da xícara, o vidro escorre: tem aquecedor. Aqui não tem e o filho-da-puta acabou com o pouco fogo do meu isqueiro. Não adianta. Aqui faz frio. Nem meu, nem seu.
É um inverno só deles.
terça-feira, 21 de julho de 2009
Silêncio
— Silêncio!
Acordou sobressaltado no escuro. Os olhos baços à meia luz, ouvindo murmúrios baixos. Esfregou com os dedos os olhos que arderam salgados e divisou as duas loiras juntas, lado a lado, nas poltronas vermelhas na escura platéia quase vazia.
— No. Hay. Banda!
O homem no palco declamava pausado e com potência. Um poderoso staccato à capela, num sotaque castelhano.
— There is no band.
Com os olhos, se acostumando a pouca luz e a mente à vigília, pôde melhor divisar as mulheres nas poltronas escuras.
— And yet, we hear a band — Continuou o apresentador sob acordes gravados.
E tudo escureceu numa tela preta e num chiado eletrônico que cessou baixinho. Silêncio. Já vira o filme por vezes sem conta. E sempre acabava por vê-lo de novo. Tentava sempre revê-lo, na esperança de outro final. De uma guinada na história. De um personagem que pudesse surgir e valer-lhe, de fato a audiência. Mas o filme sempre insistia em passar de novo. No hay banda. E de novo estava ele em Silêncio.
Levantou-se, derrubando a vasilha de plástico ao chão. Caminhou sobre os milhos em cima do tapete e abriu a janela da sala. O inverno entrou frio pelo apartamento. Lá fora, as ruas de luzes brancas, todas em silêncio. Por cima dos telhados pontiagudos, o inverno se estendia até o velho teatro. Viu as luzes, o movimento, as pessoas distantes. Mas tudo era silêncio. Subiu no beiral da janela, aguardou o vento frio e lançou-se na corrente, acompanhando o ar gelado por sobre os telhados germânicos. Sobrevoou a movimentação. Atores, músicos, poetas. Artistas. Quadro de esteta elaborada. No palco, um latino estendia a mão, ao que respondia um clarinete invisível. Estendeu o braço a outro lado.
Respondeu-lhe um trombone, também invisível. Do alto, com o público e os outros artistas em volta, num grande círculo, a cena lembrava um ritual pagão. Todos vestidos de peles dançando ao redor da fogueira. The bonfire of De Palma. O vento soprou frio de novo e ele se deixou levar. Enrodilhou-se numa nuvem úmida e adormeceu no silêncio de um sussurro linchiano.
Acordou sobre o sofá com dor nas costas e atrasado. Saiu apressado para o compromisso. A cidade ensolarada, o velho teatro. Tomou o lugar à mesa. O discurso manso seguiu até que levantasse a cabeça para o público. Lá atrás, na última fila da platéia, um casal idoso o olhava com olhos famintos. Engoliu em seco, o ar frio. Um clarim fez-se soar distante. Mas não havia banda.
Acordou sobressaltado no escuro. Os olhos baços à meia luz, ouvindo murmúrios baixos. Esfregou com os dedos os olhos que arderam salgados e divisou as duas loiras juntas, lado a lado, nas poltronas vermelhas na escura platéia quase vazia.
— No. Hay. Banda!
O homem no palco declamava pausado e com potência. Um poderoso staccato à capela, num sotaque castelhano.
— There is no band.
Com os olhos, se acostumando a pouca luz e a mente à vigília, pôde melhor divisar as mulheres nas poltronas escuras.
— And yet, we hear a band — Continuou o apresentador sob acordes gravados.
E tudo escureceu numa tela preta e num chiado eletrônico que cessou baixinho. Silêncio. Já vira o filme por vezes sem conta. E sempre acabava por vê-lo de novo. Tentava sempre revê-lo, na esperança de outro final. De uma guinada na história. De um personagem que pudesse surgir e valer-lhe, de fato a audiência. Mas o filme sempre insistia em passar de novo. No hay banda. E de novo estava ele em Silêncio.
Levantou-se, derrubando a vasilha de plástico ao chão. Caminhou sobre os milhos em cima do tapete e abriu a janela da sala. O inverno entrou frio pelo apartamento. Lá fora, as ruas de luzes brancas, todas em silêncio. Por cima dos telhados pontiagudos, o inverno se estendia até o velho teatro. Viu as luzes, o movimento, as pessoas distantes. Mas tudo era silêncio. Subiu no beiral da janela, aguardou o vento frio e lançou-se na corrente, acompanhando o ar gelado por sobre os telhados germânicos. Sobrevoou a movimentação. Atores, músicos, poetas. Artistas. Quadro de esteta elaborada. No palco, um latino estendia a mão, ao que respondia um clarinete invisível. Estendeu o braço a outro lado.
Respondeu-lhe um trombone, também invisível. Do alto, com o público e os outros artistas em volta, num grande círculo, a cena lembrava um ritual pagão. Todos vestidos de peles dançando ao redor da fogueira. The bonfire of De Palma. O vento soprou frio de novo e ele se deixou levar. Enrodilhou-se numa nuvem úmida e adormeceu no silêncio de um sussurro linchiano.
Acordou sobre o sofá com dor nas costas e atrasado. Saiu apressado para o compromisso. A cidade ensolarada, o velho teatro. Tomou o lugar à mesa. O discurso manso seguiu até que levantasse a cabeça para o público. Lá atrás, na última fila da platéia, um casal idoso o olhava com olhos famintos. Engoliu em seco, o ar frio. Um clarim fez-se soar distante. Mas não havia banda.
Nosso inverno
Aqui não tem chuva, não tem frio
Inverno de verdade só pra baixo do Rio
Tempo ruim aqui não tem, ô
No nosso inverno é céu azul, amém!
Você que vem do Sul
Com o Ceará vai se encantar
Aqui também tem praia e mar, ô
Quero ver você querer voltar
-- REFRÃO -- 2x
Vem que tem
Menina, micareta tem
Vem dançar
Forrozear até o inverno acabar
--
Toda hora tem forró
Atrás do trio vem que tem axé
Mas uma hora vai dar saudade, ê
De no Estaleiro ver o sol nascer
Já tá na hora, tá na hora
De pra Santa eu voltar
Meu coração não demora, iai
Pra em Floripa desembarcar
-- REPETE REFRÃO -- 2x
Inverno de verdade só pra baixo do Rio
Tempo ruim aqui não tem, ô
No nosso inverno é céu azul, amém!
Você que vem do Sul
Com o Ceará vai se encantar
Aqui também tem praia e mar, ô
Quero ver você querer voltar
-- REFRÃO -- 2x
Vem que tem
Menina, micareta tem
Vem dançar
Forrozear até o inverno acabar
--
Toda hora tem forró
Atrás do trio vem que tem axé
Mas uma hora vai dar saudade, ê
De no Estaleiro ver o sol nascer
Já tá na hora, tá na hora
De pra Santa eu voltar
Meu coração não demora, iai
Pra em Floripa desembarcar
-- REPETE REFRÃO -- 2x
Tema: Nosso Inverno
O tema da rodada que começa hoje é:
"Nosso Inverno"
Os duelistas têm até o dia 26, domingo, para aquecer-nos com sua arte!
"Nosso Inverno"
Os duelistas têm até o dia 26, domingo, para aquecer-nos com sua arte!
sexta-feira, 17 de julho de 2009
Votação
A votação está aberta para esta rodada do Duelo. Deixe seu voto nos comentários deste post. E não te demores mais a votar. Tu estás atrasado!
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Cronologia, percepção e convenção: um breve ensaio sobre o tempo
Um velho conhecido costumava andar pela Grécia e vivia rodeado de pensadores. Todos demonstravam grande habilidade na oratória e raciocínio lógico deveras apurado, mas nenhum conseguiu ajudá-lo a sanar sua dúvida mais cruel. Os gregos usavam duas palavras distintas para se referir ao tempo. “Chronos”, tempo cronológico, mensurável, dos dias, anos, épocas. E o “kairos”, tempo divino, anacrônico, incomensurável, ou apenas “um momento”. Sempre entendi o tempo mais como kairos do que como chronos. Deixem-me explicar.
Há muito venho refletindo acerca do que é, de fato, o tempo. Se tempo é a duração de algo em relação a um determinado padrão estabelecido, como uma rotação “do Sol em torno da Terra”, por exemplo, estou certo de que os dias, meses e anos nada mais são do que convenções. O tempo é uma convenção? Com efeito, afirmo que não.
O tempo é algo muito além do que a visão simplista das convenções sociais. O tempo é divino. O tempo é mundano. O tempo é vivido. O tempo sou eu. Sim, sou eu. É você também. Se pensarmos que o tempo pode ser a sua percepção da duração dos fatos, o tempo nada mais é do que a resposta de seu cérebro para estímulos aos quais a ele seus sentidos apresentam. “Essa tarde está custando a passar, não?”
Será que o tempo de uma jornada de oito horas de trabalho na segunda-feira é o mesmo de uma sexta-feira? Se o tempo é uma percepção individual, será que podemos mudá-lo a nosso bel prazer? São dúvidas sensatas, meus caros. Pensem nisso. E não me venham com perguntas tolas, afinal! O que mais é o presente se não o exato momento em que o futuro vira passado? Tudo o que podemos esperar, tudo o que podemos ver, tudo o que podemos sentir é apenas um momento. O momento kairos, costumo dizer. Um único instante que resume toda a existência. Um único instante que não nos diz absolutamente nada. Isto é o tempo. Isto é a vida.
Sem mais delongas, quero cumprimentar o reitor desta nobre universidade e, em nome dele, todos os demais componentes desta mesa, assim como os acadêmicos participantes dessa jornada. Peço perdão pelo atraso e tenham todos um bom dia.
Há muito venho refletindo acerca do que é, de fato, o tempo. Se tempo é a duração de algo em relação a um determinado padrão estabelecido, como uma rotação “do Sol em torno da Terra”, por exemplo, estou certo de que os dias, meses e anos nada mais são do que convenções. O tempo é uma convenção? Com efeito, afirmo que não.
O tempo é algo muito além do que a visão simplista das convenções sociais. O tempo é divino. O tempo é mundano. O tempo é vivido. O tempo sou eu. Sim, sou eu. É você também. Se pensarmos que o tempo pode ser a sua percepção da duração dos fatos, o tempo nada mais é do que a resposta de seu cérebro para estímulos aos quais a ele seus sentidos apresentam. “Essa tarde está custando a passar, não?”
Será que o tempo de uma jornada de oito horas de trabalho na segunda-feira é o mesmo de uma sexta-feira? Se o tempo é uma percepção individual, será que podemos mudá-lo a nosso bel prazer? São dúvidas sensatas, meus caros. Pensem nisso. E não me venham com perguntas tolas, afinal! O que mais é o presente se não o exato momento em que o futuro vira passado? Tudo o que podemos esperar, tudo o que podemos ver, tudo o que podemos sentir é apenas um momento. O momento kairos, costumo dizer. Um único instante que resume toda a existência. Um único instante que não nos diz absolutamente nada. Isto é o tempo. Isto é a vida.
Sem mais delongas, quero cumprimentar o reitor desta nobre universidade e, em nome dele, todos os demais componentes desta mesa, assim como os acadêmicos participantes dessa jornada. Peço perdão pelo atraso e tenham todos um bom dia.
A sétima badalada
Olhou para trás. Pouco via além das duas linhas fundas sulcadas na neve que se estendiam até debaixo de suas rodas de madeira. No mais, tudo era branco. À exceção dos troncos escuros dos pinheiros que conseguiam se fazer ver através do nevoeiro.
Um bufar resmungado atraiu-lhe a atenção para ao enorme animal à sua frente, com as patas peludas enfiadas na neve e lufadas nebulosas saindo-lhe das narinas. Sacudia a crina, vez por outra, para livrar-se dos flocos que se acumulavam. Mesmo a besta já estava impaciente. Sacou da casaca grossa o relógio de bolso. Já chegava a aurora, diziam os ponteiros na linguagem muda dos relógios. O dia, ainda mais calado, não dizia nada, enterrado na neve e névoa.
Longe, um sino soou a badalada lúgubre do aguardo vão. À segunda badalada, a besta resmungou, com que adivinhando o comando para partir. Uma terceira badalada soou enquanto a neve começava a já cobrir os rastros da carroça. À quarta badalada, nada mudou. À quinta, apenas um suspiro quente em forma de nuvem despencou por baixo do bigode penteado. A sexta badalada trouxe o som de algo se quebrando. Frágil, perdido na neve, próximo e irremediavelmente distante.
Quando uma forma finalmente divisou-se tênue, entre os troncos encobertos pela neve, já não havia mais badalos, marcas na neve ou aguardo. Havia apenas o silêncio branco. E um suspiro quente em forma de nuvem pendurado no ar.
Um bufar resmungado atraiu-lhe a atenção para ao enorme animal à sua frente, com as patas peludas enfiadas na neve e lufadas nebulosas saindo-lhe das narinas. Sacudia a crina, vez por outra, para livrar-se dos flocos que se acumulavam. Mesmo a besta já estava impaciente. Sacou da casaca grossa o relógio de bolso. Já chegava a aurora, diziam os ponteiros na linguagem muda dos relógios. O dia, ainda mais calado, não dizia nada, enterrado na neve e névoa.
Longe, um sino soou a badalada lúgubre do aguardo vão. À segunda badalada, a besta resmungou, com que adivinhando o comando para partir. Uma terceira badalada soou enquanto a neve começava a já cobrir os rastros da carroça. À quarta badalada, nada mudou. À quinta, apenas um suspiro quente em forma de nuvem despencou por baixo do bigode penteado. A sexta badalada trouxe o som de algo se quebrando. Frágil, perdido na neve, próximo e irremediavelmente distante.
Quando uma forma finalmente divisou-se tênue, entre os troncos encobertos pela neve, já não havia mais badalos, marcas na neve ou aguardo. Havia apenas o silêncio branco. E um suspiro quente em forma de nuvem pendurado no ar.
quarta-feira, 15 de julho de 2009
Irregular
Tudo começou com um atraso menstrual. E eu adianto, tudo nessa história tem a ver com o atraso da menstruação dela.
A gente estava bem. Bem mesmo. Eu até achei que finais felizes existiam – aquela coisa, no começo, sabe como é. A gente saia, ia ao cinema, dançava, bebia, se descobria e transava com freqüência. Bem início. Na verdade, era uma coisa meio maluca. E só então ela me disse que tinha um ciclo menstrual maluco.
Aí começou o inferno. Primeiro que a gente não transava mais. Nem se eu tentasse explicar se um espermatozóide tivesse fecundado o óvulo dela, uma foda a mais ou a menos não mudaria muita coisa. Depois que ela começou a querer ficar em casa, ou porque estava pensando em como contar para os pais dela ou e como seria o quarto do bebê. Até nomes ela já tinha.
Eu imaginava – juro que às vezes até sentia – algodões bem fofos nos meus ouvidos. E ela falava e eu não ouvia e continuava lá, pensando que essa porcaria de menstruação tinha que vir pra eu não enlouquecer logo. Eu quase morria quando pensava que ia ser pai, mas é aquilo: se não fosse e eu me desesperasse, teria perdido cabelos a toa. O caso seria negociar a pensão.
Ela começou a ficar histérica com o fato de eu não falar no assunto. Até que eu comecei a não ir mais até a casa dela para vê-la. E era pra me estressar, ficava em casa ouvindo minha mãe. Pelo menos não gastava combustível. Aí eu comecei a sair com os amigos, pra desbaratinar até que um belo dia ela me liga.
A menstruação dela veio. Atrasada, mas veio. E aí ela me ligou a disse que a gente podia voltar a ser o que a gente era antes e que aquilo tudo era só TPM. E eu disse que não queria vê-la nunca mais. Estava atrasado para ver uma gatinha, que eu já sei que tem um ciclo menstrual regular.
O atraso
Ela não era de atrasos. Nunca atrasava, para falar a verdade. Toda sua vida era como um relógio, tudo com data e hora marcada, sem atrasos, sem adiamentos, sem cancelamentos.
Mas nesse dia, percebeu que estava atrasada. Podia ser qualquer dia, menos esse. Justo no seu aniversário de um mês de namoro. Ela sabia que o namorado nunca deu muita bola para essa coisa de datas, mas ainda assim, para ela isso era muito importante. Se já fossem, sei lá, uns quatro anos de namoro, ou até depois de casados, tudo bem. Mas atrasada justo no primeiro aniversário que comemoravam juntos? Não podia ser verdade.
Pensou em ligar para sua mãe. Choraria as mágoas como sempre fazia. Não importava o motivo, grande ou pequeno, sempre que algo a preocupava ou desapontava, ela ligava para sua mãe. Mas dessa vez, ela titubeava. Sabia exatamente o que sua mãe iria dizer. Sua mãe não aprovava seu namoro, nunca gostou do rapaz. Com certeza ia colocar a culpa no namorado da filha, falando sobre más influências e falta de respeito. Ia discursar sobre como a garota havia deixado de ser aquela menina correta. Ia colocar a culpa no namorado. E o pior é que ela sabia que era verdade. Ela, que nunca foi disso, agora estava atrasada e não sabia o que fazer.
Talvez devesse ligar para o namorado. Dizer que estava atrasada e pedir desculpas. Talvez até perguntar o que devia fazer. Mas ficou com medo. Não que tivesse medo do namorado, claro que não, mas ela nunca esteve atrasada antes, então não sabia qual seria sua reação. Será que ficaria nervoso? Poderia, quem sabe, brigar com ela e terminar o namoro? Será que iria xingar? Talvez até bater? Não, não, ele não era disso, tinha certeza. Mas como nunca tinha atrasado antes, não tinha ideia de qual seria sua reação, não sabia o que esperar.
Resolveu, então, respirar fundo e acabar com tantas dúvidas. Mesmo com medo, sabia que adiar ainda mais os problemas não iria resolver nada. Quem sabe seus medos eram bobos, e ela nem tinha com o que se preocupar? Quem sabe era um atraso normal, sem maiores complicações? Fez um rápido sinal da cruz, em silêncio, e entrou na farmácia. Com o pacote do exame de gravidez na mão, sabia que descobriria, de uma vez por todas, se era apenas um atraso, ou se devia se preocupar.
Mas nesse dia, percebeu que estava atrasada. Podia ser qualquer dia, menos esse. Justo no seu aniversário de um mês de namoro. Ela sabia que o namorado nunca deu muita bola para essa coisa de datas, mas ainda assim, para ela isso era muito importante. Se já fossem, sei lá, uns quatro anos de namoro, ou até depois de casados, tudo bem. Mas atrasada justo no primeiro aniversário que comemoravam juntos? Não podia ser verdade.
Pensou em ligar para sua mãe. Choraria as mágoas como sempre fazia. Não importava o motivo, grande ou pequeno, sempre que algo a preocupava ou desapontava, ela ligava para sua mãe. Mas dessa vez, ela titubeava. Sabia exatamente o que sua mãe iria dizer. Sua mãe não aprovava seu namoro, nunca gostou do rapaz. Com certeza ia colocar a culpa no namorado da filha, falando sobre más influências e falta de respeito. Ia discursar sobre como a garota havia deixado de ser aquela menina correta. Ia colocar a culpa no namorado. E o pior é que ela sabia que era verdade. Ela, que nunca foi disso, agora estava atrasada e não sabia o que fazer.
Talvez devesse ligar para o namorado. Dizer que estava atrasada e pedir desculpas. Talvez até perguntar o que devia fazer. Mas ficou com medo. Não que tivesse medo do namorado, claro que não, mas ela nunca esteve atrasada antes, então não sabia qual seria sua reação. Será que ficaria nervoso? Poderia, quem sabe, brigar com ela e terminar o namoro? Será que iria xingar? Talvez até bater? Não, não, ele não era disso, tinha certeza. Mas como nunca tinha atrasado antes, não tinha ideia de qual seria sua reação, não sabia o que esperar.
Resolveu, então, respirar fundo e acabar com tantas dúvidas. Mesmo com medo, sabia que adiar ainda mais os problemas não iria resolver nada. Quem sabe seus medos eram bobos, e ela nem tinha com o que se preocupar? Quem sabe era um atraso normal, sem maiores complicações? Fez um rápido sinal da cruz, em silêncio, e entrou na farmácia. Com o pacote do exame de gravidez na mão, sabia que descobriria, de uma vez por todas, se era apenas um atraso, ou se devia se preocupar.
terça-feira, 14 de julho de 2009
O demônio e o Pensador
- Tu estás atrasado.
- Eu sei. Na verdade, eu não deveria estar aqui.
- Para onde pretendias rumar?
- Para lugar algum.
- Caminhando sem destino?
- Nem caminhando eu pretendia estar.
- Mas teu caminho te trouxe até aqui.
- E aqui estou.
- Atrasado.
- Se soubesse, talvez não tivesse vindo.
- Virias, em alguma hora. E tal hora já deveria ter chegado há tempos.
- Concordo.
- E por que então te atrasastes?
- Sempre havia algo a me segurar.
- Motivos para vir tinhas aos montes. Motivos que estavam além dos simples e normais.
- Estar além dos simples e mortais era um motivo por si.
- Não mintas. Estar além te dava forças.
- Mas era a raiz das minhas fraquezas.
- Justificavas fraquezas com aléns. Tuas fraquezas não eram simples e normais?
- Talvez, algumas. Se eu fosse todo aléns, não teria vindo.
- Isto é certo. O que te segurava, então?
- Nunca a vida foi mais que o Inferno.
- Se teu diálogo com o fim fosse tão além quanto acreditavas, não te atrasarias por tal insignificância. Farias de qualquer insignificância um Inferno e tomarias o teu rumo.
- Eu e o fim tínhamos um pacto firmado. Achar que o fim era o Fim era o alento.
- Então a possibilidade de acabar era tua força para continuar?
- Paradoxal, mas havia a simplicidade e normalidade.
- A hipocrisia.
- E havia a prática e o medo. A dor, o método e a incerteza.
- Medo de falhar na solução para todas as falhas.
- E de sofrer. Na alma e no corpo. Medos que me atrasaram muito.
- Justificas atraso com covardia e hipocrisia.
- Foi o que me manteve lá.
- É simples e normal considerar lá melhor, mas tal crença não transforma falhas em virtudes. O que te fez vir, afinal?
- Eu falhei em tudo.
- Poderias ter pedido ajuda.
- Não o teria feito.
- Crês que não te ajudariam?
- Talvez alguém estendesse a mão. Mas não poderia ser qualquer um.
- Havia alguém especial?
- Havia alguéns especiais. Mas eu não poderia ser especial por piedade.
- Preferistes vir intacto a mostrar tua fraqueza.
- Não suplicaria. É melhor encontrar o Fim idôneo do que seguir lá em vergonha.
- O orgulho mata. E foi maior que teu limite.
- Chegou um momento em que já era demais. E o Inferno se tornou desejável.
- Mas por ele não esperavas.
- Não, e me pergunto o que aqui faço.
- Estás morto.
- Então não é a morte o Fim?
- É. Mas deliras.
- Se estou morto, não deliro. Não tenho mente para iludir.
- Mas escreves. E as palavras do escritor nada são apenas para ele.
- É preciso um público.
- E é um público que procuras no Fim?
- O Fim deveria ser o adeus a todo público. Mas, mesmo em morte, sonho.
- A vida é um sonho, diria o Poeta.
- Mas eu não sou o Poeta.
- Não. És o Pensador. E a beleza do verbo sem sentido não te satisfaz.
- E tu? És o Demônio, ou meu demônio?
- Sou teu demônio e teu confronto. Tua dor, teu desespero. A mão que não afaga tuas virtudes, mas pune teus pecados. Teu espelho monolítico de argumento e arbítrio. Sou tua Gárgula da Incerteza.
- E aqui me desafias, na Suprema Hipocrisia.
- E perdes teu tempo em virar a volta e refazer teus passos.
- Retorno, agora?
- Nunca partistes. Segues abraçado à covardia e hipocrisia. Elas te aguardam no sonho do Poeta, pois ainda não estás pronto para o Inferno do Pensador.
- Há um Fim, então.
- Não há descoberta sem tentativa. Vá, e não te demores mais. Tu estás atrasado.
- Eu sei. Na verdade, eu não deveria estar aqui.
- Para onde pretendias rumar?
- Para lugar algum.
- Caminhando sem destino?
- Nem caminhando eu pretendia estar.
- Mas teu caminho te trouxe até aqui.
- E aqui estou.
- Atrasado.
- Se soubesse, talvez não tivesse vindo.
- Virias, em alguma hora. E tal hora já deveria ter chegado há tempos.
- Concordo.
- E por que então te atrasastes?
- Sempre havia algo a me segurar.
- Motivos para vir tinhas aos montes. Motivos que estavam além dos simples e normais.
- Estar além dos simples e mortais era um motivo por si.
- Não mintas. Estar além te dava forças.
- Mas era a raiz das minhas fraquezas.
- Justificavas fraquezas com aléns. Tuas fraquezas não eram simples e normais?
- Talvez, algumas. Se eu fosse todo aléns, não teria vindo.
- Isto é certo. O que te segurava, então?
- Nunca a vida foi mais que o Inferno.
- Se teu diálogo com o fim fosse tão além quanto acreditavas, não te atrasarias por tal insignificância. Farias de qualquer insignificância um Inferno e tomarias o teu rumo.
- Eu e o fim tínhamos um pacto firmado. Achar que o fim era o Fim era o alento.
- Então a possibilidade de acabar era tua força para continuar?
- Paradoxal, mas havia a simplicidade e normalidade.
- A hipocrisia.
- E havia a prática e o medo. A dor, o método e a incerteza.
- Medo de falhar na solução para todas as falhas.
- E de sofrer. Na alma e no corpo. Medos que me atrasaram muito.
- Justificas atraso com covardia e hipocrisia.
- Foi o que me manteve lá.
- É simples e normal considerar lá melhor, mas tal crença não transforma falhas em virtudes. O que te fez vir, afinal?
- Eu falhei em tudo.
- Poderias ter pedido ajuda.
- Não o teria feito.
- Crês que não te ajudariam?
- Talvez alguém estendesse a mão. Mas não poderia ser qualquer um.
- Havia alguém especial?
- Havia alguéns especiais. Mas eu não poderia ser especial por piedade.
- Preferistes vir intacto a mostrar tua fraqueza.
- Não suplicaria. É melhor encontrar o Fim idôneo do que seguir lá em vergonha.
- O orgulho mata. E foi maior que teu limite.
- Chegou um momento em que já era demais. E o Inferno se tornou desejável.
- Mas por ele não esperavas.
- Não, e me pergunto o que aqui faço.
- Estás morto.
- Então não é a morte o Fim?
- É. Mas deliras.
- Se estou morto, não deliro. Não tenho mente para iludir.
- Mas escreves. E as palavras do escritor nada são apenas para ele.
- É preciso um público.
- E é um público que procuras no Fim?
- O Fim deveria ser o adeus a todo público. Mas, mesmo em morte, sonho.
- A vida é um sonho, diria o Poeta.
- Mas eu não sou o Poeta.
- Não. És o Pensador. E a beleza do verbo sem sentido não te satisfaz.
- E tu? És o Demônio, ou meu demônio?
- Sou teu demônio e teu confronto. Tua dor, teu desespero. A mão que não afaga tuas virtudes, mas pune teus pecados. Teu espelho monolítico de argumento e arbítrio. Sou tua Gárgula da Incerteza.
- E aqui me desafias, na Suprema Hipocrisia.
- E perdes teu tempo em virar a volta e refazer teus passos.
- Retorno, agora?
- Nunca partistes. Segues abraçado à covardia e hipocrisia. Elas te aguardam no sonho do Poeta, pois ainda não estás pronto para o Inferno do Pensador.
- Há um Fim, então.
- Não há descoberta sem tentativa. Vá, e não te demores mais. Tu estás atrasado.
domingo, 12 de julho de 2009
terça-feira, 7 de julho de 2009
Votação
Votação aberta até o dia 10.
O Fábio teve problemas com uma viagem e, devido a complicações, não conseguiu postar. Pedimos desculpas aos leitores.
O Fábio teve problemas com uma viagem e, devido a complicações, não conseguiu postar. Pedimos desculpas aos leitores.
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um assassinato que não deu certo,
votação
Espelho da mente
Eu
odeio
ela.
Entendeu, não é? Eu a odeio e não consigo mais agüentar a sua presença. Já fui indiferente. Já tolerei. Já me incomodei um pouco. Já suportei calado. Agora não quero mais ficar me escondendo.
Tudo nela me repudia. Sua fala, sua risada, sua presença, o modo como arreganha os dentes no sorriso... Não posso seguir por perto, porque me irrito com tudo o que ela faz. E o olhar? Ah, aquele maldito olhar! Como eu posso agüentar aquela zombaria disfarçada? Aquele ar de desafio e superioridade reprimido? Aquele brilho... Aquele azul cristalino...
Não!
Eu
odeio
ela!
Sim, eu a odeio e não há nada no mundo que possa mudar isso. A culpa não é minha. Não há nada que eu possa fazer a respeito. Odeio por tudo o que ela me fez passar. Pelo que me fez sofrer. Odeio! Tudo o que ela fez para mim.
Nada. Sim, exatamente nada! Odeio ela ter ignorado. Odeio ela ter desprezado. Silenciosamente, propositadamente! Odeio ela ter sentido pena. Odeio ela ter se condoído. Odeio ela ter se importado! Odeio ela gostar de mim... Odeio ela me amar... FINGIR me amar... não do modo... como eu...
EU
ODEIO
ELA!
Eu a odeio, pois não poderia sentir nada diferente. Toda vez que a vejo começo a pensar, pensar, pensar... e odiar, odiar, odiar! Eu quero que ela se dane, que erre e se machuque, que tenha uma alma cheia de feridas e cicatrizes. Que ela escolha o caminho que quiser. Que faça as escolhas idiotas que achar melhor. E sofra por isso. Sofra e chore! Deixe-a sofrer. Eu não me importo com ela. Não me importo. Para mim ela está morta.
Mas não consigo parar de pensar, e isso me faz odiar mais ainda! Pois toda a vez que eu penso, é com ódio. Ódio por tudo aquilo que ela representa, pelo que ela fez ao seguir sua vida estúpida do modo com seguiu. Tomara que siga para o inferno de uma vez por todas!
Odeio ela, com todo o ódio que meu coração possa conter. Mas sou obrigado a ter ela sempre por perto. Pois ela sempre está nos lugares onde eu vou, nos momentos em que estou. Quando saio, quando vago, é ela quem sempre esbarra comigo, vinda do nada. É ela quem está na sacada do apartamento, quando tento passar às pressas pela rua. Quando disco um telefone qualquer, é ela quem atende. E, como se não bastasse toda a insônia que o ódio já me causa, quando fecho os olhos, é ela quem vem assombrar meus pesadelos! Ela não me deixa descansar, não me deixa ser feliz, arruína tudo em minha vida. Ela que gera esse insano ódio, como um monstro, um parasita, um vampiro de almas que merece ser empalado pelo coração, sofrendo mil eternidades de agonia por cada segundo da minha desgraça!
POR
TUDO
ISSO
EU
EU
eu
amo
ela
eu
amo
ela
E não há nada que eu possa fazer a respeito...
segunda-feira, 6 de julho de 2009
Um prato frio
Calculista ele era. Já havia planejado a vingança pelo menos umas trinta vezes na ponta do lápis. Preto no branco. Tudo de papel passado. Faltava-lhe um pouco de frieza, mas se aos 63 anos ainda não tinha desenvolvido, dificilmente conseguiria. Costumavam dizer que vingança é um prato que se come frio, mas esperar meio século é tempo para apodrecer a comida. Prato, talheres e até a mesa já deviam estar embolorados. Era treze de outubro. A mesma data em que sua vida havia sido completamente destruída. Um fim trágico para uma criança que tinha tudo para ser um homem de sucesso.
Naquele dia pegou todas suas anotações de planos diabólicos para acabar, de uma vez por todas, com seu algoz. Entre as centenas de pequenos papéis razurados, um o chamou atenção. Era justamente este que ele colocaria em prática. Aos 63 anos já não tinha mais um preparo físico invejável. Os músculos já davam sinais de atrofia e os dedos começavam a enrugar. Mesmo assim era aquele o plano que ele pretendia colocar em prática. Tirou do fundo de seu closet um arco e duas flexas, camisa preta, calça preta e um par de botas sete léguas. Passou pela sala e sacou da gaveta de um pequeno aparador um par de luvas da mesma cor das demais vestes e desceu as escadas com certa dificuldade. Entrou em seu Corcel e saiu em direção ao asilo onde o inimigo o esperava há anos.
Chegando lá, estava certo de não conseguiria pular as grandes muralhas que faziam do asilo uma prisão, mas tinha certeza de que sua astúcia o levaria ao encontro de quem procurava. Com muito esforço arremessou o arco e as flechas para o outro lado do muro, caminhando em direção à portaria do asilo.
- Bom dia, senhor. Em que posso ajudá-lo? - O jovem recepcionista se impressionou com as vestes daquele senhor, mas quem era ele para julgar um ancião que buscava uma casa asilar por conta própria?
- Estou procurando um local para ficar. Minha família está muito atarefada e já não tenho mais idade pra ficar em casa sozinho.
- Certo. É para isso que estamos aqui. Qual a sua idade?
- Sessenta e três e meio.
- O senhor consegue ler e escrever?
- Sim, claro.
- Então assine estes papéis e já o levo para conhecer seu novo lar.
Tremendo como há muito não tremia, assinou todos os papéis. Nem fez questão de ler, pois sabia que em poucas horas estaria saindo por aquela mesma porta, carregado por policiais rumo a outro tipo de asilo um pouco mais sujo e conturbado, mas nem por isso pior do que aquele. Foi orientado pelo rapaz da portaria que subisse a rampa até o primeiro andar para conhecer a área coletiva do local. Lá, observava atentamente à movimentação de seus novos colegas de residência, a fim de saber como chegar ao seu objetivo em poucas horas.
Sua memória recente já estava ligeiramente abalada por algum tipo de doença degenerativa, por isso, carregava consigo as anotações de como faria aquele premeditado assassinado. A vingança que sonhou a cada dia de sua vida desde os treze anos de idade. Só agora, quando não devia mais nada a ninguém, ele teria coragem de realizar seu grande sonho. Retirou os pequenos papéis do bolso e se pôs a ler linha por linha, já acalmado por ter entrado onde precisava. Andou até o piso inferior e pegou sua arma, que ele já não lembraria onde estava não fosse pelas anotações prévias. Se algo saísse fora do previsto, talvez sua memória lhe pregasse uma peça, mas até então tudo estava nos conformes.
Várias horas se passaram e ele nem sequer sentia o tempo. Sentou-se à mesa para o jantar ainda vestido com suas roupas todas pretas. Não tirou a luva nem para comer a sopa que lhe serviram. Foi quando avistou seu irmão mais velho no outro lado do recinto. Entrando vagarosamente com auxílio de um andador, o homem demonstrava uma bela aparência, apesar de frágil. Era a imagem que faltava para despertar a fúria daquele senhor vingativo de sessenta e três anos. Ele se levantou tão rápido quanto podia e fugiu na direção contrária à do irmão rumo ao andar dos quartos. Com arco e flecha já em mãos, entrou no quarto de seu irmão e pôs-se a esperar o momento certo de entrar em cena. A mira já estava na direção da porta quando ouviu o barulho da maçaneta a girar. Sua respiração era ofegante só de imaginar a flecha atravessando o pescoço daquele ser de existência tão abominável. Eis que a porta se abre. O irmão mais velho entra no quarto e com a visão turva percebe a presença de alguém. O mais novo hesita em atirar. O mais velho caminha mais rumo à cama onde escorava-se o mais novo. O mais novo enche os olhos de lágrimas e suas mãos tremem. O mais velho o reconhece, vê o arco e a flecha parados em sua direção, cai e se contorce no chão. O mais novo sai lentamente sem ver uma única gota de sangue. O mais velho agoniza.
Naquele dia pegou todas suas anotações de planos diabólicos para acabar, de uma vez por todas, com seu algoz. Entre as centenas de pequenos papéis razurados, um o chamou atenção. Era justamente este que ele colocaria em prática. Aos 63 anos já não tinha mais um preparo físico invejável. Os músculos já davam sinais de atrofia e os dedos começavam a enrugar. Mesmo assim era aquele o plano que ele pretendia colocar em prática. Tirou do fundo de seu closet um arco e duas flexas, camisa preta, calça preta e um par de botas sete léguas. Passou pela sala e sacou da gaveta de um pequeno aparador um par de luvas da mesma cor das demais vestes e desceu as escadas com certa dificuldade. Entrou em seu Corcel e saiu em direção ao asilo onde o inimigo o esperava há anos.
Chegando lá, estava certo de não conseguiria pular as grandes muralhas que faziam do asilo uma prisão, mas tinha certeza de que sua astúcia o levaria ao encontro de quem procurava. Com muito esforço arremessou o arco e as flechas para o outro lado do muro, caminhando em direção à portaria do asilo.
- Bom dia, senhor. Em que posso ajudá-lo? - O jovem recepcionista se impressionou com as vestes daquele senhor, mas quem era ele para julgar um ancião que buscava uma casa asilar por conta própria?
- Estou procurando um local para ficar. Minha família está muito atarefada e já não tenho mais idade pra ficar em casa sozinho.
- Certo. É para isso que estamos aqui. Qual a sua idade?
- Sessenta e três e meio.
- O senhor consegue ler e escrever?
- Sim, claro.
- Então assine estes papéis e já o levo para conhecer seu novo lar.
Tremendo como há muito não tremia, assinou todos os papéis. Nem fez questão de ler, pois sabia que em poucas horas estaria saindo por aquela mesma porta, carregado por policiais rumo a outro tipo de asilo um pouco mais sujo e conturbado, mas nem por isso pior do que aquele. Foi orientado pelo rapaz da portaria que subisse a rampa até o primeiro andar para conhecer a área coletiva do local. Lá, observava atentamente à movimentação de seus novos colegas de residência, a fim de saber como chegar ao seu objetivo em poucas horas.
Sua memória recente já estava ligeiramente abalada por algum tipo de doença degenerativa, por isso, carregava consigo as anotações de como faria aquele premeditado assassinado. A vingança que sonhou a cada dia de sua vida desde os treze anos de idade. Só agora, quando não devia mais nada a ninguém, ele teria coragem de realizar seu grande sonho. Retirou os pequenos papéis do bolso e se pôs a ler linha por linha, já acalmado por ter entrado onde precisava. Andou até o piso inferior e pegou sua arma, que ele já não lembraria onde estava não fosse pelas anotações prévias. Se algo saísse fora do previsto, talvez sua memória lhe pregasse uma peça, mas até então tudo estava nos conformes.
Várias horas se passaram e ele nem sequer sentia o tempo. Sentou-se à mesa para o jantar ainda vestido com suas roupas todas pretas. Não tirou a luva nem para comer a sopa que lhe serviram. Foi quando avistou seu irmão mais velho no outro lado do recinto. Entrando vagarosamente com auxílio de um andador, o homem demonstrava uma bela aparência, apesar de frágil. Era a imagem que faltava para despertar a fúria daquele senhor vingativo de sessenta e três anos. Ele se levantou tão rápido quanto podia e fugiu na direção contrária à do irmão rumo ao andar dos quartos. Com arco e flecha já em mãos, entrou no quarto de seu irmão e pôs-se a esperar o momento certo de entrar em cena. A mira já estava na direção da porta quando ouviu o barulho da maçaneta a girar. Sua respiração era ofegante só de imaginar a flecha atravessando o pescoço daquele ser de existência tão abominável. Eis que a porta se abre. O irmão mais velho entra no quarto e com a visão turva percebe a presença de alguém. O mais novo hesita em atirar. O mais velho caminha mais rumo à cama onde escorava-se o mais novo. O mais novo enche os olhos de lágrimas e suas mãos tremem. O mais velho o reconhece, vê o arco e a flecha parados em sua direção, cai e se contorce no chão. O mais novo sai lentamente sem ver uma única gota de sangue. O mais velho agoniza.
A moça do forró
Eu tava só voltando da bodega lá, moço. Tava quase escuro, de quando é quase dia mas na verdade ainda não tinha amenhecido. Eu só consegui ouvir um grito de uma moça. Era tudo um breu e eu não via nadica de nada. Quando cheguei perto era a moça do forró. A Irene que não me escute, mas a moça tava com uma saia curtinha, seu delegado... Tinha uma pernas, que deixou todo mundo lá da bodega do Tonho de cabelo em pé. E o seu delegado sabe bem como é isso, né? Mulher é um bicho tinhoso.
Daí eu cheguei perto pra acudir a moça e pedi o que tinha acontecido que o joelho dela tava todo cheio de sangue. Ela nem conseguia falar, homi. Só chorava a pobrezinha. Só deu tempo de pegar ela no colo e colocar no carro. Na hora eu nem pensei que eu tava botando as mão nas perna que todo mundo queria encostar, sabe. Nem tirei lasquinha. Fiquei preocupado, mesmo.
No meio do caminho a moça começou a gritar, desesperada. Disse pra parar, que ela queria descer. Eu fui pro acostamento e ela abriu a porta e saiu correndo como deu. Meio manca, a pobrinha. Eu só via a saia balançando contra a luz dos carro na estrada – eu disse que ainda tava amanhecendo, né, seu delegado? Eu fui atrás.
Quando eu consegui pegar ela pelo braço, ela olhou bem pra minha cara e se pendurou no meu pescoço, moço. Mas eu não fiz nada, não. Desaguou. Eu fui tentar acalmar a moça e ela me disse que tinham tentado matar ela – tão formosa e tão desesperada a moça. Aí eu não sabia o que fazer, né, seu delegado?! Essas coisas a gente nunca sabe como agir.
Pedi pra moça sentar no chão e me contar tim-tim-por-tim-tim-tim o que tinha acontecido e ela pegou minha mão e fez eu apalpar a cabeça dela. Um galo, seu delegado, um galo que eu tive certeza que cabra-macho não agüentava. E daí ela disse que tava saindo do forró com o Tonho, o dono da bodega. E eu bem que estranhei que ele tinha saído cedo. E daí chegou o filho do Tonho, o Zé, tirou o pai do braço dela e deu com um pau na cabeça dela.
E a pobrinha, coitadinha, tentou sair correndo mas não conseguiu. Eu disse que devia ser porque o seu Tonho era casado com a mãe do Zé e ele deve ter ficado brabo, mas aí ela caiu no choro mais ainda, não conseguia parar de soluçar. Foi aí que ela tentou dizer que tinha namorado o Zé. Eu não contive o queixo, seu delegado. O Zé é barra-pesada. Até tampei as perna da moça. Não queria confusão sabe, moço.
Aí ela disse que ficou uns par de tempo sem lembrar de nada quando eles vieram de novo com um saco e tentaram botar ela drento ela acordou e berrou. Daí que eu ouvi. Eu só não entendi, seu delegado, porque eles cascaram fora quando me viram chegar. Eu sou forte, sabe, carrego peixe e barco todo dia. Mas os dois são umas montanha. De certo ficaram com medo que eu contasse pra Dona Ivone, que é irmã da Irene.
É isso, seu delegado. É isso que eu sei. Só isso. E eu juro pro Senhor como falo a verdade. O que? Ela disse que fui eu quem deu com uma peixeira na cabeça dela? Vagabunda! Filha da mãe! Não, seu delegado, eu juro que não fui eu. Foi o Tonho. Eu vi o Tonho correndo. Lá no começo eu disse que não, mas eu vi, seu delegado. Foi o Tonho. Foi o Tonho. Eu vi o saco preto, seu delegado.
domingo, 5 de julho de 2009
Ao Diretor Geral
Não era, em nada, similar a um filme americano. Não havia a luz pendente, não havia o good-cop-bad-cop, não havia espelhos falsos na parede. Não havia, na verdade, parede. Na capoeira baixa e seca, pouco se via além do local iluminado pelos faróis. No contraluz uma silhueta insistia:
― Melhor ir falando. Isso pode levar a noite a toda e não tenho a menor pressa de ir pra depê. O café de lá é uma bosta, mesmo.
No chão, um outro vulto encolhido no capim seco. As mãos atrás das costas. De longe, nem seria visto. Àquela hora, de qualquer forma, não havia ninguém para ver coisa alguma. E o vulto sabia disso.
― Eu já disse, só fiz o que ele pediu. Foi o que disse o vulto. Que outra coisa não era, naquela situação, o sujeito. Apenas um vulto.
― Olha ― continuou a silhueta no contraluz ― eu não tô na minha hora de serviço, não tô de uniforme. Não tem nenhuma regra que eu tenho que seguir. Se você falar, você volta comigo, num pedaço só, inteirinho. Peixe pequeno assim, se se comportar, em um ano, dois, tá fora. Eu até dou um jeito de ajeitar o seu lado lá dentro, pra ficar sossegado. Agora, se me enrolar, eu tenho um saco preto no porta-malas que é o seu número. E daí você nem vai sentir o cheiro da porra do café da depê. Ca-dê-a-mer-da-da-gra-na?
― Eu não peguei nada. Só o que o velho me pagou. Como eu ia saber que a caixa era pra ele?
― Tá me achando com cara de otário? ― A silhueta no contraluz parecia perder um pouco da paciência. ― Você quer que eu acredite que o velho pagou pra acabar com ele mesmo? Você apagou o infeliz pra roubar alguma coisa. Se não era dinheiro era o quê?
― Não roubei nada, não. Numa dessas ele queria se matar e só não tinha coragem pra puxar o gatilho.
― Não, não, não. Eu conheço esse tipo de gente. Fresco e com grana assim, se ele fosse se matar ia tomar um punhado de comprimido com uísque num copo de cristal. Esse tipo nem gosta muito da idéia de uma arma, que é pra não estragar o enterro. Imagina receber uma carta bomba na cara. Caralho, a cabeça do velho tava do avesso! Os braços cortados no cotovelo. As mãos não deu nem pra achar. Gente assim nunca ia arrumar uma dessas pra se matar. Suicídio não cola. Você me diz onde tá a grana, eu pego – até deixo um pouco com você, se você cooperar – e a gente faz a prisão na boa. A hora que você sair, ainda vai ter uma grana te esperando.
― Mas eu já disse, eu mandei a caixa do jeitinho que ele pediu. E foi só. Não roubei nada, não. Não sei de dinheiro nenhum. Só tenho o que ele me pagou pra enviar a caixa.
― Tá certo, você não quer dizer, tudo bem. Já vi que não adianta insistir.
A silhueta no contraluz puxou o vulto do chão, deitou-o com o peito sobre o capô do carro, soltou-lhe das algemas, conferindo se não havia deixado nenhuma marca no pulso.
― Vaza. E fica sabendo que eu tô de olho. Se tu aparecer com alguma grana, eu vou ficar sabendo. Vaza. Corre!
Um vulto partindo, correndo na capoeira, tendo às costas a luz dos faróis de um carro solitário, uma silhueta com um trinta e oito apontado e duas balas. No contraluz, o cano curto fumegava. O corpo, entre o capim seco da capoeira, mais adiante, também. A silhueta saiu da frente do carro, abriu a porta, passou uma chamada pelo rádio acusando uma perseguição ao suspeito. Alguns minutos depois, uma nova chamava pedia uma ambulância. O fugitivo tinha sido alvejado.
― Esse café é uma bosta, hein?
― Não muda nunca. Você devia estar acostumado.
― E aí, alguma novidade da tal caixa?
― Esperando a perícia, ainda.
― Pra mim tá na cara que alguém mandou a bomba pro cidadão pra sair com alguma grana. Grana graúda.
― Sei lá. Tá muito estranho. Mas pode ser. O cara acaba de ganhar uma promoção, vira diretor geral, tá com a grana, alguém fica sabendo e resolve explodir com ele.
― Acho que sim.
― Cara, não fazia nem um mês que o infeliz tinha assumido o cargo.
― Nem deu tempo de aproveitar o dinheiro que tava ganhando.
― Pode dizer o que quiser, mas esse é um cargo que eu não queria ter. O cara que tava no cargo antes foi preso com um desvio de verba animal. E isso porque acabou não pagando o imposto de renda, senão ninguém ia descobrir. Aí vem esse velho, assume o lugar de uma hora pra outra, e recebe uma carta bomba de presente. Prefiro ficar aqui com esse café de bosta e manter a minha cabeça em cima do corpo.
― Mas e aí, chegou a ver a caixa antes de ir pra perícia?
― Pouca coisa. Normal. Toda parda, selo do correio, confidencial escrito na tampa, logo abaixo do nome do cargo. “A/C: Diretor Geral”. Tudo digitado na máquina, nenhuma caligrafia.
― Mas a perícia já não adiantou que as digitais bateram?
― Já, já. Parece que foi o cara que você pegou mesmo. Pena que não deu pra pegar o sujeito. Se espremesse ele, devia dar pra descobrir o que aconteceu, ou porque ele mandou a carta.
― Pode ser, pode ser.
Perto da capoeira, numa casa silenciosa, outra unidade de investigação fazia uma varredura na casa do principal suspeito de ter enviado a caixa. Mesmo à luz do dia, distante, era impossível ver a poça de sangue entre o capim seco lá fora. Do lado de dentro, sob a cama, numa sacola de lixo, uma pilha de dinheiro, separada em notas de cem e cinqüenta. Notas sequenciais, descuidadas. Coisa de amador. O investigador encarregado avaliou por cima algo em torno de uns cinco mil reais. Com uma margem de erro para mais ou para menos, caso algo sumisse ou passasse despercebido. Embaixo de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, na estante da sala, um pedaço de jornal rasgado que tinha, na margem, uma nota escrita à mão, com o endereço da empresa e instruções para o envio de uma encomenda ao Diretor Geral, em uma caixa confidencial, para garantir que não parasse na secretária. A digital, dificilmente poderia ser comparada com algum suspeito, visto que os dedos que ali se encaixavam haviam desaparecido sob uma explosão. No canto do jornal, um pedaço de foto de matéria desatualizada e a data de pouco mais de um mês atrás.
― Melhor ir falando. Isso pode levar a noite a toda e não tenho a menor pressa de ir pra depê. O café de lá é uma bosta, mesmo.
No chão, um outro vulto encolhido no capim seco. As mãos atrás das costas. De longe, nem seria visto. Àquela hora, de qualquer forma, não havia ninguém para ver coisa alguma. E o vulto sabia disso.
― Eu já disse, só fiz o que ele pediu. Foi o que disse o vulto. Que outra coisa não era, naquela situação, o sujeito. Apenas um vulto.
― Olha ― continuou a silhueta no contraluz ― eu não tô na minha hora de serviço, não tô de uniforme. Não tem nenhuma regra que eu tenho que seguir. Se você falar, você volta comigo, num pedaço só, inteirinho. Peixe pequeno assim, se se comportar, em um ano, dois, tá fora. Eu até dou um jeito de ajeitar o seu lado lá dentro, pra ficar sossegado. Agora, se me enrolar, eu tenho um saco preto no porta-malas que é o seu número. E daí você nem vai sentir o cheiro da porra do café da depê. Ca-dê-a-mer-da-da-gra-na?
― Eu não peguei nada. Só o que o velho me pagou. Como eu ia saber que a caixa era pra ele?
― Tá me achando com cara de otário? ― A silhueta no contraluz parecia perder um pouco da paciência. ― Você quer que eu acredite que o velho pagou pra acabar com ele mesmo? Você apagou o infeliz pra roubar alguma coisa. Se não era dinheiro era o quê?
― Não roubei nada, não. Numa dessas ele queria se matar e só não tinha coragem pra puxar o gatilho.
― Não, não, não. Eu conheço esse tipo de gente. Fresco e com grana assim, se ele fosse se matar ia tomar um punhado de comprimido com uísque num copo de cristal. Esse tipo nem gosta muito da idéia de uma arma, que é pra não estragar o enterro. Imagina receber uma carta bomba na cara. Caralho, a cabeça do velho tava do avesso! Os braços cortados no cotovelo. As mãos não deu nem pra achar. Gente assim nunca ia arrumar uma dessas pra se matar. Suicídio não cola. Você me diz onde tá a grana, eu pego – até deixo um pouco com você, se você cooperar – e a gente faz a prisão na boa. A hora que você sair, ainda vai ter uma grana te esperando.
― Mas eu já disse, eu mandei a caixa do jeitinho que ele pediu. E foi só. Não roubei nada, não. Não sei de dinheiro nenhum. Só tenho o que ele me pagou pra enviar a caixa.
― Tá certo, você não quer dizer, tudo bem. Já vi que não adianta insistir.
A silhueta no contraluz puxou o vulto do chão, deitou-o com o peito sobre o capô do carro, soltou-lhe das algemas, conferindo se não havia deixado nenhuma marca no pulso.
― Vaza. E fica sabendo que eu tô de olho. Se tu aparecer com alguma grana, eu vou ficar sabendo. Vaza. Corre!
Um vulto partindo, correndo na capoeira, tendo às costas a luz dos faróis de um carro solitário, uma silhueta com um trinta e oito apontado e duas balas. No contraluz, o cano curto fumegava. O corpo, entre o capim seco da capoeira, mais adiante, também. A silhueta saiu da frente do carro, abriu a porta, passou uma chamada pelo rádio acusando uma perseguição ao suspeito. Alguns minutos depois, uma nova chamava pedia uma ambulância. O fugitivo tinha sido alvejado.
― Esse café é uma bosta, hein?
― Não muda nunca. Você devia estar acostumado.
― E aí, alguma novidade da tal caixa?
― Esperando a perícia, ainda.
― Pra mim tá na cara que alguém mandou a bomba pro cidadão pra sair com alguma grana. Grana graúda.
― Sei lá. Tá muito estranho. Mas pode ser. O cara acaba de ganhar uma promoção, vira diretor geral, tá com a grana, alguém fica sabendo e resolve explodir com ele.
― Acho que sim.
― Cara, não fazia nem um mês que o infeliz tinha assumido o cargo.
― Nem deu tempo de aproveitar o dinheiro que tava ganhando.
― Pode dizer o que quiser, mas esse é um cargo que eu não queria ter. O cara que tava no cargo antes foi preso com um desvio de verba animal. E isso porque acabou não pagando o imposto de renda, senão ninguém ia descobrir. Aí vem esse velho, assume o lugar de uma hora pra outra, e recebe uma carta bomba de presente. Prefiro ficar aqui com esse café de bosta e manter a minha cabeça em cima do corpo.
― Mas e aí, chegou a ver a caixa antes de ir pra perícia?
― Pouca coisa. Normal. Toda parda, selo do correio, confidencial escrito na tampa, logo abaixo do nome do cargo. “A/C: Diretor Geral”. Tudo digitado na máquina, nenhuma caligrafia.
― Mas a perícia já não adiantou que as digitais bateram?
― Já, já. Parece que foi o cara que você pegou mesmo. Pena que não deu pra pegar o sujeito. Se espremesse ele, devia dar pra descobrir o que aconteceu, ou porque ele mandou a carta.
― Pode ser, pode ser.
Perto da capoeira, numa casa silenciosa, outra unidade de investigação fazia uma varredura na casa do principal suspeito de ter enviado a caixa. Mesmo à luz do dia, distante, era impossível ver a poça de sangue entre o capim seco lá fora. Do lado de dentro, sob a cama, numa sacola de lixo, uma pilha de dinheiro, separada em notas de cem e cinqüenta. Notas sequenciais, descuidadas. Coisa de amador. O investigador encarregado avaliou por cima algo em torno de uns cinco mil reais. Com uma margem de erro para mais ou para menos, caso algo sumisse ou passasse despercebido. Embaixo de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, na estante da sala, um pedaço de jornal rasgado que tinha, na margem, uma nota escrita à mão, com o endereço da empresa e instruções para o envio de uma encomenda ao Diretor Geral, em uma caixa confidencial, para garantir que não parasse na secretária. A digital, dificilmente poderia ser comparada com algum suspeito, visto que os dedos que ali se encaixavam haviam desaparecido sob uma explosão. No canto do jornal, um pedaço de foto de matéria desatualizada e a data de pouco mais de um mês atrás.
quarta-feira, 1 de julho de 2009
Novo Tema
O novo tema da rodada será: "Um assassinato que não deu certo".
(Este será também o marcador)
Os textos devem ser postados até o dia 06/07/2009.
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Temas,
um assassinato que não deu certo
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