O celular a acordou tocando uma música japonesa numa versão americana teen. Abriu os olhos levemente puxados de um castanho profundo e sonolento para ver, sobre a penteadeira, o uniforme passado e dobrado que a aguardava. A saia escura de pregas até os joelhos, a camisa branca de botões, as meias brancas acompanhando as sapatilhas pretas. Despiu o pijama e observou a pele alva e sem manchas no espelho. Quase imaculada, não fosse por uma minúscula espinha na testa, prontamente coberta com pomada. Vestiu-se olhando pela janela do décimo primeiro andar do edifício cor marfim a cidade abaixo dela, há muito acordada. Escovou os cabelos lisos cor de chocolate-quatro-ponto-sete-sete cortados à altura dos ombros e de franja impecável. Olhou-se novamente no espelho com um meio sorriso de contentamento, vendo a imagem do que a mãe categorizaria como “fofa”. Juntou os cadernos dentro da pasta a tiracolo e encontrou os pais para o café da manhã na cozinha branco-minimalista, com o sol filtrado pelo para-sol das janelas. Enquanto o pai lia o jornal do dia e a mãe via as notícias na tevê suspensa, comeu o mamão papaia descascado, tomou o iogurte com o cereal de marca e comeu meia fatia de pão de iogurte com manteiga light e geléia belga, terminando com o suco de laranja. Desceu os onze andares pelo elevador iluminado e sentou-se ao lado do pai no SUV alemão prateado. No rádio, as notícias relidas por um locutor traziam mais do mesmo outra vez. Despediu-se do pai com um beijo no rosto, saltou do carro parado em fila dupla na porta do colégio e entrou pelos portões alaranjados para as aulas do dia.
Sentou-se no mesmo lugar de sempre. Ouviu a mesma professora de toda segunda-feira. Naquela segunda, novamente, depois de já bastante tempo, olhava mais para o relógio do que para a professora. Os ponteiros dos segundos com dificuldade empurravam o dos minutos contra o irresoluto ponteiro menor. A perna saltitava num levantar-e-abaixar na ponta do pé. Rabiscava e desenhava na borda com caderno, com cuidado para não manchar a mão com tinta. Hoje queria a pele alva livre de qualquer mancha. No intervalo ligou do celular para a mãe, avisando que iria almoçar na casa da Renata. Não avisou Renata. Abriu a agenda e viu marcado o apontamento em caneta colorida: Denis - 12h15. Retornou à sala de aula para ver os ponteiros girarem sem saírem do lugar. E os professores, falando, fazerem o mesmo. Desfrutou do friozinho na barriga que não sentia há muito tempo. Não sentia, de fato, há muito tempo. Mas logo, assim que o relógio terminasse a última volta, mudaria isso de novo. O sinal soou avisando o fim das aulas e o início da correria do meio-dia. Os portões alaranjados vomitando infantes corredores nas calçadas, ruas, sinais, entre os carros parados em fila dupla de mães esperando os filhos que estavam recebendo alguma educação.
Saiu a passos rápidos. Seguiu pelas calçadas arborizadas com os cabelos achocolatados ao vento, a pele clara esquentando ao sol. Chegou ao estúdio às 12h13 e entrou rapidamente pela porta de vidro sob o letreiro preto e prata. As paredes brancas decoradas com certificados e fotos de corpos tatuados. Por trás de uma cortina saiu o homem sorridente em camisa sem manga e braços decorados.
— Oi, Mica! Quanto tempo! Bem no horário.
— Oi, Denis. Ainda lembra de mim? — perguntou sorrindo.
— Faz um tempo mas, dos meus clientes todos, de você eu não ia esquecer. —respondeu dividindo uma risada com ela.
— Ah, Denis, se todo mundo fosse igual não ia ter graça.
— O mesmo de sempre, então?
— Isso aí. Pode ser aqui na coxa, do lado de fora. — Ela disse, sentando na maca e levantando a saia que escondia a pela clara da perna jovem.
— Trouxe algum desenho de referência?
— Não, não. Hoje você pode ficar à vontade. Vou deixar o artista criar.
O tatuador ajustou as agulhas esterilizadas, já de luvas brancas, a máscara cobrindo a boca. Mesmo assim, pôde vê-lo sorrir com olhos quando disse “tem certeza que dessa vez não vai querer mesmo que eu use as tintas?” Ela sorriu de volta:
— Pode pôr esses potinhos pra lá! Você devia ficar feliz, ao menos economiza no material. Devia me fazer um desconto, isso sim!
Ele deu uma gargalhada e o zumbido da agulha soou metálico no estúdio. Ela franziu a testa aguardando a primeira estocada, prevendo a dor à qual nunca se acostumava.
A agulha se aproximou da pele macia. Se fosse possível observar de perto, seria possível ver o aço brilhante e delgado se aproximando veloz. Antes do toque, os mínimos pelos da coxa se eriçando, levantando guarda contra a lança tatuadora. Um arrepio percorreria a perna, galgando as costas, até erguer os cabelos da nuca. Só então a agulha tocaria a pele, que se curvaria para dentro oferecendo uma breve resistência que, logo após, cederia, rompendo-se e dando acesso à carne tenra escondida pela brancura. A agulha retornaria pelo mesmo caminho, batendo em retirada do orifício criado, deixando escapar em seu encalce um gota vermelha. Única tinta que mancharia a pela clara. Só aí um impulso percorreria a coxa que se contrairia, o sangue irrigando rápido, sob a pele, os vasos da região enquanto a agulha voltava a cargas por vezes e vezes seguidas, guiadas pelas mãos hábeis do tatuador. Tudo muito rápido. Valiosas frações de segundo.
O artista parava volta e meia para limpar uma área ou outra que estivesse sangrando, para deixar a cliente tomar um ar ou uma água, ou para fazer uma piadinha qualquer. Ela apreciava o momento. Observava de perto o trabalho quando conseguia, admirava o trocar de tom da perna. Via o desenho brotar-lhe pelos poros. Mordia o lábio quando a agulha tocava alguma área mais sensível, se segurava contorcendo-se de riso e dor. Xingou o tatuador duas vezes. Durante todo o trabalho tinha um espelho grande ao lado da maca para poder acompanhar o procedimento. Sem o uso de tintas, o trabalho foi rápido. Em duas horas havia terminado.
Levantou-se segurando a saia e olhou-se no espelho. Havia surgido algo sobre a pele imaculada, alva e sem manchas. Ainda um pouco inchado e manchado pelo pouco de sangue, mas bonito ainda assim. Sim, bonito. E ela sentira cada pequeno ponto. Cada linha, cada nuance. Em breve, invisível para os demais. Depois de um tempo, invisível mesmo para ela. Mas quando desaparecesse por completo dos olhos, ela sempre poderia retornar mais uma vez ao estúdio, se quisesse. Ela sentiria quando a hora chegasse outra vez.
terça-feira, 14 de abril de 2009
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5 comentários:
cara, nunca tinha passado pela minha cabeça que alguém pudesse fazer uma tatuagem invisível! sensacional! dá de ver bem o perfil da personagem no meio da história.
Outch! Tatuar a vida e ainda assim ter a pele limpa.
Cara, jah comentei no teu blog antes de ler ela aqui. Mas é aquilo lah, achei muito louca personagem, as piras dela em poder se tatuar sempre e sempre, nunca eternizando em forma de tinta nada do que foi pintado.
E a outra coisa que chamou a atenção foi a adjetivação exagerada. Até enjoa, irrita, atrapalha, de tantos adjetivos usados.
opa, já vi lá e recomentei tb.
Adjetivos rules!!! :D
Ótimo texto, Rodrigo em boa forma.
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