16/fev/2008
Era difícil descrever a cena, mas ela acontecia todo dia. Ele chegava, vestia-se com o uniforme do cassino. Aqueles seres abonados o irritavam só por existir. Pessoas com o dom de mentir, simular, fingir, ignorar e esnobar. Ele os detestava. Ele os abominava. Ele os admirava. Uma relação dicotômica e antagônica, de certa forma. O jeito como olhavam para ele já era o suficiente para fazê-lo perder a cabeça, mas não podia. Ele era empregado e estava lá para comandar o jogo, não para dar palpite.
O que “os grandes” - como ele costumava denominar – não sabiam era que ele os analisava durante o dia também. E, talvez por isso, sabia exatamente porque eles eram vencedores e como eles se tornavam “os grandes”. Eles eram personagens também durante o dia. Personagens muito menos previsíveis do que à mesa do cassino, mas mesmo assim seguiam algum roteiro.
Ele os seguia com câmera em punho e a teleobjetiva era sua paixão. Podia fotografá-los e estudá-los minuciosamente, sem dar pistas. Não precisava nem sequer chegar perto quando fora do cassino. A proximidade na hora do jogo era suficiente para conhecer os cheiros e as vozes dos seus tão odiados ídolos. Definitivamente, ele não gostava de jogadores. No começo, aprendia a arte da dissimulação para não deixar transparecer seu ódio por aqueles que lhe garantiam o emprego, mas depois tornou-se obsessivo.
Não podia fazer nada contra “os grandes”, pois eram seus tutores, mesmo sem saber. Mas os perdedores. Ah! Os perdedores! Losers! Sofredores! Viciados! Desgraçados! Não aprendiam, mesmo depois de anos perdendo dinheiro naquelas mesas. Ele cansara de ver aquelas pessoas. Pessoas que esnobavam sem mérito. Os perdedores, que o aviltavam muito mais intensamente do que “os grandes”.
Decidira estudar os perdedores também, e começou a chamá-los de “os tristes”. É muito mais fácil estudar um grupo quando se dá um nome. Seguia-os à noite, após o expediente. Sentia-se preparado, não precisava mais aprender muito com “os grandes”, agora era hora de criar um estilo próprio. Era hora de criar seu próprio personagem.
Decidira, então, comprar um baralho. Era o primeiro passo para iniciar sua nova vida. Carregava-o consigo sempre até começar a usá-lo. A primeira vez foi um pouco difícil, mas ele estava preparado, definitivamente. Pegou seu carro após o expediente e seguiu um jovem “filhinho de papai”, que perdera todo seu dinheiro no cassino àquela noite. Não era difícil seguir uma caminhonete imponente como a que o jovem dirigia, então, foi um trabalho fácil. Esperou que as luzes da casa se apagassem e entrou. Não deixou nem que o “triste” acordasse, simplesmente atirou, colocando um Valete de Ouros em sua boca.
Um senhor de cerca de cinqüenta anos era a próxima vítima. O assassinato com a pista do Rei de Espadas intrigava a polícia, mas ele percebera que estava com o foco errado. Aquelas pessoas não eram reis, damas e valetes, eram apenas perdedores, que não mereciam sua atenção. Parou de atirar para analisar os jogos durante mais alguns meses, procurando o verdadeiro Ás que ele queria se tornar. Ninguém poderia ser um Ás enquanto ele fosse crupiê naquele cassino.
Um comentário:
Muito bom, um serial killer dentro de um cassino. Ele tem o motivo, tem estilo e tem a doença que todo serial killer tem. Grande texto, grande personagem! Pena não dar para dar a ele todo o espaço que merecia, num conto de internet.
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