domingo, 16 de novembro de 2008

Filosofia da composição, o retorno

16/11/08

Precisamente cento e cinquenta e três anos depois de Poe, chegou a minha hora de filosofar sobre a composição. Não que a situação seja a mesma: Poe, um desgraçado pouco relevante, chupava os ossos de uma de suas raras obras de sucesso em vida. Ou, se você for ingênuo o bastante, pode achar que ele realmente ansiava por um tour de force literário ao descrever a gênese do mais conhecido dos corvos. No meu caso, é obrigação. Ah, esses projetos com temas e prazos, literatura programada, ou "incentivo à criatividade", como quiser. Felizes aqueles que não precisam pensar em um domingo preguiçoso de céu encoberto e ressaca (esta não exatamente no mar). Mas, quando outros têm que passar pela mesma situação, o seu tormento cria uma obrigação moral para obedecer às regras. "Nós nos ferramos, então você tem que se ferrar também". Ê, laia, essa vida...

E agora, como proceder? O que diabos escrever? Estou no meio de campo, o estádio inteiro aguarda pelo pontapé inicial. Onde está aquele parceiro de time que sempre fica ao lado nesse momento? Imaginem o constrangimento de um jogador de futebol solitário no meio do círculo central, todos os olhos esperando ansiosamente pelo toque na bola. Metade lhe babando os ovos como filho de deus e metade lhe elogiando como filho da puta.

E, ainda por cima, querem que seja de um jeito criativo... "Criativo" é uma palavra um tanto quanto subjetiva, não? Criativo significa diferente, inusitado? Bem, o "Cabum" foi uma obra bem criativa, nesse sentido. "Escalafobécia" não fica muito atrás. E o que dizer de "A mão que segura o cutelo", escrita em 20 minutos e campeã da rodada? Realmente, leitores e duelistas não primam pelo bom gosto, às vezes...

Pense, pense, Félix... Você só precisa da idéia inicial, o primeiro impulso. Geralmente é assim. Uma cena, Sim, geralmente é uma cena. Um flash cinematográfico obscuro e nebuloso, inteiramente dependente da imagem, mas que de alguma forma precisa ser traduzido em palavras. Nunca dá muito certo, mas ainda assim os outros parecem gostar. Às vezes. "For me, gás!" não foi uma sequência elogiada. Mas, normalmente, estas nunca são, com exceção do Indiana Jones e de um príncipe perdido numa cabana por aí. Isso acaba de me lembrar que o subtítulo deste texto é "O Retorno". Pai do céu, já estou até imaginando Poe vestido de Rambo... Não, não é o tipo de cena que me inspira.Mmas poderia render uma comediazinha psicodélica qualquer hora dessas. Vou anotar no arquivo de "Idéias para textos". Um parágrafo basta para lembrar no futuro. Salvar, pronto. De volta ao tempo atual.

Eu poderia fazer um meta-texto. Daquele em que eu finjo descrever o ato de sentar diante do computador e iniciar uma obra. Um texto escrito sobre escrita de textos. Não tenho a menor dúvida de que alguém vai usar esse artifício. É o mais fácil, o mais manjado. Já fiz isso, o resultado foi um matacão de várias páginas filosofando sobre a morte. Não a coisa mais adequada para esta rodada, tampouco algo que reflita tão fielmente as minhas atuais filosofias de vida.

Filosofias de vida, essa é outra abordagem interessante. Uma idéia pode gerar um texto. Será que eu consigo agora? Vejamos, rápido brainstorm filosófico com os perrengues teóricos mais atuais desta cabecinha de merda. Ambientalismo... não. Política internacional e relações de poder... não. Egoísmo e egocentrismo... não. Baralhos de Magic... não. Tricolor paulista tricampeão... não. É, acho que não será por aí.

Frases de efeito e emoções, minha última salvação. Uma frase de efeito pode gerar um texto inteiro. Muitas e muitas poesias nascem assim, até contos. Mas geralmente a frase vem associada com uma cena. Sem cena, sem frase. Sem frase, sem cena. Ovo, a galinha manda lembranças. Por sinal, o ovo sensu stricto veio antes. E o ovo da galinha, obviamente, depois da galinha, se você definir "ovo de galinha" como "aquele colocado por uma galinha". Se você definir como "aquele que gera uma galinha", é ainda mais óbvio que ele veio antes. E se você pensar que o ovo é a galinha, a partir do seu momento de concepção... o mundo colapsa em um buraco negro xde lógica, de fazer inveja ao LHC.

Filosofia do ovo de galinha, veja onde vamos parar se dependermos de cenas, frases e filosofias, no momento.

E as emoções? Hum, pode haver alguma coisa aí... Seja naquela leve exultação após um grande dia, nos delírios fantasiosos das paixões platônicas ou na melancolia bêbada do fim de uma noite na qual se esperava mais, as emoções originaram muita coisa. De escarros poéticos paridos com letra ininteligível em papel a sessões sádicas esculachando furiosamente o teclado. Quando vai existir um sistema corriqueiro e funcional de escrita por voz? Os dedos são tão lerdos de vez em quando. Mesmo para quem cata milho à velocidade da luz, de um modo que já fez várias e várias pessoas arregalarem os olhos diante das metralhadas.

Alô, coração, esta palavra bonitinha que usamos quando queremos nos referir a uma parte do cérebro, há alguma coisa aí dentro? ECO... ECo... Eco... eco... ec... e... É, estamos meio vazios ultimamente, fechados para balanço. Nem a depressão tem sido doce ultimamente, mais tediosamente cinza do que preta e branca. Ah, as onomatopéias...

Mas estou vendo uma faisquinha lá no fundo... Um cintilar de brasas onde já houve uma fogueira devoradora. O suficiente para agarrar e não deixar escapar. Aqui está a minha idéia! Muito conveniente, já que é um pedaço bem representativo do meu universo literário. Aliás, do universo artístico em si. Noventa por cento de tudo o que já foi composto ou escrito deveria se referir a isso. É comum. É belo. É universal. É banal... A maravilha da arte é processar uma pequena brasa em um incêndio digno do cerrado em época de seca. Uma pequena atração, um olhar a mais, um meio sorriso disfarçado... e pronto, lá se vai metade do Parque Nacional das Emas, coitadas.

Afinal, para que um chuvisco quando se pode ter um temporal? Ninguém liga para uma pingadela morosa no telhado, mas uma tempestade retumbante agita até as mais gélidas almas. Por que falar de atração quando se pode falar de paixão? Por que se gabar de uma conquista passageira quando se pode discursar sobre um amor além da vida? A literatura permite o exagero. Permite a catástrofe. Permite que um corno chorão se torne um ultra-romântico atormentado. É possível ter inúmeras vidas, e terminá-las dos mais criativos meios, desde que choque, emocione, chame a atenção. Poucos são os idiotas que cortam os pulsos hoje em dia, penso eu. Deve doer pra caralho antes de matar. Mas não há meio mais belo de misturar a agonia do corpo físico com o alívio espiritual pelo lento esmorecer de uma negra existência...

Um homem. Uma mulher (ou mais de uma?). Os atores se encontram em um fundo branco. Este vazio precisa ser preenchido. O palco é fundamental. Tenho uma atração irresistível por lugares e tempos fora do usual, que por si só já evocam uma vasta gama de sensações, sem que o escritor precise sequer se esforçar a respeito. Mas também há uma beleza sórdida em escrever sobre o bizarro em um fundo cotidiano. Nos faz pensar em tudo o que existe por trás das histórias que ouvimos desatentamente nos noticiários. Ele escreveu uma carta, se jogou do prédio e virou patê na rua. Mas o que se passava em sua cabeça, quais foram as sensações que tentaram ser transpostas em frases, a imagem de quem dançou em seus olhos um segundo antes de beijar o cimento? Ela o matou e foi presa. Qual a sua reação quando viu aquele bilhete amassado no fundo da pasta, revelando a traição, e quais foram as palavras que trocaram antes do golpe fatal? "Olá, querida, desculpe pelo atraso, tive uma reunião importante?". "Tudo bem, amor". Pimba, rolo de macarrão na nuca. Sim, o seu ex-vizinho presidiário pode ser apenas um poeta ultra-romântico que fugiu das páginas de papel.

Por tudo isso o palco é fundamental. Geralmente não é o fim da trama, apenas um meio. Mas ninguém toma Nescau sem leite, certo? Comparação nada poética, por sinal... Comparações são essenciais. As analogias são uma ferramenta tão útil quanto seu potencial para serem bregas. "O olhar dela é como o cintilar de"... alguma coisa brilhante sobre uma superfície reflexiva, óbvio. E tome blábláblá. Triste. Mas de que outro modo explicar o inexplicável? A escrita, infelizmente, é um meio medíocre de expressar emoções. Como fazê-lo? Eu posso inserir frases de efeito, aquelas que fazem o leitor quebrar a continuidade apenas para lê-las de novo. Eu posso sentar o dedo no teclado e abusar de !!!!!!!! e ?????? e !?!?!?!?!, sendo acusado de criar uma festa de exclamações. Posso usar inteligentemente as formatações, particularmente o ultra-versátil itálico e o poderoso negrito, com todas as suas conotações Posso até usar nosso novíssimo condicionamento internético e DETONAR NAS MAIÚSCULAS. Certamente, não há modo melhor de exprimir RAIVA e ÓDIO na escrita. Imprecações são um ótimo recurso, mesmo que sejam suaves "maldições!". Mas o que realmente o leitor não espera é de ver um narrador poético e romântico dizer que ELE AMAVA AQUELA VACA, PORRA!!!!! Afinal, poetinhas atormentados não deveriam falar palavrões, apenas ficar se masturbando em meio a palavras obscuras, certo? Mas, embora eu goste de ficar ébrio, às vezes dá vontade de apenas encher a cara...

No fim, a frase é sempre um troço frio que nada mais exibe do que traços residuais de emoção. É um cadáver, nada mais. Essa comparação foi melhor. Por isso a música toca tão mais profundamente na alma, não há como não se emocionar com um bom vocalista. E o cinema une imagem ao som e verso, tendo o potencial para estar no topo da pirâmide artística. Pena que é deixado a cargo de mentes condicionadas a padrões restritos e lucro fácil.

Já tenho os atores, já tenho o palco, agora é só encher linguiça em busca do final. O final é a parte mais importante da obra. É o nosso último elo com aquela obra, o fim do nosso relacionamento com o texto. Dele depende a impressão final que teremos de tudo aquilo. Um texto primoroso com um final tosco é como uma trepada que não termina em orgasmo. É legal, sim. É comum e bom do mesmo modo, dirão principalmente algumas moças. Mas sempre fica uma sensação de "poderia ser melhor". Já no caso inverso, de um texto meia boca com um final bombástico... Bem, ao menos foi uma gozada, não é? Um bom final pode ter vários climas. Uma bomba inesperada, "afinal, foi a primeira vez que ela tinha matado". Ponto final, leitor, pense o que quiser. Ou uma breve descrição pós-climáxica, em que o escritor obriga o leitor a ficar mastigando por algum tempo as idéias e sensações que ele quis transmitir no seu climáx. Os últimos crocitares do corvo cortaram seu coração de modo indescritível, conviva com isso, pois ele não deixará sua janela nunca mais. Nunca mais...

Certo, então os elementos finais já estão montados, está ficando uma história interessante. Tema usual, roupagem um pouco distinta, dá para o gasto para uma rodada de Duelo...

Mas, ei, pera aí.

O tema não era "escreva uma história de amor".

(os espaços são um recurso excelente para criar tensão no final)

(sim, é bem legal)

(o recurso, não o final)

Era para escrever sobre escrita.

Mas bah, que merda. Esqueci ali pela metade.

Ok, esse romance vai ter que ficar para outra hora. Foi mal, pessoal!

Suspeito que esta foi uma foda sem gozada...



***

A título de curiosidade, a Filosofia da Composição de Poe pode ser encontrada aqui.

7 comentários:

Anônimo disse...

no máximo uma masturbação mental, félix...

JLM disse...

Boa boa

é uma crônica? Humm, gostei.

é um meta-texto? Humm, de novo.

é um recurso criativamente desesperado? Humm, mais ainda.

Garanto q foi bom pra todos os do lado de cá do texto. Não encare isso sexualmente, kkk.

1 abraço.

Ah, *clímax*

Rodrigo Oliveira disse...

No início achei q fosse outra bagaceira de ressaca do Félix. Mas não é q me surpreendi? Acho q o texto precisaria sim de uma lipo, mas tem mta coisa bacana aí. Várias técnicas, boas referências, passagens interessantes. Até achei q tinha faltado tb o lance de "uma maneira original" mas esse apareceu bem no conteúdo, compensando a forma. Interessante é.

Thiago Floriano disse...

concordo com o comentário do rodrigo... acho que dá pra dar uma limpada nisso aí... tem umas loucuras interessantes e um bom ritmo... PS: mais um texto de ressaca, por félix rosumek! ahhaahha... abraço

Félix disse...

eu também concordo com os comentários do rodrigo e do thiago. o texto ficou uma mistureba, é uma vitamina com algumas boas frutas e outras que só fazem volume. será melhor trabalhado, pode deixar.

peço desculpas ao pessoal por estar num período ocupado e não poder lapidar as coisas como deveria nos últimos textos, mas irá melhorar! eu acho...

gostei do comentário do thiago! até já antevejo uma coletânia no futuro: "contos e ensaios de ressaca", por f. b. rosumek. hahahah!

Vivi disse...

Um texto sem censor! Oba! Em certos casos, como o do presente texto, eu adoro quando deixam o editor de fora. Pura diversão!

Julie de Pádua disse...

Achei chato no começo, mas alguma coisa me prendia a esse texto... e dentre os outros, esse é o melhor.