quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A Ilusão

26/12/06

- A cidade está embaixo da água!

- Sim. E daí?

- Como assim "e daí"? Você ouviu o que falei? Enchente, caos, como não havia há mais de uma década!

- E como certamente haverá daqui a mais uma. E daí?

Olhei para ele, transtornado.

- Mas o desastre é agora! As pessoas não querem saber se essa é apenas mais uma enchente e se haverão outras. Elas estão desabrigadas, com frio, com sede, e isso é agora!

Ele suspirou com expressão entediada e tomou um gole da cerveja.

- Esse é o problema.

- O que, as pessoas??

- Também. Mas eu estava me referindo ao seu "aqui, agora". As pessoas querem salvar seu rabo neste instante e, para isso, vão fazer com que o presente seja o momento mais dramático da História. Olhe nas notícias, está todo mundo reclamando, se fazendo de coitado, do caminhoneiro parado na estrada bloqueada à tiazona que perdeu seu portão elétrico.

Acendeu um cigarro.

- E isso é merda. É só mais um grupo de macacos com medo de água.

- Meu Deus, como você pode pensar assim? Não são macacos, são pessoas, são vidas!

- E macacos não são vivos? - respondeu com um sorriso e uma baforada - Ninguém é vítima inocente nessa história. Despelaram o solo e cobriram-no com concreto, agora estão pagando pelas suas escolhas.

- Cem pessoas já morreram, entendeu? Soterradas. Afogadas. Pense no sofrimento que cada uma delas teve ao passar por uma morte horrível destas!

- Coitadinhas, prenderei a respiração durante dez segundos em respeito.

Fiquei paralisado com a resposta absurda. Eu não conseguia lidar com aquilo. A sua falta de compaixão era inaceitável. Não consegui responder, apenas olhar para ele, desolado.
Ele fez uma expressão de desgosto e se ajeitou na cadeira.

- Não me entenda mal. Eu imagino que morrer sem ar seja uma das coisas mais dolorosas do mundo, seja com os pulmões cheios de água ou terra. E sei muito bem que essas mortes afetam muito mais do que cem pessoas. Cada uma tinha uma família. Amigos. Dezenas serão afetados por cada morte, quem sabe centenas, se formos bem otimistas. Teremos alguns milhares de sofredores, se juntarmos todas as mortes. Isso estimando generosamente, pois certamente alguns desses eram medíocres odiáveis.

Parei diante dele e o olhei profundamente nos olhos, tentando articular pausadamente as frases, ver se despertava alguma coisa naquele coração gélido.

- Milhares de pessoas. Sofrendo. E apenas por conta das mortes. Dezenas de milhares, desabrigadas. Perdendo tudo. Pense nisso, por favor.

- Sim, eu pensei.

Ele me encarou de volta, a centímetros do meu rosto.

- E isso é merda.

Balancei a cabeça e sentei num canto, desolado.

- Pode deixar que restarão bastante pessoas no mundo para morrerem ainda, e você poderá continuar correndo em círculos balançando os braços e chorando.

Eu realmente estava com os olhos marejados momento.

- Um idiota correndo em círculos... É essa a visão que você tem de mim?

- Na verdade, sim.

Uma lágrima nasceu. Mas ele continuou.


- Pois no que você está sendo diferente de mim, também aqui parado?

- Eu sinto. Eu sofro. Eu tento ajudar! É assim que as pessoas são. Elas não odeiam umas às outras e a todo o resto. O sofrimento dos outros também nos atinge!

- Você sente. Isso não reconstrói nenhuma casa. Você sofre. Isso não faz nenhum morto ficar de pé. Você tenta ajudar, quem? O seu vizinho, o seu parente, o seu amigo, talvez o dono do mercado da esquina...

- E o que você faz para aqueles que não conhece? Você os vê na TV e derrama uma lágrima idiota como essa? Muito útil de sua parte. Você doa um casaco que não mais usa e que está mofando no seu armário, sob três camadas de roupas velhas? Ótimo, muito caridoso. Mas você tiraria agora o casaco, se estivesse usando um, para esquentar aquele desabrigado?

- Sim, eu faria isso, se o outro estivesse precisando mais do que eu!

- Não, você não faria, e é melhor ficar calado se é para ser hipócrita. Você não abriria a sua casa para abrigar cinco famílias desabrigadas por todo o tempo necessário para elas reconstruírem a sua.

- Mas isso é diferente...

- Não. Nenhuma diferença. Você ajuda no limite da sua conveniência. Se começa a ser inconveniente, você passa a encarar o fato de que, ei, alguns se dão bem, outros se dão mal, fazer o que. Eu também não teria nenhuma reserva em emprestar o isqueiro a um coitado que passasse agora por aqui. Mas, se ele me pedisse um cigarro, é outra história.

- No fundo, tudo o que você faz é ter uma sincera ilusão de que se sentir mal é algo que faz alguma diferença para os outros. Essa é a única diferença entre eu e você. Eu simplesmente não tenho essa ilusão. E lembre-se: aqui não temos expectadores. Você não precisa fazer nenhuma peça de teatro para convencer os outros de que seu altruísmo existe.

Mais uma cerveja aberta.

- Afinal, quem se importa com alguns barracos de pobre soterrados?..

Era incrível o modo como ele achava que a sua estupidez valia para todos. Ele falava a partir de um ponto de vista frio, cruel, desumano, e achava que todos eram assim? Meu Deus, o que pode ter ocorrido para ele ter se tornado aquilo?

- Você fala isso por que está aí, seco, confortável -falei, com raiva - É muito fácil para você dar uma de irônico, querendo aparecer com esse desprezo fútil. Tudo porque você nunca passou por uma situação tão desesperadora...

- Ha! - foi a sua alta e seca risada - e você, já?

Ele passou a cuspir rapidamente as frases.

- Melhor ainda, e isso faria alguma diferença?

- Se eu tivesse sofrido, o sofrimento dos outros seria maior?

- Se minha família tivesse morrido soterrada, isso aumentaria o número de mortos em mais que três?

- E, se eu mesmo tivesse morrido, isso faria sobrarem menos do que seis bilhões neste pedaço de rocha girando de nada a lugar algum num universo sem fim?

Silêncio, tão pesado quanto o céu que nos cobria.

- Aonde você quer chegar com isso? - perguntei, após uma longa pausa.

- A História, humanidade, a vida... Tudo isso é muito maior do que cada um de nós, e vai sobreviver a cada um de nós. Aonde eu quero chegar? Em lugar algum. E esse é outro problema. Existem tolos como você que acham há algum lugar para chegar.

Esvaziou o resto da cerveja, já quente.

- Esqueça os idealismos bonitinhos e fantasias literárias. Não perca tempo se preocupando com o universo.

A derradeira baforada do cigarro.

- O universo não se preocupa com você.

Ele se levantou e saiu. Afastou-se sem pressa, sob as pesadas nuvens do céu sem cores. Ele não havia vencido fácil desta vez. Eu fiquei ainda ali, me perguntando se deveria segui-lo. Mas, desta vez, alguma coisa me obrigava a ficar. Eu não saberia dizer o que, pois, se soubesse, teria falado a ele. Talvez houvesse, no fim das contas, algo mais do que a sua cínica visão poderia enxergar. Ou, quem sabe, era só porque havia um último cigarro, e uma cerveja. Abri, acendi e refleti, enquanto observava aquele eu caminhando lentamente sobre o solo estéril do deserto morto.

***

Esta história é, de certa forma, uma continuação desta.

9 comentários:

Sílvia Mendes disse...

Eu também tive (tenho) esse conflito de idéias, em relação aos "desastres" naturais e afins. Tem horas que penso que a natureza está apenas cobrando o que é dela, já que ultrapassamos vários limites que não são nossos. E outra: morre muito mais gente na África devido à guerra civil e à própria miséria todos os dias do que essas cem que morreram aqui. Mas daí eu penso também numa frase, não sei de quem é, que diz que "o sofrimento de uma nação nunca será maior que o sofrimento de um indivíduo", ou coisa parecida.
No final acabo não sabendo o que pensar.

Curti muito o texto.

Thiago Floriano disse...

Muito bom. Um pouco da tua reflexão sobre o que seria o cinismo foi parar no texto e isso é muito bom. Infelizmente essa rodada acabou sendo pautada pela desgraça que aconteceu na nossa região, né? Provavelmente todos tivemos dificuldades de parar pra escrever e tudo mais.

JLM disse...

Muito bom o seu texto, mesclou atualidades e filosofia com uma grande naturalidade.

Mas estou para apostar q vc gosta de assistir House M.D., acertei?

Ah, só um detalhe técnico a ser corrigido. No trecho

"- Não. Nenhuma diferença. Você ajuda no limite da sua conveniência. Se começa a ser inconveniente, você passa a encarar o fato de que, ei, alguns se dão bem, outros se dão mal, fazer o que. Eu também não teria nenhuma reserva em emprestar o isqueiro a um coitado que passasse agora por aqui. Mas, se ele me pedisse um cigarro, é outra história.

- No fundo, tudo o que você faz é ter uma sincera ilusão de que se sentir mal é algo que faz alguma diferença para os outros. Essa é a única diferença entre eu e você. Eu simplesmente não tenho essa ilusão. E lembre-se: aqui não temos expectadores. Você não precisa fazer nenhuma peça de teatro para convencer os outros de que seu altruísmo existe."


você continua a fala do mesmo personagem em outro parágrafo, oq acaba confundindo, pois o leitor pode pensar q o diálogo continuou com o interlocutor falando, qdo não é o caso aqui. A solução para o problema geralmente é juntar os dois parágrafos ou colocar paráfrafos conectores entre os dois, como vc fez acertadamente em outras partes do texto.

1 abraço

Félix disse...

JLM: não assisto house, mas, pelo pouco que conheço, acredito que gostaria.

quanto ao detalhe técnico, eu concordo cintogo, na verdade. em alguns momentos eu quis separar os parágrafos (fosse por tamanho ou para dar um destaque para uma frase final), mas o uso intenso de conectores me incomoda também. tentei deixar de lado alguns, quando eu achava que não ia gerar confusão. pelo visto, não funcionou tanto! :)

Rodrigo Oliveira disse...

mto bom. ao melhor estilo félix. tem uns detalhezinhos de estilo q já foram falados, mas tá mto bacana. boas reflexões.

Flavia disse...

Gostei!

Logo no início do texto sabia que era seu. Boas reflexões, biológicas e filosóficas.

Vivi disse...

Decididamente você não segue a cartilha convencional das idéias e fórmulas. E eu gosto dessa auto-permissão de colocar-se a prova.

Òtima construção desse aspecto natureza do cínico: Indiferente ao ritmo corrente da vida.Ficou nítido o quanto o personagem basta-se a si mesmo.


Gostei!!!

Anônimo disse...

olá,
Hoje estou em conflito de idéias, estou travando comigo mesma o mesmo bate-papo.
Por isso te peço, posso publicar o seu texto no meu blog? Obviamente, citando sua autoria.

Lori disse...

Otimo texto, muito bem escrito, fiquei abobada con a diferença de idéias e a realidade. Parabéns....bjus Elis