sábado, 1 de novembro de 2008

Bodas de papel

O vendedor viu o homem entrando na loja e saiu voando para atendê-lo. Enquanto o cliente olhava a vitrine de jóias, o vendedor pousou suavemente ao seu lado.

- Posso ajudar?

- Procuro por um colar relicário. Vocês têm?

- Temos sim. Me acompanhe, por favor. É para presente?

- Sim, é o meu primeiro aniversário de casamento. Sou novo nessas coisas de presentes. Penso que se escolher algo que não esteja à altura da afeição que tenho pela minha esposa, ela ficará menos feliz do que desejo. E não existe ninguém no mundo que eu queira agradar mais.

- O senhor é romântico e parece gostar muito da sua esposa. Como ela se chama?

- Valéria.

- Então me conte como vocês se conheceram enquanto escolhemos o melhor relicário.

- Só se eu resumir, ok? Pois é uma longa história. Eu sou apaixonado por ela desde o colegial. Nós estudamos juntos durante três anos e eu sempre gostei dela, mas não tinha coragem de contar. Eu era o esquisito da turma, sabe? Caladão e sem jeito com as mulheres. E a Valéria era a garota mais badalada, não só da sala, mas do colégio. Era extrovertida e gostava de organizar festas. Ela era radiante! Só quem a conhece para saber o verdadeiro significado da palavra beleza. Eu, contudo, como você está vendo, nunca fui grande coisa, e por isso vivia em casa, na frente do computador.

- Entendi, vocês eram de tribos diferentes. Mas como ela se interessou pelo senhor?

- Bem, eu sempre fui um cara que aprecia muito a leitura. Você gosta de ler?

- Er... um pouco, só não leio mais por falta de tempo. O último livro que li foi O Segredo.

- Então vou contar outro segredo: quem lê muito e considera a leitura um prazer, como eu, não fica muito tempo sem virar escritor. É inevitável, uma coisa puxa a outra. Primeiro, comecei escrevendo contos e poemas em blogues da internet. Depois fiz resenhas de livros e crônicas nos jornais da minha cidade. Participei até de Duelos de Escritores, acredita? E isso me ajudou bastante. À medida que fui entendendo e aplicando as técnicas de escrita que aprendia, os meus textos melhoraram e granjeei leitores assíduos. Em pouco tempo o pseudônimo, ou apelido, com o qual assinava os textos ficou bastante conhecido. Porém, escrever me isolava dos outros. Vivia trancado no quarto, publicando textos e trocando emails. O mais próximo que eu conhecia como namorada era o email girlXX@camanducaia.com! Eu também não freqüentava festas e não tinha contato extra-classe com os colegas. Mas eu era feliz, e ingênuo, na minha solidão, até o dia em que vi a Valéria. Ela me coloriu a minha vida. Se fosse possível a sensualidade e a pureza habitarem juntas o mesmo ser, seria nela. Valéria passou a ser a musa dos meus poemas de amor e de sofrimento, porque naquela época, ela estava namorando.

- Parece que você tinha um problemão.

- Sim. E eu morria sempre que o namorado ia buscá-la no fim da aula. Cada beijo que eles trocavam era um elefante pisando em meu coração. Mas ele não valorizava a jóia rara que tinha. Certo dia, ouvi que eles haviam terminado. O cafajeste a traíra com outra. Era a chance que eu precisava. Mas como conquistar alguém que eu sentia falta de ar só de pensar, quanto mais chegar perto, conversar, convidar para sair? Foi quando resolvi usar as minhas armas: eu decidi escrever.

- Já sei, o senhor escreveu uma carta romântica.

- Claro que não, eu não era tão audacioso. Até pensei nisso, mas temia a reação dela. Se ela não gostasse da minha atitude ou me interpretasse mal, poderia usar o que eu escrevi contra mim. Por isso, eu precisava que outros a influenciassem a gostar de mim. Então, escrevi um livro para ela.

- Um livro? Como assim?

- Eu escrevia capítulo por capítulo, todos dedicados a Valéria. Publiquei eles em um blogue usando o meu pseudônimo e, sem ninguém me ver, espalhei cópias nos murais do colégio, revelando que haveriam continuações no blogue. A personagem principal da trama se chamava Valéria e o narrador anônimo era apaixonado por ela.

- Que legal! E como a Valéria reagiu?

- Eu não percebi de imediato porque a história virou febre. Todos no colégio queriam saber quem era o admirador secreto. Os colegas comentavam tanto o texto que os professores passaram a usá-lo nas aulas. Valéria parecia indiferente no início, mas à medida que observava a reação dos colegas, dos professores, das amigas dela, notei que começou a gostar da brincadeira. O meu plano estava funcionando. O olhar dela passou a buscar quem a observava. Tive de tomar cuidado, e ela me pegou duas vezes olhando para ela. A minha sorte foi que todos olhavam para ela. Contudo, o problema começou quando um dos professores espalhou a notícia pela internet que a ficção acontecia paralela à vida real, com cidade, colégio e musa de verdade. Os fãs dos meus textos enlouqueceram. Alguns tentavam antes, em vão, descobrir a minha identidade, mas agora surgia uma pista concreta. Assim, proliferaram as teorias sobre a identidade do escritor. Revistas publicaram matérias como "Jovem Escritor Anônimo se Declara em Livro" e "O Romantismo Anônimo da Vida Real". Jornais, rádio e televisão entrevistavam Valéria, colegas, professores e escritores locais. Não faltou quem quisesse aparecer. As amigas de Valéria viraram correspondentes de blogues de fuxicos e literatura. Os capítulos que eu escrevia passaram a ser publicados em outras mídias e mais pessoas passaram a acompanhar a história. Mas isso era algo que eu não tinha previsto.

- Toda essa atenção te atrapalhou?

- Um pouco. Mas eu estava entusiasmado com a reação da Valéria. Ela tornou-se popular em toda a cidade. Aparecia em jornais e na tevê. Faltava aulas para dar entrevistas. Em uma que lembro, ela disse que desejava conhecer o autor da homenagem para agradecê-lo por tamanha admiração. Logo depois, choveram engraçadinhos, até de outros estados, confessando serem o escritor, mas foi imposto que deveriam provar se revelando no blogue do livro. Nem preciso dizer que falharam.

- E foi difícil escrever o livro?

- Eu tinha uma idéia quando comecei a escrevê-lo, mas enquanto as histórias real e fictícia avançavam e se entrelaçavam, tive que alterar algumas vezes o que tinha imaginado. Mas o livro ficou mais próximo da realidade. E eu pude declarar tudo o que sentia por Valéria, suspiro por suspiro. Filosofei sobre a vida, o amor e a solidão. Dediquei-lhe uma música, um poema e uma estrela. Enfim, fiz tudo o que pude, joguei com todas as cartas. A seqüência dos capítulos durou dois meses, até chegar a parte final. Valéria já tinha desconfiado de quase todos os rapazes do colégio. E eu precisava me revelar e não sabia como. Por isso, no penúltimo capítulo resolvi propor um concurso de escrita, em que todos os rapazes poderiam escrever finais para a história. Seria o duelo final em que o melhor cavalheiro conquistaria o coração da donzela. O diretor gostou da idéia e, patrocinado por jornais e empresários locais, promoveu o Primeiro Concurso de Escrita do colégio. Os concorrentes poderiam escrever sobre qualquer coisa, mas os que escrevessem sobre o último capítulo do romance concorreriam na categoria principal. Foram convidados professores e escritores de renome para serem os jurados. Eles analisariam não só o melhor final, mas o mais harmonioso com o livro.

- É claro que o senhor ganhou, não é?

- Não, eu não me inscrevi.

- Como não? Não era o que o senhor queria?

- No começo sim, mas depois de sugerir o concurso, refleti mais. As coisas estavam fora de controle. Eu não queria ganhar um concurso, ser famoso, dar entrevistas. Eu queria a Valéria. Mas precisava acabar com o que havia começado. No dia do resultado do concurso, o ginásio municipal estava cheio de repórteres, celebridades locais e populares. Fãs do escritor anônimo vieram de todas as partes. Era uma oportunidade única para ver e ser visto, mas eu me encontrava sentado sozinho, próximo à saída de emergência, quando, sem perceber, ouvi um oi do meu lado. Quase caí quando vi que era Valéria. Respondi engasgado, tentando disfarçar, e se ela percebeu o meu nervosismo, eu não percebi.

"Você se inscreveu no concurso?" – ela perguntou, com os olhos brilhantes fixos nos meus.

"Não", respondi, com o coração batendo mais alto que a minha voz.

"E por quê não? Você não gostaria de ser um dos meus pretendentes?"

"Gostaria, mas não deste jeito, com todos esses holofortes."

"E o que você faria, ao invés disso tudo? Lembre que você teria um adversário forte o suficiente para escrever o final de um livro dedicado à mim, em um concurso amplamente divulgado."

"Eu nunca poderia escrever um final sem saber como a história termina. Eu não poderia, por exemplo, dizer que a mocinha se apaixonou pelo mocinho, que eles viveram felizes para sempre, quando não sei nem se ele a conquistou. Por isso não me inscrevi. Eu estou cansado desse barulho todo e só quero ver como esta história vai terminar. Por mim, eu simplesmente levaria flores até a sua casa, junto com um poema, para só você ler, e depois te convidaria para sair."

"Eu poderia dar algumas sugestões para o seu final, se você fosse escrevê-lo."

"Sugestões? Como assim?"

"Por exemplo, você poderia escrever que a mocinha, de início, achava aquela história toda muito estranha, mas com o tempo, ela passou a gostar do admirador secreto. Ele conseguiu, usando as palavras que saíam do coração tocar a alma dela. Mas essa mocinha tinha um problema, o seu admirador permanecia secreto. Então, ela discretamente pediu ajuda aos fãs do escritor e aos professores do colégio, que se comoveram do sofrimento da mocinha apaixonada, e juntos elaboraram a lista dos candidatos mais prováveis. Analisaram perfis e provas de redação arquivadas na secretaria. Um a um, os candidatos foram descartados até sobrarem três ou quatro. Destes, só um era da sala da mocinha. Agora estava mais fácil, mas ela precisava ter certeza. Então, pediu ao diretor do colégio o histórico do tal aluno, o seu endereço e telefone. O diretor concedeu e foi gentil abonando as faltas dela quando ela foi à casa do aluno no horário de aula. A mãe do aluno, que já desconfiava do filho, porque mãe sempre sabe das coisas, foi calorosa com a mocinha. Conversou muito com ela e pode-se dizer que tornaram-se amigas. Ela deixou que a mocinha entrasse no quarto do filho, mexesse no computador dele e levasse alguns rascunhos retirados dos blocos de anotações. Essa mocinha, depois de convencida da identidade do seu admirador, resolveu deixar de ser apenas uma personagem para ser co-autora. Por isso, ela escreveu o final que ela queria para o livro, usando as anotações do amado, assinou o texto com o nome dele e inscreveu o texto no concurso."

- Puxa vida! – disse o vendedor de jóias – que história! E como era o final escrito por ela?

- Eu poderia dizer que o texto dela ganhou o concurso. Que revelou o autor e foi publicado como um livro de sucesso. Mas o ponto mais importante para mim, é que o livro termina com o admirador não mais secreto indo à casa dela, levando flores e um poema e a convidando para sair. E a resposta dela ao convite, só ele ouviu, e continua ouvindo até hoje.

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Jefferson Luiz Maleski, leitor de Anápolis (GO)

10 comentários:

JLM disse...

Desculpem pelo "jornal". É q me empolguei, hehe.

1 abraço.

Anônimo disse...

Vou só opinar, até porque esta semana quem vota, pelo que entendi são somente os colaboradores do blogue.
Queria dizer que gostei do texto (apesar de um pouco longo), mas ficou faltando o essêncial, o fim que concluia o início do texto...a escolha do presente do primeiro aniversário de casamento.
Qual foi o presente?

Paula

Anônimo disse...

Paula, todos podem votar! A partir do dia 6, quando todos os textos jah estiverem postados, você tbm pode votar e escolher o seu preferido =)

Anônimo disse...

obrigado Fábio, não sabia...

JLM disse...

O fim foi propositalmente abreviado por 2 motivos:

- É uma tática de escrita terminar a história antes dq o leitor imagina para surpreendê-lo. E como a ida à loja era só para justificar q o escritor narrasse a sua história a alguém, não julguei necessário terminá-la com uma conversa comum. Deixo para a imaginação do leitor escolher o melhor presente.

- O espaço do post já estava perto do limite imposto pelo blogger, e como uma das regras aqui é escrever tudo oq cabe em um post apenas, não quis arriscar. Repare q mesmo assim, o texto ficou longo.

1 abraço.

Anônimo disse...

De Paula para JLM
Eu gostei do texto, e achei a história linda, o que acho que aconteceu é que faltou sim o complemento final para ela ficar perfeita. Pode ser uma táctica de escrita, deixar o leitor divagar e ser ele próprio a escolher o final, mas o índício desse final deve ser dado, a meu ver, por quem escreve a história. Deixar uma pista para o leitor...e acabar a história assim, porque estava longa, não me pareceu bem...
Quando se escreve, temos como objectivo cativar o leitor e prênde-lo ao nosso texto. Conseguiste isso a meu ver. Eu fui lendo com entusiasmo, porque o encontro deles fois mágico e estava à espera de uma prenda mágica também, e quando cheguei ao fim fiquei desiludida...
Desculpa a minha sinceridade, mas foi o que eu senti...faltou o fim, mesmo que esse fosse dúbio...mesmo que deixasse o leitor na dúvida. Mas, nem na dúvida ficámos...

Paula

JLM disse...

Obrigado pelo comentário, Paula. Sua sugestão está anotada.

1 abraço.

Anônimo disse...

Uma bela estória. Daria (com certeza) uma película de comédia romântica. Sou suspeita por ser roteirista, o que não invalida o fato de o conto ser dos bons.
Eu tenho um final he-he-he. Acho que a Valéria tipo 'jogou na cara' dele por anos essa estória deles.
Mas viverão felizes para sempre, agora que se casaram, anos depois.
Gostei, gostei muito.

Anônimo disse...

Belíssimo! Uma emocionada e linda histporia de amor.

Rodrigo Oliveira disse...

tb gostei bastante desse seu texto. inclusive do final. só senti falta de um link com o gancho da compra. Eu sei q não é o foco, mas qdo vc trabalha a história dentro da história, era bom q mesmo a narrativa exterior tivesse ao menos uma indicação de final (ainda q não seja um fim propriamente dito). Só pra garantir q não fique nenhum ponto sem nó (mais motivos associados e menos motivos livres, diria um estruturalista). Enfim, de todo modo, um texto mto bom. parabéns.