sábado, 5 de setembro de 2009

Eles nunca entenderão

O céu começava a mudar de cor, trocando o branco e azul pelo vermelho e amarelo. Seguindo a trilha no meio da floresta, decidi que era hora de arrumar um abrigo para a noite. Afastei-me do caminho, me embrenhando na mata, seguindo o som de um riacho próximo. Ao encontrar o curso d'água, segui-o em busca de uma pequena porção de área aberta. Finalmente me deparei com uma curva no riacho, onde a ausência de algumas árvores formava uma pequena clareira.

Deixei cair a mochila e a lança das mãos, tirando também o arco e a seteira presos ao corpo. Parei por alguns minutos para ouvir o som da água corrente, o sussurro das folhas ao vento, as tímidas vozes dos pássaros que ainda cantavam. Eu me sentia muito mais disposto agora do que no dia anterior, quando tinha passado o tempo caminhando por áreas mais humanizadas em busca de informações. Agora, a energia de Maira fluía para meu corpo, trazendo consigo as mensagens das redondezas e de distantes regiões, que compartilhavam todas a mesma terra.

Mas antes de meditar com mais concentração, eu precisava cuidar da sobrevivência imediata. Na mochila, de pouco conteúdo, peguei uma pequena rede. Amarrei-a em pequenos arbustos à beira do riacho, deixando a deusa guiar alguns peixes incautos para o seu destino. Enquanto isso, me ocupei da tarefa de arranjar madeira e ramos para construir um abrigo e manter uma fogueira.

Quando o sol já abandonava a terra e apenas o débil reflexo da lua fornecia alguma luz, dei-me por satisfeito com a baixa cobertura de folhas. Chequei a rede, encontrando alguns pequenos infelizes que, junto com os frutos e cogumelos encontrados durante a busca, dariam uma refeição decente. Com as pederneiras, fiz um pequeno fogo para afastar o frio e assar os peixes. Enquanto a madeira crepitava e o cheiro de assado começava a atiçar meu estômago, tirei a última das posses que carregava na mochila: um pergaminho velho e um pequeno estojo com uma pena e alguma tinta. Adicionei uma curta nota aos registros das últimas semanas.

"Hoje saí de Ador, um vilarejo de pescadores na costa de Ludgrim, e obtive informações preciosas sobre os planos elementais. Devo ir à busca dos Irmãos Elementaristas no velho Lar Élfico, embora não espere um calorosa recepção de meus pares para um renegado. As informações de um grupo de aventureiros descendo de Saravossa para as Terras Selvagens se torna mais perturbadora agora, pois minha intuição diz ter alguma ligação com o desequilíbrio em Maira que sinto. A deusa não está falando comigo de modo claro, apenas sei que devo ficar atento, pois acontecimentos de consequências ominosas para o mundo parecem estar se desenrolando".

Os peixes estavam prontos, e fiz rapidamente minha refeição. Joguei um toco volumoso no fogo e deitei sob o abrigo, enrolando-me no manto e pensando nos dias por vir. Seja como forem, devo encontrar os irmãos e, também, estes mercenários que, por motivos desconhecidos, parecem estar na mesma trilha. Dependendo de suas motivações, se forem nobres, talvez eu me junte a eles. De outro modo, terei que matá-los. Se não escutam a voz de Maira, não sabem o que se passa por trás da aparente calma do mundo. E eles nunca entenderão. Afastando os pensamentos, meus olhos se fecharam e logo abandonei a consciência, dormindo tranquilo na sombria floresta que naquela noite era meu lar.

Acordei na completa escuridão. A tocha estava apagada e luz alguma penetrava nas profundidades da caverna, encravada nas entranhas da terra. O som que me despertara de um sono alerta se repetiu: um pequeno arrastar de dedos com garras nas lajes de pedra do chão, junto com uma respiração no limite da audição. Alguma coisa estava se movendo nos ancestrais túneis dos anões, além de um aventureiro em busca de uma saída. E, a julgar pelo seu comportamento, estava faminta. E caçando.

Em um mundo sem luz, eu não poderia confiar tanto em meus sentidos quanto a fera, seja lá qual fosse. Fiz movimentos lentos e silenciosos, sentindo onde estavam a espada e o escudo. Seguros de sua localização, tateei em busca de outra tocha e das pederneiras. Os movimentos da criatura tinham se tornado ainda mais suaves. Ela havia percebido minha presença e sentido minha movimentação, preparando-se para o bote. Eu teria talvez um ou dois segundos entre o movimento brusco de acender a tocha e o ataque. Com todo o corpo tenso e preparado, bati as duas pedras com rapidez e força, despejando faíscas que relampejaram no breu, atendo fogo ao pano embebido em combustível.

Mal a primeira labareda surgiu quando o impacto veio. Uma boca de presas formidáveis se fechou em torno do meu braço, apertando os anéis metálicos da cota de malha. Soquei-lhe a cabeça com força, e a criatura soltou, permitindo-me rolar em busca dos armamentos. Em uma manobra ágil, agarrei a espada e o escudo, voltando-me na direção em que imaginava encontrar-se o oponente, enquanto esmorecia a chama da tocha caída ao chão.

Eu tivera muita sorte: caso o ataque tivesse chego no pescoço, eu seria apenas um saboroso naco de carne agora. Mas uma primeira falha não iria desestimular a fera, afinal, não era tão fácil encontrar alimento nessas paragens, e o animal deveria ter se desorientado para acabar em tais profundezas. Não havia mais preocupação com silêncio agora, pois eu conseguia ouvir seu rosnado furioso, mas ela permanecia fora do círculo de luz. Largando o escudo, peguei a tocha antes que se apagasse. O fogo deveria tornar a criatura um pouco mais cautelosa, se fosse acostumada a viver toda sua vida sob o solo. Avancei com a espada em riste, passos lentos e pequenos, ouvindo o rosnado aumentar de intensidade conforme eu me aproximava. Comecei a distinguir um vulto no limite da visão. E, para meu horror, ele avançou e se revelou. Eu estava esperando algum predador normal que se entoca em cavernas, talvez um urso ou leão perdido, mas não podia contar com aquela monstruosidade sobrenatural que se postava em minha frente.

Parecia uma grande pantera de cor negra, quase azulada. Mas sua cara não era da inexpressividade natural de um animal, mas de uma intensa malignidade irracional. Seu corpo não era de solidez absoluta, parecia deixar passar alguma luz, e eu quase podia imaginar o contorno das paredes por detrás. A suave luz azul que emanava da minha lâmina enfeitiçada atestava: aquilo não era um ser completamente material. Mas o mais terrível era a série de tentáculos que se erguia de seu dorso, portando em suas pontas enormes olhos de pupilas fendidas, como as de uma serpente, que se contraíram com a incidência da luz. Eu conhecia aquela aberração apenas de mitos e fantasias, mas sabia que, se fitasse por alguns segundos aqueles olhos, qualquer esperança de sobreviver seria em vão.

Desviei o olhar dos tentáculos e foquei minha atenção na cabeça de pantera. A minha vida estava por um fio, mas não iria me render tão facilmente. Um aventureiro menos preparado não teria a menor chance, mas este não era meu caso. A cota de malha mágica tinha sido uma bela surpresa para o monstro, e o encantamento lançado sobre a espada poderia me fazer conseguir atingi-lo. Passo a passo, nós nos aproximamos mais, cada combatente tenso, confiando em suas armas, e em dúvida quanto aos truques do oponente. A cada centímetro, minha lâmina brilhava mais, e meu braço acumulava energias para um golpe preciso que poderia resolver o embate com rapidez.

Foi quando escutei um segundo rosnado, vindo de trás.

Apenas tive tempo de soltar uma imprecação, voltando a cabeça e vendo um vulto imenso e semi-transparente pular nas minhas costas. Fui derrubado com o golpe, sentindo as garras tentando me dilacerar por sobre a armadura, mas consegui segurar a espada. O monstro era forte, mas eu não era um guerreiro à toa. Com uma violenta estocada do cabo na criatura sobre mim, consegui ter um pouco de espaço para me virar de costas. Meu braço da espada ficou livre e balancei a pesada lâmina, preparando um golpe com força. Mas, ao me voltar, meus olhos se encontraram com aquelas fendas ofídicas da ponta dos tentáculos.

Não consegui desviar o olhar desta vez. Os músculos perderam a força e senti meu corpo relaxar. A espada caiu no chão, com o barulho de metal ecoando pelo túnel. Minha mente ficou embaçada, sem conseguir mais formular raciocínios lógicos. A minha visão era apenas tomada por aqueles olhos, que pareciam aumentar de tamanho e me engolfar inteiramente. A fera hipnótica pareceu sorrir quando sua boca salivante se aproximou do meu rosto. Lutando com minha força de vontade contra aquela possessão demoníaca, tudo o que eu pude fazer era gritar. Quem encontrasse meu corpo nunca entenderia, mas eu apenas gritei.

Gritei a plenos pulmões para meus exércitos se manterem em posição, enquanto os trebuchets bombardeavam as muralhas do castelo. Os pobres diabos, indefesos, nada podiam fazer diante da destruição causada pelas máquinas de guerra. Algumas tropas desesperadas tentavam atravessas a planície e nos flanquear para destruí-las, mas mal conseguiam chegar sob a chuva de setas assassinas dos arqueiros. Os bravos que não morriam ou debandavam apenas encontravam a morte diante da infantaria que protegia cada trebuchet.

Com o castelo arruinado, observamos ao longe as tropas abandonando seu bastião de defesa e recuando rumo à cidade. Era o momento de avançar. Os mecânicos começaram o lento trabalho de desmontar as máquinas de guerra, enquanto ordenei que a cavalaria seguisse em frente, queimando as fazendas que permaneciam na planície e matando os soldados e camponeses que ainda tentavam defender o território.

Com o cair da noite, ordenei que todas as tropas se agrupassem na alta colina onde jaziam os destroços do outrora poderoso castelo. Montamos acampamento ali, erguendo nossas barracas e fazendo grandes fogueiras. Os curandeiros se ocuparam de tratar os feridos, enquanto os mecânicos reparavam os danos sofridos às máquinas de guerra. Avaliei as perdas que tivemos. Um trebuchet fora perdido em um assalto surpresa de cavalaria, mas ainda havia o bastante para demolir as defesas da cidade. A cavalaria sofrera poucos danos, e a infantaria se mantinha intacta. Porém, aquela era apenas a primeira etapa: romper o perímetro defensivo da cidade e penetramos em seus arredores. Certamente a notícia já se espalhava e as forças do reino inimigo estavam se reorganizando. Não havia tempo para esperar por reforços: se demorássemos demais ali, logo choveriam soldados por todos os lados. Nossa manobra era arriscada e sem retorno: penetrar nas muralhas da cidade e destruir seu núcleo militar, fazendo sobrar pouco mais do que forças esparsas e sem liderança entre nós e a conquista total.

Ao amanhecer do dia seguinte, dei as ordens para meu exército se colocar em movimento. Descemos a colina para o vale onde a cidade se estendia, cercada por muralhas formidáveis e fortalezas defensivas. O plano era simples: nos colocarmos a uma distância segura para permitir que os trebuchets devastassem as defesas, evitando contra-ataques, enfraquecendo a cidade antes de espalhar o terror. Ao final do dia, estávamos em posição, e os mecânicos aproveitaram os últimos momentos de luz para montar as máquinas. Naquela noite iniciamos um bombardeio de dois dias, repelindo as forças que tentavam contra-atacar.

Ao amanhecer do terceiro dia, os batedores que foram deixados para vigiar o território conquistado vieram com a notícia que eu já esperava: as tropas externas do reino tinham se ajuntado na nossa retaguarda, e planejavam um ataque coordenado com as da cidade nas duas direções. Era o momento em que tínhamos que abandonar a segurança de nosso ataque à distância e penetrar de vez nas muralhas.

O avanço até os portões foi fácil, já que os torreões estavam destruídos. Em um bloco único, chegamos quase à distância em que os arqueiros inimigos poderiam nos alcançar de cima das muralhas. Chegou o momento de utilizar o nosso segundo trunfo. Mandei tropas de infantaria tomarem o controle dos aríetes que trazíamos conosco, montados sobre rodas e com pesadas defesas de madeira e metal por cima. Os soldados avançaram, sob flechas normais e incendiárias, sofrendo diversas perdas. Mas era um preço que eu sabia que teria que pagar para colocar os portões abaixo. Finalmente, os remanescentes conseguiram se colocar diante das portas de madeira, e bastaram alguns golpes para que estas fossem abaixo. Era chegada a hora.

Ordenei à cavalaria, avançar, destruir os pontos militares estratégicos e não deixem ninguém vivo. Os capitães assumiram seus regimentos e desceram o restante da colina, prontos para fazer aquilo para o qual foram treinados: matar e destruir. A infantaria e os arqueiros seguiram atrás, penetrando na cidade como rios de devastação. Os inimigos tentaram reagir, mas não estavam preparados para tantos soldados de elite bem armados. Camponeses, mulheres, crianças, para todos a ordem era clara: conquista total. Nenhuma piedade. De toda aquela terra, só poderia haver uma ordem, e eu seria o único e inquestionável rei.

Pois é nessas terras que eu sou o líder, o explorador e o aventureiro. Sem nada a dever, sem passado e sem futuro, com infinitas sagas a viver. Aqueles para quem uma vida só é o suficiente, sei que nunca entenderão.

5 comentários:

Félix disse...

Ao som de Dead or Alive - Old Times.

http://www.novometal.com/soundcheck/ouvir.php?id=192

Fábio Ricardo disse...

Gostei da surpresa final. Durante todo o texto, repeti para mim mesmo: o Félix devia ter trabalhado apenas com uma das histórias. No final, me toquei de que este é um texto nerd. hehe
ou algo do tipo.
Mas ainda acho que terias me cativado mais trabalhando apenas na historia do morto na caverna.

Félix disse...

Se eu consegui gerar alguma surpresa no final, isso é bom! Foi um texto que eu gostei de produzir, mas também tenho alguma dúvida quanto ao sucesso da construção.

Penso se o efeito de transições entre "mundos" com conexões (de dormir para dormir, de grito para grito) e com o refrão (que só faz sentido realmente para as cinco pessoas e o cachorro que conhecem a música) não funcionaria melhor com uma maior quantidade de partes menores, ao invés de três partes longas.

Isso iria gerar transições mais rápidas, em que a história em si de cada parte fica num plano secundário em relação ao efeito das "várias vidas". Pois a lógica era essa, que as partes fossem menos significantes que o todo.

Fábio Ricardo disse...

se essa era a lógica, realmente deverias trabalhar mais com partes menores e em maior quantidade.

ficaria mais claro.

Rodrigo Oliveira disse...

Primeiro de tudo: JAAAAAAAAAAAAAAR!
Agora, essa passagem ficou sutil de fato. Da floresta pra caverna eu tinha me perdido. Da fera das sombras pro comandante, a gente começa a ler vendo outro cara mas (talvez pelas passagens anteriores) fica um pulga atrás da orelha, tipo, tem algo aqui. Quando ele vai narrando, começa a cair a ficha e o final, decreta mesmo. Acho que ficou bacana. Bem literatura de fantasia medieval de RPG. Acho que um acerto nessas transições (ou no resgate de alguns elementos das passagens anteriores) poderia deixou o texto melhor amarrado. Tomachevski falava dos "motivos". Talvez isso aqui poderia ajudar a resolver melhor o texto. (sem espaço pra teorias aqui, falamos com uma cerveja qq hora)