quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Votação: Cinismo

Está aberta a votação para o tema Cinismo.

Você tem até o dia 30 de novembro para votar na melhor postagem sobre o assunto.

Cotidiano

1929
- Não é a coisa mais linda que você já viu?
- Com certeza! Jamais uma criança me pareceu tão linda! (Será que ela não vê que ele tem cara de joelho como todos os outros bebês que acabaram de nascer?) 

1934
- Mãe, mãe, olha meu desenho!
- Nossa filho, que bonito! (Esse é o milésimo desenho igual que ele faz, será que ele tem problemas psicológicos?) 

1942
- Você um dia fica comigo?
- Claro, só acho que não é o momento de estarmos juntos. (Idiota, você é feia e gorda, jamais vou ter coragem de andar na rua com você!) 

1947
- Desculpa, mas eu acho que é o melhor a fazer.
- Eu nunca vou amar ninguém como amei você. (Mas aquela sua amiga é bem gostosa. Vou chorar minhas mágoas pra ela!) 

1952
- Você sabe que ser médico é desapegar-se completamente dos bens materiais para salvar vidas, não é?
- Com certeza. A vida em primeiro lugar. (Por isso vou cobrar caríssimo as minhas consultas: minha vida em primeiro lugar!) 

1955
- Você aceita Tereza como sua esposa, amando-a a respeitando-a todos os dias de sua vida?
- Sim. (Desde que ela não comece a escolher minhas secretárias e nem a mexer nas minhas coisas) 

1965
- Olha, meu amor, nosso bebê!
- Juro, é a coisa mais linda que eu já vi! (Tem a mesma cara de todos os bebês que eu já tirei de barrigas....) 

1974
- Meus pêsames. Você sabe que eu gostava muito do seu pai.
- Obrigado, sei sim. (Enquanto você roubava dinheiro dele era fácil gostar, seu filho-da-puta!) 

1979
- Pai, vou casar.
- Parabéns, filha! Você gosta mesmo dele? (Ele tem dinheiro para te manter e ainda me sustentar no futuro?)

1982
- Olhe lá, coitadinha. Precisamos rezar por ela.
- Fique tranqüila, ela vai sair dessa. Eu tenho fé. (Você ainda não percebeu que ela está morrendo?) 

1988
- Fique tranqüilo, você vai sair dessa. Tenho fé.
- Obrigado. Sei exatamente o que você quer dizer.

AUTO-AJUDA CÍNICA EM 9 PASSOS

1• Seja sincero
2• Desapegue-se de tudo aquilo que for material
3• Viva em coerência com seu modo de pensar
4• Não negue seus instintos, por mais ousados que possam parecer
5• Valorize a natureza
6• Aprecie os pequenos prazeres
7• Exercite-se
8• Liberte-se de pré-conceitos e preconceitos
9• Esqueça as convenções

O cínico e o hipócrita

- Olha lá o cachorrinho! Tadinho... como é que pode? Eu não entendo essas pessoas, crápulas, nojentos. Só porque pegam um pouco de água em casa, abandonam o podre coitado ali, amarrado num poste, sem comida nem água, sofrendo sozinho e esquecido. Monstros nojentos! Como podem ser tão podres a ponto de fazer isso com o pobre animal? Onde estão os donos desse cachorrinho lindo?
- Ali embaixo daquela casa destruída pelo deslizamento.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A Ilusão

26/12/06

- A cidade está embaixo da água!

- Sim. E daí?

- Como assim "e daí"? Você ouviu o que falei? Enchente, caos, como não havia há mais de uma década!

- E como certamente haverá daqui a mais uma. E daí?

Olhei para ele, transtornado.

- Mas o desastre é agora! As pessoas não querem saber se essa é apenas mais uma enchente e se haverão outras. Elas estão desabrigadas, com frio, com sede, e isso é agora!

Ele suspirou com expressão entediada e tomou um gole da cerveja.

- Esse é o problema.

- O que, as pessoas??

- Também. Mas eu estava me referindo ao seu "aqui, agora". As pessoas querem salvar seu rabo neste instante e, para isso, vão fazer com que o presente seja o momento mais dramático da História. Olhe nas notícias, está todo mundo reclamando, se fazendo de coitado, do caminhoneiro parado na estrada bloqueada à tiazona que perdeu seu portão elétrico.

Acendeu um cigarro.

- E isso é merda. É só mais um grupo de macacos com medo de água.

- Meu Deus, como você pode pensar assim? Não são macacos, são pessoas, são vidas!

- E macacos não são vivos? - respondeu com um sorriso e uma baforada - Ninguém é vítima inocente nessa história. Despelaram o solo e cobriram-no com concreto, agora estão pagando pelas suas escolhas.

- Cem pessoas já morreram, entendeu? Soterradas. Afogadas. Pense no sofrimento que cada uma delas teve ao passar por uma morte horrível destas!

- Coitadinhas, prenderei a respiração durante dez segundos em respeito.

Fiquei paralisado com a resposta absurda. Eu não conseguia lidar com aquilo. A sua falta de compaixão era inaceitável. Não consegui responder, apenas olhar para ele, desolado.
Ele fez uma expressão de desgosto e se ajeitou na cadeira.

- Não me entenda mal. Eu imagino que morrer sem ar seja uma das coisas mais dolorosas do mundo, seja com os pulmões cheios de água ou terra. E sei muito bem que essas mortes afetam muito mais do que cem pessoas. Cada uma tinha uma família. Amigos. Dezenas serão afetados por cada morte, quem sabe centenas, se formos bem otimistas. Teremos alguns milhares de sofredores, se juntarmos todas as mortes. Isso estimando generosamente, pois certamente alguns desses eram medíocres odiáveis.

Parei diante dele e o olhei profundamente nos olhos, tentando articular pausadamente as frases, ver se despertava alguma coisa naquele coração gélido.

- Milhares de pessoas. Sofrendo. E apenas por conta das mortes. Dezenas de milhares, desabrigadas. Perdendo tudo. Pense nisso, por favor.

- Sim, eu pensei.

Ele me encarou de volta, a centímetros do meu rosto.

- E isso é merda.

Balancei a cabeça e sentei num canto, desolado.

- Pode deixar que restarão bastante pessoas no mundo para morrerem ainda, e você poderá continuar correndo em círculos balançando os braços e chorando.

Eu realmente estava com os olhos marejados momento.

- Um idiota correndo em círculos... É essa a visão que você tem de mim?

- Na verdade, sim.

Uma lágrima nasceu. Mas ele continuou.


- Pois no que você está sendo diferente de mim, também aqui parado?

- Eu sinto. Eu sofro. Eu tento ajudar! É assim que as pessoas são. Elas não odeiam umas às outras e a todo o resto. O sofrimento dos outros também nos atinge!

- Você sente. Isso não reconstrói nenhuma casa. Você sofre. Isso não faz nenhum morto ficar de pé. Você tenta ajudar, quem? O seu vizinho, o seu parente, o seu amigo, talvez o dono do mercado da esquina...

- E o que você faz para aqueles que não conhece? Você os vê na TV e derrama uma lágrima idiota como essa? Muito útil de sua parte. Você doa um casaco que não mais usa e que está mofando no seu armário, sob três camadas de roupas velhas? Ótimo, muito caridoso. Mas você tiraria agora o casaco, se estivesse usando um, para esquentar aquele desabrigado?

- Sim, eu faria isso, se o outro estivesse precisando mais do que eu!

- Não, você não faria, e é melhor ficar calado se é para ser hipócrita. Você não abriria a sua casa para abrigar cinco famílias desabrigadas por todo o tempo necessário para elas reconstruírem a sua.

- Mas isso é diferente...

- Não. Nenhuma diferença. Você ajuda no limite da sua conveniência. Se começa a ser inconveniente, você passa a encarar o fato de que, ei, alguns se dão bem, outros se dão mal, fazer o que. Eu também não teria nenhuma reserva em emprestar o isqueiro a um coitado que passasse agora por aqui. Mas, se ele me pedisse um cigarro, é outra história.

- No fundo, tudo o que você faz é ter uma sincera ilusão de que se sentir mal é algo que faz alguma diferença para os outros. Essa é a única diferença entre eu e você. Eu simplesmente não tenho essa ilusão. E lembre-se: aqui não temos expectadores. Você não precisa fazer nenhuma peça de teatro para convencer os outros de que seu altruísmo existe.

Mais uma cerveja aberta.

- Afinal, quem se importa com alguns barracos de pobre soterrados?..

Era incrível o modo como ele achava que a sua estupidez valia para todos. Ele falava a partir de um ponto de vista frio, cruel, desumano, e achava que todos eram assim? Meu Deus, o que pode ter ocorrido para ele ter se tornado aquilo?

- Você fala isso por que está aí, seco, confortável -falei, com raiva - É muito fácil para você dar uma de irônico, querendo aparecer com esse desprezo fútil. Tudo porque você nunca passou por uma situação tão desesperadora...

- Ha! - foi a sua alta e seca risada - e você, já?

Ele passou a cuspir rapidamente as frases.

- Melhor ainda, e isso faria alguma diferença?

- Se eu tivesse sofrido, o sofrimento dos outros seria maior?

- Se minha família tivesse morrido soterrada, isso aumentaria o número de mortos em mais que três?

- E, se eu mesmo tivesse morrido, isso faria sobrarem menos do que seis bilhões neste pedaço de rocha girando de nada a lugar algum num universo sem fim?

Silêncio, tão pesado quanto o céu que nos cobria.

- Aonde você quer chegar com isso? - perguntei, após uma longa pausa.

- A História, humanidade, a vida... Tudo isso é muito maior do que cada um de nós, e vai sobreviver a cada um de nós. Aonde eu quero chegar? Em lugar algum. E esse é outro problema. Existem tolos como você que acham há algum lugar para chegar.

Esvaziou o resto da cerveja, já quente.

- Esqueça os idealismos bonitinhos e fantasias literárias. Não perca tempo se preocupando com o universo.

A derradeira baforada do cigarro.

- O universo não se preocupa com você.

Ele se levantou e saiu. Afastou-se sem pressa, sob as pesadas nuvens do céu sem cores. Ele não havia vencido fácil desta vez. Eu fiquei ainda ali, me perguntando se deveria segui-lo. Mas, desta vez, alguma coisa me obrigava a ficar. Eu não saberia dizer o que, pois, se soubesse, teria falado a ele. Talvez houvesse, no fim das contas, algo mais do que a sua cínica visão poderia enxergar. Ou, quem sabe, era só porque havia um último cigarro, e uma cerveja. Abri, acendi e refleti, enquanto observava aquele eu caminhando lentamente sobre o solo estéril do deserto morto.

***

Esta história é, de certa forma, uma continuação desta.

Escrito na lama

Cinismo é crer que alguém ainda escreva sob as águas. No entanto, se as águas levam tudo, não podem levar as palavras. Continuemos, pois, com todo o cinismo do mundo.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Tema da Rodada

Não fazia a mínima idéia de qual tema propor para esta rodada. Pensei, pensei, pensei e pensei mais um pouco até chegar a uma conclusão. Lá vai o novo tema:

CINISMO

Duelistas têm até o dia 26/nov/2008 para publicar seus textos. A votação começa no dia 27. Vamos à luta. Grande abraço.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Votação

Está aberta a votação desta rodada.

Participe comentando neste tópico e indicando o texto de sua preferência até o dia 20/11/08.

domingo, 16 de novembro de 2008

Filosofia da composição, o retorno

16/11/08

Precisamente cento e cinquenta e três anos depois de Poe, chegou a minha hora de filosofar sobre a composição. Não que a situação seja a mesma: Poe, um desgraçado pouco relevante, chupava os ossos de uma de suas raras obras de sucesso em vida. Ou, se você for ingênuo o bastante, pode achar que ele realmente ansiava por um tour de force literário ao descrever a gênese do mais conhecido dos corvos. No meu caso, é obrigação. Ah, esses projetos com temas e prazos, literatura programada, ou "incentivo à criatividade", como quiser. Felizes aqueles que não precisam pensar em um domingo preguiçoso de céu encoberto e ressaca (esta não exatamente no mar). Mas, quando outros têm que passar pela mesma situação, o seu tormento cria uma obrigação moral para obedecer às regras. "Nós nos ferramos, então você tem que se ferrar também". Ê, laia, essa vida...

E agora, como proceder? O que diabos escrever? Estou no meio de campo, o estádio inteiro aguarda pelo pontapé inicial. Onde está aquele parceiro de time que sempre fica ao lado nesse momento? Imaginem o constrangimento de um jogador de futebol solitário no meio do círculo central, todos os olhos esperando ansiosamente pelo toque na bola. Metade lhe babando os ovos como filho de deus e metade lhe elogiando como filho da puta.

E, ainda por cima, querem que seja de um jeito criativo... "Criativo" é uma palavra um tanto quanto subjetiva, não? Criativo significa diferente, inusitado? Bem, o "Cabum" foi uma obra bem criativa, nesse sentido. "Escalafobécia" não fica muito atrás. E o que dizer de "A mão que segura o cutelo", escrita em 20 minutos e campeã da rodada? Realmente, leitores e duelistas não primam pelo bom gosto, às vezes...

Pense, pense, Félix... Você só precisa da idéia inicial, o primeiro impulso. Geralmente é assim. Uma cena, Sim, geralmente é uma cena. Um flash cinematográfico obscuro e nebuloso, inteiramente dependente da imagem, mas que de alguma forma precisa ser traduzido em palavras. Nunca dá muito certo, mas ainda assim os outros parecem gostar. Às vezes. "For me, gás!" não foi uma sequência elogiada. Mas, normalmente, estas nunca são, com exceção do Indiana Jones e de um príncipe perdido numa cabana por aí. Isso acaba de me lembrar que o subtítulo deste texto é "O Retorno". Pai do céu, já estou até imaginando Poe vestido de Rambo... Não, não é o tipo de cena que me inspira.Mmas poderia render uma comediazinha psicodélica qualquer hora dessas. Vou anotar no arquivo de "Idéias para textos". Um parágrafo basta para lembrar no futuro. Salvar, pronto. De volta ao tempo atual.

Eu poderia fazer um meta-texto. Daquele em que eu finjo descrever o ato de sentar diante do computador e iniciar uma obra. Um texto escrito sobre escrita de textos. Não tenho a menor dúvida de que alguém vai usar esse artifício. É o mais fácil, o mais manjado. Já fiz isso, o resultado foi um matacão de várias páginas filosofando sobre a morte. Não a coisa mais adequada para esta rodada, tampouco algo que reflita tão fielmente as minhas atuais filosofias de vida.

Filosofias de vida, essa é outra abordagem interessante. Uma idéia pode gerar um texto. Será que eu consigo agora? Vejamos, rápido brainstorm filosófico com os perrengues teóricos mais atuais desta cabecinha de merda. Ambientalismo... não. Política internacional e relações de poder... não. Egoísmo e egocentrismo... não. Baralhos de Magic... não. Tricolor paulista tricampeão... não. É, acho que não será por aí.

Frases de efeito e emoções, minha última salvação. Uma frase de efeito pode gerar um texto inteiro. Muitas e muitas poesias nascem assim, até contos. Mas geralmente a frase vem associada com uma cena. Sem cena, sem frase. Sem frase, sem cena. Ovo, a galinha manda lembranças. Por sinal, o ovo sensu stricto veio antes. E o ovo da galinha, obviamente, depois da galinha, se você definir "ovo de galinha" como "aquele colocado por uma galinha". Se você definir como "aquele que gera uma galinha", é ainda mais óbvio que ele veio antes. E se você pensar que o ovo é a galinha, a partir do seu momento de concepção... o mundo colapsa em um buraco negro xde lógica, de fazer inveja ao LHC.

Filosofia do ovo de galinha, veja onde vamos parar se dependermos de cenas, frases e filosofias, no momento.

E as emoções? Hum, pode haver alguma coisa aí... Seja naquela leve exultação após um grande dia, nos delírios fantasiosos das paixões platônicas ou na melancolia bêbada do fim de uma noite na qual se esperava mais, as emoções originaram muita coisa. De escarros poéticos paridos com letra ininteligível em papel a sessões sádicas esculachando furiosamente o teclado. Quando vai existir um sistema corriqueiro e funcional de escrita por voz? Os dedos são tão lerdos de vez em quando. Mesmo para quem cata milho à velocidade da luz, de um modo que já fez várias e várias pessoas arregalarem os olhos diante das metralhadas.

Alô, coração, esta palavra bonitinha que usamos quando queremos nos referir a uma parte do cérebro, há alguma coisa aí dentro? ECO... ECo... Eco... eco... ec... e... É, estamos meio vazios ultimamente, fechados para balanço. Nem a depressão tem sido doce ultimamente, mais tediosamente cinza do que preta e branca. Ah, as onomatopéias...

Mas estou vendo uma faisquinha lá no fundo... Um cintilar de brasas onde já houve uma fogueira devoradora. O suficiente para agarrar e não deixar escapar. Aqui está a minha idéia! Muito conveniente, já que é um pedaço bem representativo do meu universo literário. Aliás, do universo artístico em si. Noventa por cento de tudo o que já foi composto ou escrito deveria se referir a isso. É comum. É belo. É universal. É banal... A maravilha da arte é processar uma pequena brasa em um incêndio digno do cerrado em época de seca. Uma pequena atração, um olhar a mais, um meio sorriso disfarçado... e pronto, lá se vai metade do Parque Nacional das Emas, coitadas.

Afinal, para que um chuvisco quando se pode ter um temporal? Ninguém liga para uma pingadela morosa no telhado, mas uma tempestade retumbante agita até as mais gélidas almas. Por que falar de atração quando se pode falar de paixão? Por que se gabar de uma conquista passageira quando se pode discursar sobre um amor além da vida? A literatura permite o exagero. Permite a catástrofe. Permite que um corno chorão se torne um ultra-romântico atormentado. É possível ter inúmeras vidas, e terminá-las dos mais criativos meios, desde que choque, emocione, chame a atenção. Poucos são os idiotas que cortam os pulsos hoje em dia, penso eu. Deve doer pra caralho antes de matar. Mas não há meio mais belo de misturar a agonia do corpo físico com o alívio espiritual pelo lento esmorecer de uma negra existência...

Um homem. Uma mulher (ou mais de uma?). Os atores se encontram em um fundo branco. Este vazio precisa ser preenchido. O palco é fundamental. Tenho uma atração irresistível por lugares e tempos fora do usual, que por si só já evocam uma vasta gama de sensações, sem que o escritor precise sequer se esforçar a respeito. Mas também há uma beleza sórdida em escrever sobre o bizarro em um fundo cotidiano. Nos faz pensar em tudo o que existe por trás das histórias que ouvimos desatentamente nos noticiários. Ele escreveu uma carta, se jogou do prédio e virou patê na rua. Mas o que se passava em sua cabeça, quais foram as sensações que tentaram ser transpostas em frases, a imagem de quem dançou em seus olhos um segundo antes de beijar o cimento? Ela o matou e foi presa. Qual a sua reação quando viu aquele bilhete amassado no fundo da pasta, revelando a traição, e quais foram as palavras que trocaram antes do golpe fatal? "Olá, querida, desculpe pelo atraso, tive uma reunião importante?". "Tudo bem, amor". Pimba, rolo de macarrão na nuca. Sim, o seu ex-vizinho presidiário pode ser apenas um poeta ultra-romântico que fugiu das páginas de papel.

Por tudo isso o palco é fundamental. Geralmente não é o fim da trama, apenas um meio. Mas ninguém toma Nescau sem leite, certo? Comparação nada poética, por sinal... Comparações são essenciais. As analogias são uma ferramenta tão útil quanto seu potencial para serem bregas. "O olhar dela é como o cintilar de"... alguma coisa brilhante sobre uma superfície reflexiva, óbvio. E tome blábláblá. Triste. Mas de que outro modo explicar o inexplicável? A escrita, infelizmente, é um meio medíocre de expressar emoções. Como fazê-lo? Eu posso inserir frases de efeito, aquelas que fazem o leitor quebrar a continuidade apenas para lê-las de novo. Eu posso sentar o dedo no teclado e abusar de !!!!!!!! e ?????? e !?!?!?!?!, sendo acusado de criar uma festa de exclamações. Posso usar inteligentemente as formatações, particularmente o ultra-versátil itálico e o poderoso negrito, com todas as suas conotações Posso até usar nosso novíssimo condicionamento internético e DETONAR NAS MAIÚSCULAS. Certamente, não há modo melhor de exprimir RAIVA e ÓDIO na escrita. Imprecações são um ótimo recurso, mesmo que sejam suaves "maldições!". Mas o que realmente o leitor não espera é de ver um narrador poético e romântico dizer que ELE AMAVA AQUELA VACA, PORRA!!!!! Afinal, poetinhas atormentados não deveriam falar palavrões, apenas ficar se masturbando em meio a palavras obscuras, certo? Mas, embora eu goste de ficar ébrio, às vezes dá vontade de apenas encher a cara...

No fim, a frase é sempre um troço frio que nada mais exibe do que traços residuais de emoção. É um cadáver, nada mais. Essa comparação foi melhor. Por isso a música toca tão mais profundamente na alma, não há como não se emocionar com um bom vocalista. E o cinema une imagem ao som e verso, tendo o potencial para estar no topo da pirâmide artística. Pena que é deixado a cargo de mentes condicionadas a padrões restritos e lucro fácil.

Já tenho os atores, já tenho o palco, agora é só encher linguiça em busca do final. O final é a parte mais importante da obra. É o nosso último elo com aquela obra, o fim do nosso relacionamento com o texto. Dele depende a impressão final que teremos de tudo aquilo. Um texto primoroso com um final tosco é como uma trepada que não termina em orgasmo. É legal, sim. É comum e bom do mesmo modo, dirão principalmente algumas moças. Mas sempre fica uma sensação de "poderia ser melhor". Já no caso inverso, de um texto meia boca com um final bombástico... Bem, ao menos foi uma gozada, não é? Um bom final pode ter vários climas. Uma bomba inesperada, "afinal, foi a primeira vez que ela tinha matado". Ponto final, leitor, pense o que quiser. Ou uma breve descrição pós-climáxica, em que o escritor obriga o leitor a ficar mastigando por algum tempo as idéias e sensações que ele quis transmitir no seu climáx. Os últimos crocitares do corvo cortaram seu coração de modo indescritível, conviva com isso, pois ele não deixará sua janela nunca mais. Nunca mais...

Certo, então os elementos finais já estão montados, está ficando uma história interessante. Tema usual, roupagem um pouco distinta, dá para o gasto para uma rodada de Duelo...

Mas, ei, pera aí.

O tema não era "escreva uma história de amor".

(os espaços são um recurso excelente para criar tensão no final)

(sim, é bem legal)

(o recurso, não o final)

Era para escrever sobre escrita.

Mas bah, que merda. Esqueci ali pela metade.

Ok, esse romance vai ter que ficar para outra hora. Foi mal, pessoal!

Suspeito que esta foi uma foda sem gozada...



***

A título de curiosidade, a Filosofia da Composição de Poe pode ser encontrada aqui.

O Processo

Sentou-se em frente à velha máquina de escrever, pegou a folha preenchida que repousava na máquina e arrancou com um único puxão. Não se preocupou em descobrir o que estava escrito. Simplesmente amassou a folha e arremessou em direção ao lixeiro, no canto da sala. Errou e o papel juntou-se a tantos outros que rodeavam a lata de alumínio, já cheia.

Sorveu o último gole de cerveja já quente e colocou uma nova folha na máquina. Caminhou até a cozinha e largou a garrafa vazia em cima da pia. Abriu a porta da geladeira, procurou mais algumas latas, mas já havia bebido todas. Procurou por uma garrafa em algum lugar da casa, e achou meia vodka caída no sofá. Bebeu um gole direto do gargalo e franziu a testa enquanto os olhos avermelhavam.

Abriu mais uma vez a porta da geladeira e procurou algum refrigerante. Encontrou só uma jarra com um resto de chá mate. Misturou os dois num copo grande, meio a meio. Voltou ao escritório, descansou o copo sobre uma pilha de papéis e sentou-se frente à velha Olivetti. Bateu com força os dedos que enchiam o ar com o som característico e hipnotizante.

A primeira linha se preencheu com velocidade, assim como as seguintes. O copo se esvaziava na mesma proporção que a folha se enchia. Fred adormeceu, braços cruzados apoiando a cabeça embriagada sobre as teclas. Na manhã seguinte, Fred acordaria, arrancaria a folha da máquina e a desprezaria num canto qualquer, sem ao menos ler o que estava escrito. Procuraria por uma bebida por toda a casa, reclamaria da ressaca e começaria tudo de novo.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Alfa

Corria com passos largos, quase aos saltos, colina acima. Não ousava olhar por sobre o ombro. Só ouvia o farfalhar veloz na grama às suas costas. O galpão velho e poeirento da ultrapassada oficina tinha a porta aberta. Refúgio débil, não obstante, um refúgio. Cruzou o vão de entrada e arrastou com esforço a porta de madeira pesada. O facho de luz exterior foi minguando junto com a imagem das perseguidoras. Passou o ferrolho, respirou fundo e colocou o ombro de encontro à porta, projetando todo seu peso. Não tardou para sentir o impacto do outro lado. O choque fez a porta tremer, mas ela se manteve firme e imperturbável. Ele, no entanto, não podia dizer o mesmo. Já o tinham atingido de alguma forma, mas não o tinham alcançado. E por hora isso parecia o suficiente.

Podia ouvi-las através das paredes de madeira. Uma luz frágil entrava filtrada pelo teto de vidro sujo. Dentro, em meio a placas de madeira e restos de serragem, serras, martelos e pregos enferrujados sugeriam armas pouco eficazes. Podia praticamente sentir as criaturas contornando a construção, cercando o barracão. Não eram muitas, mas eram implacáveis. Ouvia o roçar incessante contra as paredes, um choque aqui, um golpe mais adiante. E tudo que o mantinha protegido não era mais que uma tênue fronteira de madeira fina.

Um estalido de madeira partida o pôs em movimento. Driblou o ferramental velho a procura de um local melhor protegido. Pôde ouvir a parede se partindo e as invasoras se arrastando para o interior do velho galpão. Ouvia o som correndo pelos corredores de equipamentos ociosos, já podia sentir o cheiro das criaturas se aproximando. Em um canto, dava as costas à parede para evitar um ataque inesperado. Pôde ver surgir os olhos brilhantes, pregados nele e, mesmo sob a luz filtrada pelo telhado, pôde ver as criaturas se aproximando. Tentou esquivar-se da primeira investida, a segunda arranhou-lhe o corpo. Não pôde evitar a terceira. Quando a criatura se afastou ainda podia sentir as marcas deixadas pelas presas. As criaturas se afastaram um pouco, rondando, enquanto ele se prostrava ao chão. Sentia o conteúdo inoculado percorrer-lhe o corpo até o coração. Sentiu quando lhe subiu pelo peito à cabeça. Sentiu-se transformando.

Quando ergueu a cabeça tinha os mesmo olhos brilhantes das criaturas. Tornou-se um pouco como elas. E elas como ele. Quando o bando partiu, ele estava entre elas. Deixou-se levar, selvagem. Correu como um igual. Farfalhando grama, deixando para trás o galpão envelhecido. Quando se ergueu entre elas, era outro. Quando deu por si, elas não mais o perseguiam. Agora, elas o seguiam.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O segredo

Dois fortes homens conduziam o escritor a uma sala escura. Um deles o jogou bruscamente sob um chuveiro previamente ligado. A temperatura era baixa. A água fria quase congelava o magro homem barbado, que se contorcia e contraía todos os músculos a cada gota que atingia seu tronco.

- Quais são as suas técnicas, seu inseto desprezível?

A voz vinha de longe, num misto de fúria e incompreensão. Era uma voz retumbante, daquelas impossíveis de se esquecer. O literato permanecia no chão sob a água gélida que vertia do chuveiro. Tentava balbuciar algumas palavras, sem sucesso. A voz inquisitória continuava.

- Impossível que nosso povo idolatre um ser tão fraco, inútil e repugnante quanto este. Que poderia um reles escritor representar a uma nação? Nada. Absolutamente. – Após alguns segundos de reflexão, prosseguiu. – Há algo errado com este traste. Só pode ter lançado algum tipo de feitiço sobre aquela multidão. Só pode.

O tom da voz passara de furioso a lamurioso em questão de poucos minutos. Desiludido, o inquisidor ordena que um dos leões-de-chácara desligasse o chuveiro. A pele do escritor beirava a cor de uma rosa púrpura. Ele tremia.

- Tragam minhas ferramentas! Hoje não saio daqui sem o segredo deste homem.

O frio era tão intenso que o literato parecia vestir uma carapaça. Sua pele estava completamente anestesiada. Não sentiu absolutamente nada ao ter a derme de suas costas aberta por uma navalha. Foi só quando despejaram sobre ele o álcool que pôde perceber o que estava por vir. Aqueles homens estavam determinados.

Navalhas, agulhas, alicates. A caixa de ferramentas prometia. Era inconcebível que, em 2023, ainda se utilizasse técnicas de tortura tão arcaicas. Tentava gritar para que parassem. Suplicava, mas só em pensamento. De sua boca não saiam nada mais do que alguns poucos gemidos secos e abafados, típicos de quem aprendeu a engolir a própria dor.

- Estas porcarias antigas não estão fazendo efeito. Tragam meu brinquedinho novo.

Com semblante assustado, aqueles homens, que antes pareciam forjados em aço, trouxeram o aparelho. O medo estava nitidamente estampado na expressão de cada um.

- Queremos saber quais são suas técnicas. Você fala e paramos com isso de uma vez por todas.

O escritor nem esboça reação enquanto o aparelho é instalado. Fone nos ouvidos. Óculos. Eletrodos. Amarras esticadas para impedir qualquer movimento dos membros.

- Coloquem três segundos!

Enquanto o aparelho emitia sons, luzes e conduzia eletricidade pelo corpo do literato, só se ouvia um sussurro cansado.

- Piedade... piedade..........
- É simples e fácil! Seremos piedosos se contares o que queremos.

O escritor não esboça reação mais uma vez, aumentando a fúria do inquisidor, que toma medidas desesperadas.

- Coloquem cinco segundos em potência máxima!
- Mas isso pode matá-lo – responde um dos homens, surpreso. – Ainda não sabemos o efeito de uma exposição dessa magnitude, senhor!
- Então correremos o risco.

Os homens obedecem prontamente. Com o equipamento preparado para a dose possivelmente fatal, o inquisidor pergunta pela última vez.

- Quais são as tuas técnicas, senhor?!

Após alguns segundos de silêncio, o pequeno homem se contorcia por cinco intermináveis segundos até quebrar alguns de seus ossos com a própria força empregada.

- E... eu... eu fa-lo.

A razão já tinha se esvaído de seu cérebro. Logo contaria seu segredo maior: sua técnica para escrever.

- Preparem sete segundos. Se ele não falar, acabamos com isso de uma vez! – Ordena, impaciente, o inquisidor.

O escritor tenta falar, mas tem muita dificuldade em articular as palavras.

- Esf... esf-fero-grá-fi-ca em... em... pa-pa-pel ras-cunho.

Foram apenas mais sete segundos até a eternidade.

Branco

A imitação fajuta de folha de papel se abre, branca, na minha tela. Até dois minutos antes dela aparecer, minha cabeça borbulhava com idéias de títulos, frases de efeito e analogias. Tudo se vai quando ela aparece e eu nem sei por onde começar. Dou alguns espaços, escrevo o final, que sempre começa com “e aí”. Eu ainda não sei o caminho, mas eu sempre sei onde eu quero chegar.

Escrevo frases que nunca respeitam a ordem direta porque eu odeio excesso de organização. E eu odeio excesso de qualquer coisa, que a minha própria intensidade já me enoja. Um parágrafo não tem nada a ver com o outro, porque tanto o outro quanto o um não fazem sentido. Uma bosta.

No Winamp se misturam Damien Rice, Los Hermanos, Nando Reis. Tento juntar frases, desenvolver idéias. Nenhum deles é suficientemente inspirador. Remover tudo. Zeca Baleiro, soberano e triste, me faz sentir como se eu nunca fosse capaz de traduzir em frases tão simples os sujeitos e predicados aqui dentro. Ele me faz chorar, mas continuo sem conseguir escrever.

Ando tão ligada com cinema ultimamente, né? Vejo uns trailers aí. Vejo o início de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, depois Closer. Tenho surtos psicóticos e tudo o que mais queria era poder vomitar esse monte de medos e insignificâncias diárias. Aí eu só consigo usar diálogos e eu não tenho tanto talento pra eles. Aliás, minha falta de talento pra qualquer coisa berra nessa hora.

Eu canso de tentar colocar nas atitudes e ações de personagens as minhas próprias angústias. Falo só sobre mim e sou egoísta mesmo. Solto o verbo e o que não faltam são adjetivos. Buscar absorver todas as emoções, todos os dias, dói pra cacete e eu sou fraca. Não sei juntar todo esse tumulto num só personagem, com uma só voz.

A tela branca, por mais cheia de palavras, continua branca. As emoções e sentimentos continuavam engasgados e tudo o que era tentativa de alívio vira frustração de expressão.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Tema da rodada e aviso

Iniciando o segundo ano do Duelo de Escritores, o tema da rodada, sugerido pelo leitor Jefferson Luiz Maleski (vencedor da rodada de aniversário) é:

Revele as técnicas de escrita você usa, mas de uma forma original.

Acabou as férias, pessoal! ;)



Um aviso sobre mais uma mudança nas regras. Agora que votos dos duelistas e do público possuem o mesmo peso, os novos critérios de desempate são:

1º - Texto que recebeu mais votos dos duelistas.

2º - Texto que foi postado primeiro.

Sim, o voto dos duelistas fica pesando um pouquinho mais no fim das contas, mas estes novos critérios foram necessários pois consideramos que o critério anterior (uma segunda votação-relâmpago) seria inadequado por atrapalhar o cronograma normal.

Em breve as regras estarão atualizadas.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Votação - rodada especial

Está aberta a votação desta rodada especial de aniversário do Duelo de Escritores.

Para votar nos textos basta deixar um comentário neste tópico indicando qual deles merece o seu voto.

Parabéns a todos os leitores-duelistas desta rodada.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Contrato

Tudo começou quando conheci Janiel, há três anos. O ser mais belo que Deus poderia ter esculpido no barro. Tão grande era a sua beleza que, por onde passava, Janiel atraia todos os olhares e despertava o desejo nos homens e o ódio nas mulheres de toda a aldeia. Ainda lembro o dia em que a vi pela primeira vez: entrava pelos portões da vila, vinda das terras ao norte desconhecidas e apresentara-se ao meu pai - que era o líder do nosso povo e governante da província de Casperllin. Absolutamente linda. Sua pele era branca como a neve dos vales de Retia. Os olhos mais claros e cintilantes que eu já vi, pareciam duas jóias, e tão profundos quanto o mar da Gália, pois poderia afogar-me facilmente na doçura do seu olhar. Seu cabelo cor de cevada ondulava-se e bailava harmoniosamente com o vento que em seu rosto batia. Olhamo-nos por segundos, apenas, e nos apaixonamos.

Chegou o dia em que tive que partir para os campos de batalha defender o Reino da Baviera. Antes de nos separarmos, juramos amor um ao outro e prometemos ser fiéis. Ela me disse, com os olhos marejados, que esperaria o meu retorno o tempo que fosse necessário. E eu prometi regressar vivo para os seus braços. Junto a meu pai, que liderava a tropa de cem homens, rumamos ao sul deixando as mulheres, as crianças e os velhos cuidando do vilarejo.

A guerra era pior do que eu imaginava. Se o inferno fosse um terço do que eu presenciei já seria cruel e indesejável o bastante. Vi meus irmãos caírem sob a espada dos infiéis e sanguinários sarracenos. Vi meu pai jogar-se em minha frente e morrer em meus braços por uma flecha pagã. Vi o dia em que os poucos soldados restantes da Baviera bateram em retirada das terras do sul. Foi um longo ano em terras quentes, desconhecidas e banhadas de sangue em que envelheci como se fossem dez. Mas nem todo o ódio que me consumia pela morte dos meus queridos superava o desejo de retornar à vila e viver ao lado do meu grande amor.

Após esse ano sangrento a Coroa concedeu-me o direito de regressar à minha terra e permanecer por lá duas semanas para recrutar novos combatentes e enterrar as cinzas dos bravos que morreram. Era o tempo que eu precisava para casar-me com Janiel, fugir para leste e recomeçar uma nova vida ao lado dela.

Ao adentrar os portões da vila fomos recebidos com chuva de flores silvestres e aclamados como heróis. O choro das viúvas e mães ecoava presente, também, com a notícia que seus maridos e filhos já não pertenciam mais a esse mundo. Aquela comemoração não era necessária, eles não sabem o horror que é uma guerra, não sabem o horror que é matar uma pessoa sem saber o por que, o horror de ver um irmão cair sob a espada de nobres arrogantes.

Janiel não estava dentre as moças que nos rodeavam. Resolvi procurar pela autoridade maior, quando meu pai e eu não estávamos presentes, na vila. A sacerdotisa-mor encontrava-se no templo da Mãe Terra. Adentrei com poucas maneiras e lhe fui jogando as minhas interrogações sobre o paradeiro de Janiel. Logo repreendido por ela pelos meus maus modos, obrigou-me a ajoelhar perante a imagem da Santa Mãe e agradecer por estar vivo. Depois de feito, lhe dirigi a palavra.

Ela se manteve compenetrada em meus olhos como se tentasse ver através deles. Disse-me para buscar as respostas que tanto procuro na sabedoria suprema dos imortais, só eles poderiam justificar-se pelo feito. A preocupação já era fato em meu coração e o desespero por respostas fazia-me enlouquecer. Exigi à sacerdotisa, por direito de sucessor ao meu pai, o chamado da Deusa protetora de nosso povo, a Mãe Terra. Ela hesitou. Tentou argumentar que os Deuses Celtas não deveriam ser incomodados por assuntos tão vãos. E eu insistia com a voz mais alterada.

Sem mais resistências, a sacerdotisa iniciou a invocação. Como em um piscar de olhos, a Deusa tomou o corpo dela para si e, por intermédio dela, comunicou-se comigo. Ouviu-se apenas o murmúrio de uma voz rouca e fraca proferindo a seguinte frase: “Janiel não anda mais sobre a terra”. E logo em seguida a deusa abandonara o corpo da sacerdotisa.

Janiel estava morta. As batidas do meu coração ecoavam mais alto em todo o templo. A dor em meu peito disparara as lágrimas. Perguntei à guardiã do templo a causa da morte e o que mais me assustara estava por vir com a resposta.

“A Mãe Terra exigiu-a como sacrifício pela boa colheita que tiveram no ano que se passou...” A partir de então, eu não ouvira mais nada da boca da sacerdotisa. Ela seguia com suas justificativas e argumentos e eu nada respondia. Era tudo mentira; eu sabia que todas as mulheres da vila a odiavam por ser a mais bela e sabia que, como guardião do seu povo, a mãe Terra jamais exigiria tal penitência a mim. Elas a mataram por simples inveja.

O ódio consumia-me com rapidez e ferocidade. Sai do templo encolerizado. Peguei meu cavalo e galopei rumo à floresta negra. Eu já sabia o que iria fazer. Os anciões contam uma lenda que há muito tempo um homem pactuara com Samhain, demônio das profundezas e habitante da floresta de Caspien, para salvar seu povo do rigoroso inverno e tornar-se rei do mesmo. Se for verdade tal lenda, o demônio poderia fazer reviver Janiel.

Adentrei a floresta; sem perceber já estava envolto por sua escuridão. Eu gritava incessantemente por Samhain e ele não tardou a aparecer. Envolto por uma capa preta, não se via o seu rosto. Perguntou-me o motivo da audácia de chamá-lo assim. Tomando pelo desespero, respondo-lhe com pressa e questiono a veracidade da lenda. Eu não via os seus olhos, mas sentia que ele me encarava com desejo. Ele sabia quem eu era e de repente se pronunciou com uma revelação que eu não esperava.

Meu pai havia pactuado com ele nos vales de gelo das terras ao norte. Meu pai havia morrido, mas não pela guerra, e sim pelo vencimento contratual de sua alma. O Demônio ria enquanto me fitava perplexo e conflitante. Eu compreendi meu pai. Ele fez isso por amor ao seu povo e, agora, eu faço por amor a Janiel.

Sem muito que temer e sem mais o que perder, perguntei a Samhain se ele poderia fazer reviver Janiel. Ele me disse que sim, mas o preço seria alto. Para cada alma trazida das profundezas à superfície custaria, a mim, mil almas, de homens de sangue puro, ao balseiro. E que eu só veria Janiel ao cumprir o acordo até o próximo brumário.

E hoje, após um logo ano vagando pelas vilas de toda a Baviera, derramando o sangue de inocentes sobre a lâmina de minha espada, deparo-me com o último de minha lista. A alma que trará minha amada de volta aos meus braços: você.

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Leo Molleri
Leitor de Camboriú (SC)

Continua

Paredes brancas são meu tormento e não haveria sensação pior pra me acompanhar durante a espera no hospital. Os minutos rastejavam cada vez mais longos quando pude finalmente ver meu filho e minha esposa. 

O Leonardo chegou pra mudar nossas vidas. Pelo menos a minha, eu decidi, tinha que ser preenchida com momentos de alegria intensa, pra compensar tanta agonia da passagem até agora discreta que tive por este mundo. Que hora estranha pra nascer o meu primeiro filho! A coincidência só podia ser o aviso que eu precisava, e eu atendi. 

Passamos dias fazendo vendo as ondas na praia, conhecendo o vai-e-vem da água. Barulho de mudança, pra mim uma terapia. Em casa, era o Leonardo de dia e uma nova esposa à noite. Eu a amava mais do que nunca, ela procurava entender minha nova fase e dávamos gargalhadas com o Léo. Uma linda mãe, um lindo filho.  

Esta semana o Léo fez seu primeiro aniversário e tive uma surpresa: sobrevivi. Contrariei as expectativas do médico, que disse que eu teria apenas um ano de vida depois de descoberto o câncer.  

O Léo já está mexendo com a areia na praia. A Mara chora e não sabe explicar por quê. O médico ainda diz que posso morrer a qualquer momento, mas meu filho me trouxe hoje uma palavra mais animadora que a do pós-graduado: “papai”. 
 
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Daniel Costadessouza, leitor de Blumenau (SC)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Tempo, um ano só

Acabara o mundo, afinal.

Tudo, tudo; tudo aconteceu, como previsto e profetizado outrora. Aqui e no céu, fogos queimaram a todos. Uns em comemoração. Outros, queimando almas, dizimando pessoas sem dízimos. E queimavam também os cães de todas as raças. Artistas viravam fumaça numa fogueira pior e mais quente do que aquela que queimou Joana D’Arc. Leões, tigres e macacos darwinianos sorriam, ao lado de Deus. Talvez bebessem um líquido, uma espécie de drink; possivelmente meio amargo, como o nosso Campari. Porque dava para notar uma careta disfarçada, a cada golada. Em cada sorvida. Os lábios deles tentavam sorrir, afinal era feita a vontade e realizada a vontade d’Ele. Devastada a terra nostra, a linda Amazônia, e o Tibet, encontravam-se felizes lá no mais alto dos céus. Volto ao artista, que ardia resistente. Ele chamou por Lúcifer, num pedido inusitado. Não, este artista, um escritor. É, um escritor! Ele queria, num último momento infernal, ter com o cara. Já estava queimando na ira de um deus que nunca pisara num tablado. E, triste, entre Shakespeare e Isolda, o artista prometia aos seus, que queimaria cada célula de seu corpo, buscando entender tantas ‘glórias’ sem razão e poesias. Ao lado do escritor, um ladrão sorria animado, e, vez por outra, vociferava com o cenho franzido, que ele também era mais o Barrabás! E enquanto isso, uma criancinha rebelde apontava o único dedo da mão, exclamando: “Reencarnação!”

Jamais imaginara tamanha fogueira, o nosso artista. Os olhos, pretos de fuligem, viam cavalos alados, relinchando em orações. Ele estava apavorado. De verdade. Seu corpo doído, e as mãos sem canetas, tentaram conferir se aquela água quente era seu mijo. Constatou que era a única água que teria contato. Além das lágrimas negras, evidentemente. Olhou para o céu. Mas não via o céu. Eram vários céus! Uma zona maior que a Vila Mimosa, lá do Rio de Janeiro. Todavia, ainda assim, ele, o escritor, resistia. Haveria, pensou imerso em quente angustia, ele haveria de cumprir e honrar sua palavra. Falaria com Lúcifer, antes de virar pó.

Porém.

Detido nesta palavra, percebeu a tempo, que era humano demais. Falho e inconstante ele era, pensou, fechando os olhos úmidos. E também que blasfemava, por ter razão e poesia em seu ser. Pelos seus cálculos ensandecidos de calor real, achou que já passara um ano ardendo na gigantesca e dantesca fogueira. Um ano esperando ter com o Diabo. O tal do Lúcifer. Até que sua vista foi nublando. Então, ele olhou envergonhado para todos os artistas ao seu redor. Quer dizer, as cinzas deles. E mais uma vez chorou. E urinou nas coxas. Estava chegando seu fim, por fim.

Entretanto.

Outra palavra que o animava. Entretanto, eis que um vento espiritual aliviou seu curtido rosto. Um frescor último secou suas malditas águas. As últimas águas que sentia o artista. Com os olhos semi-serrados, ainda vislumbrou assustado, um anjo estranho que, com apenas a asa esquerda, soprava seu alívio, na verdade o alívio dos dois. Queriam fazer contato, pensou, um tanto esperançoso, o ex-poeta. E, num sopro quase divino sussurrou:
- És o Lúcifer, enfim, ou estarei eu, em agonia por um ano, sem comer e beber, queimando num inferno insensato?

- Sou eu – respondeu aquele anjo de asa quebrada. A direita.

- Tem certeza que não escrevo uma poesia?

- Sim. Eu tenho. – e olhando ao redor, todos os céus desfeitos, declarou: - Porque também eu, briguei por vocês. Mas creio que perdemos...

E neste exato momento, o Universo escutou, em uníssono, todas as vozes matrixianas, de todos os artistas:

- Amém!


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Daisy Carvalho
Leitora de Jacarepaguá (RJ)

Todo amor que houver nessa vida

Lembro-me como se fosse hoje: aquela luz forte que teimava em me cegar os olhos, uma cama desconfortável com lençóis cor de nada e dois sujeitos de branco me apertando como se eu fosse uma bola. Tudo bem que o meu corpito estava meio oval, mas poxa, poderiam ter mais consideração, afinal não era uma posição muito agradável. Foi nessa hora que eu percebi que aquela criaturinha que estava vindo ao mundo me faria passar por todos os tipos de situações embaraçosas. Já começou por ali: a minha perna totalmente aberta, meia dúzia de pessoas olhando algo que seu pai demorou dois meses para chegar perto, eu toda descabelada e a enfermeira tirando foto dessa cena desastrosa. Você também não ajudou muito querendo abrir espaço entre as minhas costelas à base de cabeçada, tudo isso para vir ao mundo dar o ar da sua graça. E olha como o tempo passa rápido mesmo, isso já faz um ano. Um ano que a moça de branco me entregou um pacotinho marrom sujo de sangue e falou: Parabéns, mamãe!

Quando eu vi aquela coisinha (aquela coisinha é você, filha!) de 30 cm com cara de joelho e nariz de batata pensei que mesmo que você vomitasse em cima da minha coleção de selos ainda amaria você. Porque o amor foi forte, filha! Nem quando o José Henrique, da 6ª série II, me pediu em namoro eu senti algo tão intenso. As pernas ficaram bambas, o coração bateu mais forte e os olhos não conseguiram segurar o aperto no peito, tive que chorar. Desde então, o amor só aumentou. Mesmo quando você babou na minha blusa de seda favorita. Mesmo quando você empurrou para o chão a sopa que eu demorei duas horas para preparar.

Hoje, você não faz mais isso, aprendeu a ser mocinha. E nós crescemos juntas nesse ano. Aliás, acho que aquele clichê de 'aprendi muito mais que ensinei' serve para mim nesse caso. Nem ligo de usar clichês nessa sua cartinha porque quando olho para você, baby, o meu cérebro se esvazia e só consigo me comunicar através de frases feitas. Não consigo bolar uma frase criativa para resumir tudo o que eu sinto/senti por você nesse ano. Então é isso, filhota... De novembro de 2007 a novembro de 2008, o Jamelão decidiu partir dessa para uma melhor, o Jandir foi eleito para o décimo quinto mandato em Itajaí e o Bush, finalmente, vai pegar seu banquinho e sair de mansinho. Mas, o que realmente sacudiu o meu mundo foi um ser de coxas grossas que não sabe falar, não sabe andar, não sabe nem a diferença de pedra para comida. E que hoje comemora um ano de vida. Parabéns, filha!

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Tamara Cardoso Belizario
Leitora de Itajaí (SC)

sábado, 1 de novembro de 2008

Bodas de papel

O vendedor viu o homem entrando na loja e saiu voando para atendê-lo. Enquanto o cliente olhava a vitrine de jóias, o vendedor pousou suavemente ao seu lado.

- Posso ajudar?

- Procuro por um colar relicário. Vocês têm?

- Temos sim. Me acompanhe, por favor. É para presente?

- Sim, é o meu primeiro aniversário de casamento. Sou novo nessas coisas de presentes. Penso que se escolher algo que não esteja à altura da afeição que tenho pela minha esposa, ela ficará menos feliz do que desejo. E não existe ninguém no mundo que eu queira agradar mais.

- O senhor é romântico e parece gostar muito da sua esposa. Como ela se chama?

- Valéria.

- Então me conte como vocês se conheceram enquanto escolhemos o melhor relicário.

- Só se eu resumir, ok? Pois é uma longa história. Eu sou apaixonado por ela desde o colegial. Nós estudamos juntos durante três anos e eu sempre gostei dela, mas não tinha coragem de contar. Eu era o esquisito da turma, sabe? Caladão e sem jeito com as mulheres. E a Valéria era a garota mais badalada, não só da sala, mas do colégio. Era extrovertida e gostava de organizar festas. Ela era radiante! Só quem a conhece para saber o verdadeiro significado da palavra beleza. Eu, contudo, como você está vendo, nunca fui grande coisa, e por isso vivia em casa, na frente do computador.

- Entendi, vocês eram de tribos diferentes. Mas como ela se interessou pelo senhor?

- Bem, eu sempre fui um cara que aprecia muito a leitura. Você gosta de ler?

- Er... um pouco, só não leio mais por falta de tempo. O último livro que li foi O Segredo.

- Então vou contar outro segredo: quem lê muito e considera a leitura um prazer, como eu, não fica muito tempo sem virar escritor. É inevitável, uma coisa puxa a outra. Primeiro, comecei escrevendo contos e poemas em blogues da internet. Depois fiz resenhas de livros e crônicas nos jornais da minha cidade. Participei até de Duelos de Escritores, acredita? E isso me ajudou bastante. À medida que fui entendendo e aplicando as técnicas de escrita que aprendia, os meus textos melhoraram e granjeei leitores assíduos. Em pouco tempo o pseudônimo, ou apelido, com o qual assinava os textos ficou bastante conhecido. Porém, escrever me isolava dos outros. Vivia trancado no quarto, publicando textos e trocando emails. O mais próximo que eu conhecia como namorada era o email girlXX@camanducaia.com! Eu também não freqüentava festas e não tinha contato extra-classe com os colegas. Mas eu era feliz, e ingênuo, na minha solidão, até o dia em que vi a Valéria. Ela me coloriu a minha vida. Se fosse possível a sensualidade e a pureza habitarem juntas o mesmo ser, seria nela. Valéria passou a ser a musa dos meus poemas de amor e de sofrimento, porque naquela época, ela estava namorando.

- Parece que você tinha um problemão.

- Sim. E eu morria sempre que o namorado ia buscá-la no fim da aula. Cada beijo que eles trocavam era um elefante pisando em meu coração. Mas ele não valorizava a jóia rara que tinha. Certo dia, ouvi que eles haviam terminado. O cafajeste a traíra com outra. Era a chance que eu precisava. Mas como conquistar alguém que eu sentia falta de ar só de pensar, quanto mais chegar perto, conversar, convidar para sair? Foi quando resolvi usar as minhas armas: eu decidi escrever.

- Já sei, o senhor escreveu uma carta romântica.

- Claro que não, eu não era tão audacioso. Até pensei nisso, mas temia a reação dela. Se ela não gostasse da minha atitude ou me interpretasse mal, poderia usar o que eu escrevi contra mim. Por isso, eu precisava que outros a influenciassem a gostar de mim. Então, escrevi um livro para ela.

- Um livro? Como assim?

- Eu escrevia capítulo por capítulo, todos dedicados a Valéria. Publiquei eles em um blogue usando o meu pseudônimo e, sem ninguém me ver, espalhei cópias nos murais do colégio, revelando que haveriam continuações no blogue. A personagem principal da trama se chamava Valéria e o narrador anônimo era apaixonado por ela.

- Que legal! E como a Valéria reagiu?

- Eu não percebi de imediato porque a história virou febre. Todos no colégio queriam saber quem era o admirador secreto. Os colegas comentavam tanto o texto que os professores passaram a usá-lo nas aulas. Valéria parecia indiferente no início, mas à medida que observava a reação dos colegas, dos professores, das amigas dela, notei que começou a gostar da brincadeira. O meu plano estava funcionando. O olhar dela passou a buscar quem a observava. Tive de tomar cuidado, e ela me pegou duas vezes olhando para ela. A minha sorte foi que todos olhavam para ela. Contudo, o problema começou quando um dos professores espalhou a notícia pela internet que a ficção acontecia paralela à vida real, com cidade, colégio e musa de verdade. Os fãs dos meus textos enlouqueceram. Alguns tentavam antes, em vão, descobrir a minha identidade, mas agora surgia uma pista concreta. Assim, proliferaram as teorias sobre a identidade do escritor. Revistas publicaram matérias como "Jovem Escritor Anônimo se Declara em Livro" e "O Romantismo Anônimo da Vida Real". Jornais, rádio e televisão entrevistavam Valéria, colegas, professores e escritores locais. Não faltou quem quisesse aparecer. As amigas de Valéria viraram correspondentes de blogues de fuxicos e literatura. Os capítulos que eu escrevia passaram a ser publicados em outras mídias e mais pessoas passaram a acompanhar a história. Mas isso era algo que eu não tinha previsto.

- Toda essa atenção te atrapalhou?

- Um pouco. Mas eu estava entusiasmado com a reação da Valéria. Ela tornou-se popular em toda a cidade. Aparecia em jornais e na tevê. Faltava aulas para dar entrevistas. Em uma que lembro, ela disse que desejava conhecer o autor da homenagem para agradecê-lo por tamanha admiração. Logo depois, choveram engraçadinhos, até de outros estados, confessando serem o escritor, mas foi imposto que deveriam provar se revelando no blogue do livro. Nem preciso dizer que falharam.

- E foi difícil escrever o livro?

- Eu tinha uma idéia quando comecei a escrevê-lo, mas enquanto as histórias real e fictícia avançavam e se entrelaçavam, tive que alterar algumas vezes o que tinha imaginado. Mas o livro ficou mais próximo da realidade. E eu pude declarar tudo o que sentia por Valéria, suspiro por suspiro. Filosofei sobre a vida, o amor e a solidão. Dediquei-lhe uma música, um poema e uma estrela. Enfim, fiz tudo o que pude, joguei com todas as cartas. A seqüência dos capítulos durou dois meses, até chegar a parte final. Valéria já tinha desconfiado de quase todos os rapazes do colégio. E eu precisava me revelar e não sabia como. Por isso, no penúltimo capítulo resolvi propor um concurso de escrita, em que todos os rapazes poderiam escrever finais para a história. Seria o duelo final em que o melhor cavalheiro conquistaria o coração da donzela. O diretor gostou da idéia e, patrocinado por jornais e empresários locais, promoveu o Primeiro Concurso de Escrita do colégio. Os concorrentes poderiam escrever sobre qualquer coisa, mas os que escrevessem sobre o último capítulo do romance concorreriam na categoria principal. Foram convidados professores e escritores de renome para serem os jurados. Eles analisariam não só o melhor final, mas o mais harmonioso com o livro.

- É claro que o senhor ganhou, não é?

- Não, eu não me inscrevi.

- Como não? Não era o que o senhor queria?

- No começo sim, mas depois de sugerir o concurso, refleti mais. As coisas estavam fora de controle. Eu não queria ganhar um concurso, ser famoso, dar entrevistas. Eu queria a Valéria. Mas precisava acabar com o que havia começado. No dia do resultado do concurso, o ginásio municipal estava cheio de repórteres, celebridades locais e populares. Fãs do escritor anônimo vieram de todas as partes. Era uma oportunidade única para ver e ser visto, mas eu me encontrava sentado sozinho, próximo à saída de emergência, quando, sem perceber, ouvi um oi do meu lado. Quase caí quando vi que era Valéria. Respondi engasgado, tentando disfarçar, e se ela percebeu o meu nervosismo, eu não percebi.

"Você se inscreveu no concurso?" – ela perguntou, com os olhos brilhantes fixos nos meus.

"Não", respondi, com o coração batendo mais alto que a minha voz.

"E por quê não? Você não gostaria de ser um dos meus pretendentes?"

"Gostaria, mas não deste jeito, com todos esses holofortes."

"E o que você faria, ao invés disso tudo? Lembre que você teria um adversário forte o suficiente para escrever o final de um livro dedicado à mim, em um concurso amplamente divulgado."

"Eu nunca poderia escrever um final sem saber como a história termina. Eu não poderia, por exemplo, dizer que a mocinha se apaixonou pelo mocinho, que eles viveram felizes para sempre, quando não sei nem se ele a conquistou. Por isso não me inscrevi. Eu estou cansado desse barulho todo e só quero ver como esta história vai terminar. Por mim, eu simplesmente levaria flores até a sua casa, junto com um poema, para só você ler, e depois te convidaria para sair."

"Eu poderia dar algumas sugestões para o seu final, se você fosse escrevê-lo."

"Sugestões? Como assim?"

"Por exemplo, você poderia escrever que a mocinha, de início, achava aquela história toda muito estranha, mas com o tempo, ela passou a gostar do admirador secreto. Ele conseguiu, usando as palavras que saíam do coração tocar a alma dela. Mas essa mocinha tinha um problema, o seu admirador permanecia secreto. Então, ela discretamente pediu ajuda aos fãs do escritor e aos professores do colégio, que se comoveram do sofrimento da mocinha apaixonada, e juntos elaboraram a lista dos candidatos mais prováveis. Analisaram perfis e provas de redação arquivadas na secretaria. Um a um, os candidatos foram descartados até sobrarem três ou quatro. Destes, só um era da sala da mocinha. Agora estava mais fácil, mas ela precisava ter certeza. Então, pediu ao diretor do colégio o histórico do tal aluno, o seu endereço e telefone. O diretor concedeu e foi gentil abonando as faltas dela quando ela foi à casa do aluno no horário de aula. A mãe do aluno, que já desconfiava do filho, porque mãe sempre sabe das coisas, foi calorosa com a mocinha. Conversou muito com ela e pode-se dizer que tornaram-se amigas. Ela deixou que a mocinha entrasse no quarto do filho, mexesse no computador dele e levasse alguns rascunhos retirados dos blocos de anotações. Essa mocinha, depois de convencida da identidade do seu admirador, resolveu deixar de ser apenas uma personagem para ser co-autora. Por isso, ela escreveu o final que ela queria para o livro, usando as anotações do amado, assinou o texto com o nome dele e inscreveu o texto no concurso."

- Puxa vida! – disse o vendedor de jóias – que história! E como era o final escrito por ela?

- Eu poderia dizer que o texto dela ganhou o concurso. Que revelou o autor e foi publicado como um livro de sucesso. Mas o ponto mais importante para mim, é que o livro termina com o admirador não mais secreto indo à casa dela, levando flores e um poema e a convidando para sair. E a resposta dela ao convite, só ele ouviu, e continua ouvindo até hoje.

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Jefferson Luiz Maleski, leitor de Anápolis (GO)